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“Havias bem de morder o justo da Inquisição”: as críticas ao Santo
Ofício
Na manhã do dia 11 de maio de
1671, o presbítero responsável chegava à igreja de Odivelas e logo se dava
conta do que ocorrera. A porta aberta era um sinal: a igreja havia sido
profanada na noite anterior. Como rastilho de pólvora, a notícia se espalhou
por Portugal e seu ultramar provocando comoções católicas, missas e cerimônias em homenagem
ao Santíssimo. Contudo, quer pela fama de profanadores quer pelo sentimento
antijudaico, os cristãos-novos foram responsabilizados por este sacrilégio
ocorrido em Odivelas309. De pronto, a piedade católica transformou-se em ira e
diversas pessoas foram agredidas nas ruas ou tiveram suas posses depredadas.
Porém, nada havia sido apurado e eram os boatos que alimentavam a fúria
popular.
Em verso, pasquins disseminavam o
ódio:
Pedro, príncipe da Igreja,
no horto puxou da espada,
grande ação para louvada,
matar gente tão sobeja,
puxe vossa alteza, e veja,
por Pedro príncipe é,
pelo montante da fé,
que convém num caso tal
não ficar em Portugal
a nação hebreia em pé.
Igualmente, diversos sermões
foram pregados em ode à “perfídia judaica”. Em um deles, frei João de São
Francisco proferiu que “grande temor deu a todos nós este estupendo caso! A
todos atemorizou o furto do pão divino! Mas tema o herege, não tema o católico, que
nosso é o seguro e a sua perdição [...] este erro tão próprio de hereges, como
pecado próprio do seu conselheiro Lúcifer”.
A culpa recaía, sem sombra de
dúvidas, sobre os cristãos-novos – bodes expiatórios mais odiados pelos
portugueses. O mesmo ocorrera em outras profanações efetuadas em Portugal, nas
quais a responsabilidade pesava sempre aos homens da nação devido à sempre
repedida acusação de deicídio pela morte de Jesus. Assim, o ódio aos
cristãos-novos era um dos sentimentos que unia – não obstante houvesse suas
exceções – os portugueses. Com razão, argumenta Bruno Feitler, o topos da
invenção de um herege para mover a opinião régia e pública contra uma política
de integração, [...] se verificou em Portugal [...] no desacato de Odivelas.
Assim, a intensa produção literária antijudaica dos anos 1620-30, bem como a
dos anos 1670-80, está intimamente ligada ao seu contexto político, o qual
fomentou o papel central atribuído aos cristãos-novos nesses eventos.
Embora o contexto político não
fosse dos piores, devido à paz com Castela, alcançada em 1668, a frágil estabilidade
política de dom Pedro no comando da monarquia era sempre motivo de preocupação.
Provavelmente, tal debilidade justificasse as medidas desajustadas do regente,
reavivando a proposta das cortes de 1668 através do decreto de extermínio, de
22 de junho de 1671. Esta retaliação – que nada tinha a ver com a eliminação
física destes indivíduos – tivera por objetivo que fossem expulsos com suas
famílias os “cristãos-novos confessos” e que “abjurarem de veemente”, saindo em
autos da fé em uma das três Inquisições do reino.
O Conselho Geral do Santo Ofício opôs-se,
argumentando que tal medida era contrária às penas impostas pelo Tribunal e
pelo direito canônico – afinal, no limite, o decreto modificaria a sentença
inquisitorial. Francisco Bethencourt afirma que a postura “política da Inquisição
foi coerente: opôs-se tenazmente a qualquer tentativa de expulsar do reino a
comunidade”, pois “tratava-se cristãos batizados que se aproveitariam dessa
medida para se tornar apóstatas no exterior dadas as suas tendências ‘naturais’
para persistir em seus ‘erros’”. Os inquisidores, a bem verdade, condenaram “a
expulsão dos cristãos-novos” para continuarem “a persegui-los em Portugal”,
como sublinhou Vainfas.
