02/05/2014

História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal, de Alexandre Herculano

  História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal Alexandre Herculano
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“Havias bem de morder o justo da Inquisição”: as críticas ao Santo Ofício

Na manhã do dia 11 de maio de 1671, o presbítero responsável chegava à igreja de Odivelas e logo se dava conta do que ocorrera. A porta aberta era um sinal: a igreja havia sido profanada na noite anterior. Como rastilho de pólvora, a notícia se espalhou por Portugal e seu ultramar provocando comoções católicas, missas e cerimônias em homenagem ao Santíssimo. Contudo, quer pela fama de profanadores quer pelo sentimento antijudaico, os cristãos-novos foram responsabilizados por este sacrilégio ocorrido em Odivelas309. De pronto, a piedade católica transformou-se em ira e diversas pessoas foram agredidas nas ruas ou tiveram suas posses depredadas. Porém, nada havia sido apurado e eram os boatos que alimentavam a fúria popular.

Em verso, pasquins disseminavam o ódio:
Pedro, príncipe da Igreja,
no horto puxou da espada,
grande ação para louvada,
matar gente tão sobeja,
puxe vossa alteza, e veja,
por Pedro príncipe é,
pelo montante da fé,
que convém num caso tal
não ficar em Portugal
a nação hebreia em pé.

Igualmente, diversos sermões foram pregados em ode à “perfídia judaica”. Em um deles, frei João de São Francisco proferiu que “grande temor deu a todos nós este estupendo caso! A todos atemorizou o furto do pão divino! Mas tema o herege, não tema o católico, que nosso é o seguro e a sua perdição [...] este erro tão próprio de hereges, como pecado próprio do seu conselheiro Lúcifer”.

A culpa recaía, sem sombra de dúvidas, sobre os cristãos-novos – bodes expiatórios mais odiados pelos portugueses. O mesmo ocorrera em outras profanações efetuadas em Portugal, nas quais a responsabilidade pesava sempre aos homens da nação devido à sempre repedida acusação de deicídio pela morte de Jesus. Assim, o ódio aos cristãos-novos era um dos sentimentos que unia – não obstante houvesse suas exceções – os portugueses. Com razão, argumenta Bruno Feitler, o topos da invenção de um herege para mover a opinião régia e pública contra uma política de integração, [...] se verificou em Portugal [...] no desacato de Odivelas. Assim, a intensa produção literária antijudaica dos anos 1620-30, bem como a dos anos 1670-80, está intimamente ligada ao seu contexto político, o qual fomentou o papel central atribuído aos cristãos-novos nesses eventos.

Embora o contexto político não fosse dos piores, devido à paz com Castela, alcançada em 1668, a frágil estabilidade política de dom Pedro no comando da monarquia era sempre motivo de preocupação. Provavelmente, tal debilidade justificasse as medidas desajustadas do regente, reavivando a proposta das cortes de 1668 através do decreto de extermínio, de 22 de junho de 1671. Esta retaliação – que nada tinha a ver com a eliminação física destes indivíduos – tivera por objetivo que fossem expulsos com suas famílias os “cristãos-novos confessos” e que “abjurarem de veemente”, saindo em autos da fé em uma das três Inquisições do reino.

O Conselho Geral do Santo Ofício opôs-se, argumentando que tal medida era contrária às penas impostas pelo Tribunal e pelo direito canônico – afinal, no limite, o decreto modificaria a sentença inquisitorial. Francisco Bethencourt afirma que a postura “política da Inquisição foi coerente: opôs-se tenazmente a qualquer tentativa de expulsar do reino a comunidade”, pois “tratava-se cristãos batizados que se aproveitariam dessa medida para se tornar apóstatas no exterior dadas as suas tendências ‘naturais’ para persistir em seus ‘erros’”. Os inquisidores, a bem verdade, condenaram “a expulsão dos cristãos-novos” para continuarem “a persegui-los em Portugal”, como sublinhou Vainfas.

