13/04/2014

Papéis avulsos, de Machado de Assis

 Papéis avulsos, de Machado de Assis
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A anedota do anel de Polícrates

A explicação da transformação de pródigo a pobre e miserável se completa com a narração que faz o personagem A da “passagem mais interessante da vida do Xavier”, sintetizada em apenas quinze minutos, e elaborada a partir de um paralelo paródico com a anedota do anel de Polícrates, colhida por Xavier em Plínio e em outros autores. Iniciando a paródia, o narrador machadiano conta que o Xavier, em situação de pobreza, depois de ter  uma idéia não muito extraordinária, decide experimentar o próprio azar imitando, de modo invertido, a experiência que fez Polícrates ao lançar seu anel ao mar com o propósito de provar a própria sorte. Para tanto, divulga a sua idéia a um amigo e passa a ouvir e vê-la apropriada por diversas pessoas, na esperança de que, percebendo-a, consiga novamente apropriar-se dela e fazer com ela alguma obra, algum fruto. Depois de sucessivos encontros sem, no entanto, conseguir apropriar-se de sua idéia, o Xavier se intitula o “Polícrates do caiporismo”, confirmando a inversão que opera na anedota antiga.  

Conforme conta o narrador, que ouviu a história do próprio Xavier, este se encontrava numa situação de crise, sofrendo com o esgotamento de sua faculdade de criar idéias. Nesse estado, a linguagem do Xavier era a mais trivial possível. Nas palavras do narrador:

Tinha perdido tudo; trazia o cérebro gasto, chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem, nada. Basta dizer que um dia chamou rosa a uma senhora, — "uma bonita rosa" (Ibidem, p. 183).

Nessas condições, ocorreu-lhe certo dia uma idéia: “comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente: quem não for cavaleiro, que o pareça”. A idéia, segundo o narrador, não era muito extraordinária, mas refere que o Xavier, empolgado com ela, decide levar a cabo uma experiência que pode ser vista como uma paródia da ação de Polícrates. Vejamos.

Apropriando-se da anedota do anel de Polícrates, contada por Xavier, que a leu em Plínio, o narrador conta o caso:

Polícrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da Fortuna, e, para aplacá-la antecipadamente, determinou fazer um grande sacrifício: deitar ao mar o anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna andava tão apostada em cumulá-lo de obséquios, que o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à posse do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando Plínio, citando... (Ibidem, p. 184).

Vê-se que, contando a anedota, o personagem A exime-se de qualquer responsabilidade sobre o sentido dela, pois, no início e no final de sua breve narração, ressalta que apenas repete o que disse o Xavier. Pode-se dizer, por isso, mais uma vez, que o discurso do personagem A se constitui como repetição sistemática das palavras do Xavier, que contou a anedota citando Plínio e outros autores. Vê-se, assim, um movimento em abismo: O locutor A conta uma anedota contada por Xavier que cita Plínio como fonte de sua narração.

Nota-se que a anedota, na versão do narrador machadiano, ilustra a Fortuna de Polícrates, que, lançando seu anel ao mar, apossa-se dele na boca de um peixe servido em sua mesa. O caso do anel de Polícrates ilustra, assim, para o narrador e, segundo esse narrador, para o Xavier, a ação da Fortuna na vida de um homem de muitos poderes. Para avaliar de que modo o narrador e, por sua vez, o Xavier se apropriam da anedota, vale recuperar o texto de Plínio, explicitamente mencionado como fonte da narração.

Seguindo indicação de John Gledson, a anedota do anel de Polícrates encontra-se, entre outros lugares, no livro História Natural, de Plínio, o velho. Comparando as duas versões da anedota, pode-se notar que elas apresentam a mesma brevidade e, de certo modo, a mesma história. Há uma diferença, no entanto, que decorre do modo como o narrador machadiano se apropria dela. Em Plínio, Polícrates lança seu precioso anel ao mar como um sacrifício para expiar todo o gozo da felicidade que obtinha da fortuna. O que está em Plínio e que o narrador não diz é que o retorno do anel no peixe pescado é visto como um mau agouro de uma fortuna traiçoeira. Com isso, é possível perceber que o narrador e, por sua vez, o Xavier, vê um favor da fortuna onde Plínio via um presságio agourento, desviando assim o sentido original (pelo menos aquele que está em Plínio) da anedota. Pode-se pensar que a alteração no sentido da anedota serve ao propósito do narrador de estabelecer uma relação invertida entre a anedota do anel de Polícrates, cumulado de obséquios da fortuna, e caso da idéia do Xavier, agraciado de tropeços do caiporismo.

Tomando, como vimos, à sua maneira, o caso do anel de Polícrates como modelo, o personagem A informa que o Xavier decide experimentar a fortuna, estabelecendo uma possível equivalência entre o anel de Polícrates e a sua própria idéia. O plano do Xavier consiste em lançar a sua idéia ao vulgo com o propósito de ver se ela retorna ao seu poder, tal como o anel de Polícrates, ou se o seu caiporismo será tal, que nunca mais tome posse dela. A questão assim colocada pela equivalência com o anel é a da propriedade da idéia, a qual indica a sorte ou o caiporismo de Xavier. Apoderando-se de sua idéia, será acumulado de obséquios pela fortuna, tal como Polícrates; não lhe pondo nunca a mão, será, pois, pleno de caiporismo.