De todo modo, nem a resolução do
caso de profanação conseguiu abrandar a têmpera, tendo sido do cristão-velho
Antônio Ferreira a autoria do roubo. O clima não era dos melhores para os
homens da nação. Antônio Vieira, nesta época, já estava na Cidade Eterna. Roma
era o palco perfeito de sua nova batalha: o jesuíta procurava a revisão de sua
sentença inquisitorial com o papa e os cardeais romanos. Entretanto, nos
primeiros anos de estadia, ainda não conseguira deslanchar seu intento. As
notícias sempre chegavam de Portugal e, em uma delas, Vieira soube da
profanação ocorrida em Odivelas e das consequências perniciosas aos
cristãos-novos. Em outubro de 1671, escreveu a dom Rodrigo de Menezes, com o
mesmo estilo das defesas anteriores:
os danos, senhor, que
experimentou até agora Portugal com os cristãos-novos se reduzem principalmente
a cinco: primeiro, a contagiam [sic] do sangue pela mistura com os cristãos-velhos;
segundo, os sacrilégios ocultos que são infinitos e sabidos; terceiro, a
infâmia da nação pela língua que falam em todo o mundo; quarto, a perda das conquistas,
com a extensão da heresia e impedimento da propagação da fé, pelo que ajudam as
armas, e poder dos hereges; quinto, a diversão e extinção do comércio, cujas utilidades
logram os estrangeiros, assim pelos mercadores que tem em Portugal, como pelos
cabedais dos portugueses que, por medo da confiscação, trazem seguros em todas
as partes de Europa, etc.
O tom era o mesmo das Propostas
da década de 1640. Nem o processo e a consequente condenação inquisitorial
modificaram as idéias do padre que continuava a defender os cristãos-novos pela
importância do comércio. Como afirma Ronaldo Vainfas, “o paço real não era o
lugar ideal para Vieira retomar o combate, pois [...] percebia, com clareza,
que a sua hora tinha passado como principal conselheiro do rei”.
Neste momento, Vieira pouco
influía com seus conselhos, quer em Roma ou Portugal.
Seja como for, este episódio
dramático – para usar a expressão de Antônio Baião – demonstra a instabilidade
e o medo em que viviam os cristãos-novos no reino. A qualquer momento um crime
poderia lhes ser imputado, mesmo sem qualquer prova de culpa. Algumas pessoas
se travestiam de agentes do Santo Ofício para extorquir os cristãos-novos
dando-lhes perdões falsos e promovendo
fugas contra acusações
inexistentes. Foi o caso do ferreiro Manuel Fernandes, morador de Bragança, que
pelo ano de 1660 fingiu ter “ordens e mandados” do
Santo Ofício “para executar
algumas prisões, com o pretexto de tornar a soltar as pessoas presas e lhes
tirar algum dinheiro” e “cavalgaduras”. Sabendo que estas pessoas eram
cristãs-novas e caminhavam por certo lugar as prendeu da parte da pedindo-lheInquisição
sem para isso ter alguma ordem sua, lhes dinheiro que levavam e as entregou, a
quem as guardasse, como a presos do Santo Ofício, infamando-as, e descreditando-as
com a tal prisão fingida, a ver se com esta troça, por as torna a soltar lhe
davam o dito dinheiro, ou alguma outra coisa, no que o réu delinquiu gravemente
arriscando com semelhantes invenções e falsidades o inédito e verdade do
procedimento do Santo Ofício, e seus mandados.
Os inquisidores tentavam a todo
custo durante o processo extrair uma confissão na qual o réu demonstrasse
desprezo ou, como se dizia, que sentia mal da fé ou do Santo Ofício. Porém, se
é fácil perceber que o réu tenha delinquido o reto procedimento regimental da
Inquisição, difícil é não imaginar que os verdadeiros familiares e inquisidores
não tenham extorquido possíveis acusados de heresia. No próprio Regimento dos
familiares do Santo Ofício lê-se que no momento em que “executarem a prisão, mandarão
recado ao juiz do fisco para que vá fazer o inventário dos bens do preso e pôr
sua fazenda em segurança”, procurando outro oficial na falta deste, tudo “para
a maior segurança dos seus
bens”.
É fato, como se pode perceber,
que o Tribunal procurou legislar sobre estas práticas, mas é igualmente verdade
que alguns de seus oficiais ou mesmo falsos agentes tornaram curvo o reto
ministério.
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Fonte:
Yllan d Mattos: “A inquisição
contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício português (1605-1681)”. (Tese
de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal Fluminense. Orientador: Ronaldo Vainfas). Niterói, 2013. Disponível em: www.historia.uff.br
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