De todo modo, nem a resolução do caso de profanação conseguiu abrandar a têmpera, tendo sido do cristão-velho Antônio Ferreira a autoria do roubo. O clima não era dos melhores para os homens da nação. Antônio Vieira, nesta época, já estava na Cidade Eterna. Roma era o palco perfeito de sua nova batalha: o jesuíta procurava a revisão de sua sentença inquisitorial com o papa e os cardeais romanos. Entretanto, nos primeiros anos de estadia, ainda não conseguira deslanchar seu intento. As notícias sempre chegavam de Portugal e, em uma delas, Vieira soube da profanação ocorrida em Odivelas e das consequências perniciosas aos cristãos-novos. Em outubro de 1671, escreveu a dom Rodrigo de Menezes, com o mesmo estilo das defesas anteriores:

os danos, senhor, que experimentou até agora Portugal com os cristãos-novos se reduzem principalmente a cinco: primeiro, a contagiam [sic] do sangue pela mistura com os cristãos-velhos; segundo, os sacrilégios ocultos que são infinitos e sabidos; terceiro, a infâmia da nação pela língua que falam em todo o mundo; quarto, a perda das conquistas, com a extensão da heresia e impedimento da propagação da fé, pelo que ajudam as armas, e poder dos hereges; quinto, a diversão e extinção do comércio, cujas utilidades logram os estrangeiros, assim pelos mercadores que tem em Portugal, como pelos cabedais dos portugueses que, por medo da confiscação, trazem seguros em todas as partes de Europa, etc.

O tom era o mesmo das Propostas da década de 1640. Nem o processo e a consequente condenação inquisitorial modificaram as idéias do padre que continuava a defender os cristãos-novos pela importância do comércio. Como afirma Ronaldo Vainfas, “o paço real não era o lugar ideal para Vieira retomar o combate, pois [...] percebia, com clareza, que a sua hora tinha passado como principal conselheiro do rei”.

Neste momento, Vieira pouco influía com seus conselhos, quer em Roma ou Portugal.

Seja como for, este episódio dramático – para usar a expressão de Antônio Baião – demonstra a instabilidade e o medo em que viviam os cristãos-novos no reino. A qualquer momento um crime poderia lhes ser imputado, mesmo sem qualquer prova de culpa. Algumas pessoas se travestiam de agentes do Santo Ofício para extorquir os cristãos-novos dando-lhes perdões falsos e promovendo
fugas contra acusações inexistentes. Foi o caso do ferreiro Manuel Fernandes, morador de Bragança, que pelo ano de 1660 fingiu ter “ordens e mandados” do
Santo Ofício “para executar algumas prisões, com o pretexto de tornar a soltar as pessoas presas e lhes tirar algum dinheiro” e “cavalgaduras”. Sabendo que estas pessoas eram cristãs-novas e caminhavam por certo lugar as prendeu da parte da pedindo-lheInquisição sem para isso ter alguma ordem sua, lhes dinheiro que levavam e as entregou, a quem as guardasse, como a presos do Santo Ofício, infamando-as, e descreditando-as com a tal prisão fingida, a ver se com esta troça, por as torna a soltar lhe davam o dito dinheiro, ou alguma outra coisa, no que o réu delinquiu gravemente arriscando com semelhantes invenções e falsidades o inédito e verdade do procedimento do Santo Ofício, e seus mandados.

Os inquisidores tentavam a todo custo durante o processo extrair uma confissão na qual o réu demonstrasse desprezo ou, como se dizia, que sentia mal da fé ou do Santo Ofício. Porém, se é fácil perceber que o réu tenha delinquido o reto procedimento regimental da Inquisição, difícil é não imaginar que os verdadeiros familiares e inquisidores não tenham extorquido possíveis acusados de heresia. No próprio Regimento dos familiares do Santo Ofício lê-se que no momento em que “executarem a prisão, mandarão recado ao juiz do fisco para que vá fazer o inventário dos bens do preso e pôr sua fazenda em segurança”, procurando outro oficial na falta deste, tudo “para a maior segurança dos seus
bens”.

É fato, como se pode perceber, que o Tribunal procurou legislar sobre estas práticas, mas é igualmente verdade que alguns de seus oficiais ou mesmo falsos agentes tornaram curvo o reto ministério.


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Fonte:

Yllan d Mattos: “A inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681)”. (Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense. Orientador: Ronaldo Vainfas). Niterói, 2013. Disponível em: www.historia.uff.br

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