É a primeira vez que aparece no diálogo o termo “caiporismo”, que designa o estado de alguém cumulado de má sorte. Trata-se de uma figura recorrente na ficção de Machado para caracterizar personagens azarados, que não realizam suas potencialidades. Há diversos contos em que essa figura aparece. Em Papéis avulsos, por exemplo, há dois momentos significativos: “D. Benedita” e “O empréstimo”, em que os personagens são regidos por uma má sina. Percebe-se já o sentido invertido em que é tomado o caso do anel de Polícrates: no “original”, a história ilustra a fortuna de Polícrates; na imitação de Xavier, a história ilustra o caiporismo, a falta de sorte.

A imitação invertida é explicitada pelo personagem A do seguinte modo: “Polícrates experimentara a felicidade; o Xavier quis tentar o caiporismo; intenções diversas, ação idêntica” (Ibidem, p. 185). Vê-se que o desvio produzido no sentido da anedota colhida em línio serve claramente ao propósito do Xavier, que, como indica a caracterização feita pelo narrador machadiano, realiza na prática a própria definição do que é a paródia, imitando a ação de Polícrates, mas inserindo nela uma intenção diversa ou divergente.  

Depois de referir que o Xavier, comovendo com seu discurso a um amigo, que é comparado a um peixe, atira-lhe o anel, ou seja, a sua idéia, o narrador machadiano alerta seu interlocutor para o fato de que o que irá contar não é fácil de crer, pois junta-se “à realidade uma alta dose de imaginação”, livrando-se da responsabilidade do que conta declarando que apenas repete o que disse o Xavier. Percebe-se que o locutor, sistematicamente, apenas repete as palavras de Xavier; é, portanto, um imitador das palavras de Xavier. Sua fala é marcada, assim, pela repetição do que ouviu em outro lugar, o que o caracteriza como alguém que produz seus frutos apropriando-se das sementes lançadas por Xavier.

Em diversos lugares, o narrador relata que o Xavier ouviu a sua frase, chamando-a como um anel, mas em todos os casos a idéia batia as asas e escapava de sua memória. Tratando sistematicamente a sua idéia a partir do modelo do anel de Polícrates, Xavier, em diversas ocasiões, reconhece-a e clama para que entre em seu dedo. No entanto, não consegue se apropriar dela, que, como um ser alado, foge de seu suposto proprietário. No dia em que apanhou a idéia, o narrador refere que o Xavier ficou tão contente, que afirmou que ia escrever a propósito um conto fantástico, revelando conhecer os contos de Edgar Allan Poe. Pode-se dizer que é exatamente o que faz o personagem A no diálogo: apresenta um caso digno de memória, narrado em poucos minutos, “página fulgurante, pontuada de mistérios”, revelando, mais uma vez, ser um daqueles que aproveitam das sementes lançadas pelo Xavier, mas que, diferentemente dos plagiadores de idéias, declara de quem são as idéias.

O sentido que adquire no conto o caso do anel de Polícrates é explicitamente determinado pelo próprio Xavier, segundo informa o personagem A: “com um sorriso fino e sarcástico”, Xavier define-se como “o Polícrates do caiporismo”, nomeando A como seu “ministro honorário e gratuito” (Ibidem, p. 187). Com isso, indica-se que Xavier imita a ação de Polícrates, mas com uma diferença irônica, na qual se destaca o caiporismo, e não a Fortuna, como na versão do Xavier do caso do anel de Polícrates. Uma vez determinado o sentido da imitação, Xavier pode nomear um “ministro” para divulgar e representar sua história. Percebe-se, assim, no personagem A um aprendiz ou representante das palavras do Xavier.

Retomando o modelo da anedota de Polícrates, os personagens que se apropriam da idéia do Xavier são indicados como peixes que engolem a idéia e a trazem para diante de seu proprietário, que acaba não conseguindo se apossar dela. O último caso é o do amigo a quem Xavier primeiro lançou a idéia. À beira da morte, o amigo ainda soluça a famigerada frase a Xavier, que contou o caso ao A com lágrimas, o que indica o desespero do personagem, a tragédia de sua vida. Mais uma vez, a idéia esvoaça sobre a mente do Xavier, emitindo um “risinho de escárnio”, e, como das outras vezes, foge, entrando no cérebro dos sujeitos ali presentes, que a consideraram como “pio legado do defunto”.

Nota-se, por tudo que foi dito, que o ânimo parodista do personagem A não tem limites, podendo-se pensar que, assim como os personagens que se aproveitam das idéias do Xavier, ele, como ministro gratuito do Xavier, conta os seus casos apropriando-se, embora declarando a propriedade de algumas, de inúmeras idéias e imagens criadas pelo “Polícrates do caiporismo”.

Pode-se dizer que Machado de Assis desenvolve, em “O anel de Polícrates”, como observa Enylton de Sá Rego, o tema da propriedade das idéias, sujeitas à apropriação pela escrita e pela comunidade. Por não escrever, não se apropriando de suas próprias idéias, o Xavier não afirmava a sua propriedade sobre elas, talvez por saber que “não eram mais do que simples elos repetidos de uma longa tradição literária” (REGO, 1989, p. 116). Donde resulta que, em literatura, a originalidade depende mais do uso que se faz das idéias e das imagens colhidas em outros autores do que da propriedade que se exerce sobre elas, o que nos faz pensar nas questões colocadas pela paródia, que também consiste em apropriação indébita de idéias e imagens alheias.

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Fonte:
Márlio Barcellos Pereira Da Silva: Procedimentos paródicos e distanciamento irônico em Papéis avulsos, de Machado de Assis Márlio Barcellos Pereira da Silva Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Hélio de Seixas Guimarães). São Paulo, 2009. Disponível em: www.teses.usp.br

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