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A anedota do anel de
Polícrates
A explicação da transformação
de pródigo a pobre e miserável se completa com a narração que faz o personagem A da “passagem mais interessante
da vida do Xavier”, sintetizada em apenas quinze minutos, e elaborada a partir de
um paralelo paródico com a anedota do anel de Polícrates, colhida por Xavier em
Plínio e em outros autores. Iniciando a paródia, o narrador machadiano conta que
o Xavier, em situação de pobreza, depois de ter uma idéia não muito extraordinária, decide experimentar
o próprio azar imitando, de modo invertido, a experiência que fez Polícrates ao
lançar seu anel ao mar com o propósito de provar a própria sorte. Para tanto, divulga
a sua idéia a um amigo e passa a ouvir e vê-la apropriada por diversas pessoas,
na esperança de que, percebendo-a, consiga novamente apropriar-se dela e fazer com
ela alguma obra, algum fruto. Depois de sucessivos encontros sem, no entanto, conseguir
apropriar-se de sua idéia, o Xavier se intitula o “Polícrates do caiporismo”, confirmando a inversão que opera na anedota
antiga.
Conforme
conta o narrador, que ouviu a história do próprio Xavier, este se encontrava numa
situação de crise, sofrendo com o esgotamento de sua faculdade de criar idéias.
Nesse estado, a linguagem do Xavier era a mais
trivial possível. Nas palavras do narrador:
Tinha
perdido tudo; trazia o cérebro gasto, chupado, estéril, sem a sombra de um conceito, de uma imagem, nada. Basta dizer que um dia
chamou rosa a uma senhora, — "uma bonita rosa" (Ibidem, p.
183).
Nessas condições,
ocorreu-lhe certo dia uma idéia: “comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso;
e acrescentou sentenciosamente: quem não for cavaleiro, que o pareça”. A idéia,
segundo o narrador, não era muito extraordinária, mas refere que o Xavier, empolgado
com ela, decide levar a cabo uma experiência que pode ser vista como uma paródia
da ação de Polícrates. Vejamos.
Apropriando-se
da anedota do anel de Polícrates, contada por Xavier, que a leu em Plínio, o narrador conta o caso:
Polícrates governava a ilha
de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da Fortuna,
e, para aplacá-la antecipadamente,
determinou fazer um grande sacrifício: deitar ao mar o anel precioso que, segundo
alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna andava tão apostada em cumulá-lo
de obséquios, que o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescado e mandado para
a cozinha do rei, que assim
voltou à posse do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando Plínio, citando... (Ibidem,
p. 184).
Vê-se que, contando a anedota,
o personagem A exime-se de qualquer responsabilidade sobre o sentido dela, pois,
no início e no final de sua breve narração, ressalta que apenas repete o que
disse o Xavier. Pode-se dizer, por isso, mais uma vez, que o discurso do personagem
A se constitui como repetição sistemática das palavras do Xavier, que contou a anedota
citando Plínio e outros autores. Vê-se, assim, um movimento em abismo: O locutor
A conta uma anedota contada por Xavier que cita Plínio como fonte de sua
narração.
Nota-se que a anedota, na versão
do narrador machadiano, ilustra a Fortuna de Polícrates, que, lançando seu anel
ao mar, apossa-se dele na boca de um peixe servido em sua mesa. O caso do anel de
Polícrates ilustra, assim, para o narrador e, segundo esse narrador, para o Xavier,
a ação da Fortuna na vida de um homem de muitos poderes. Para avaliar de que
modo o narrador e, por sua vez, o Xavier se apropriam da anedota, vale
recuperar o texto de Plínio, explicitamente mencionado como fonte da narração.
Seguindo indicação de John Gledson,
a anedota do anel de Polícrates encontra-se, entre outros lugares, no livro História
Natural, de Plínio, o velho. Comparando as duas versões da anedota, pode-se
notar que elas apresentam a mesma brevidade e, de certo modo, a mesma história.
Há uma diferença, no entanto, que decorre do modo como o narrador machadiano se
apropria dela. Em Plínio, Polícrates lança seu precioso anel ao mar como um sacrifício
para expiar todo o gozo da felicidade que obtinha da fortuna. O que está em
Plínio e que o narrador não diz é que o retorno do anel no peixe pescado é
visto como um mau agouro de uma fortuna traiçoeira. Com isso, é possível perceber
que o narrador e, por sua vez, o Xavier, vê um favor da fortuna onde Plínio via
um presságio agourento, desviando assim o sentido original (pelo menos aquele que está em Plínio) da anedota.
Pode-se pensar que a alteração no sentido da anedota serve ao propósito do narrador
de estabelecer uma relação invertida entre a anedota do anel de Polícrates,
cumulado de obséquios da fortuna, e caso da idéia
do Xavier, agraciado de tropeços do caiporismo.
Tomando, como
vimos, à sua maneira, o caso do anel de Polícrates como modelo, o personagem A informa
que o Xavier decide experimentar a fortuna, estabelecendo uma possível equivalência
entre o anel de Polícrates e a sua própria idéia. O plano do Xavier consiste em
lançar a sua idéia ao vulgo com o propósito de ver se ela retorna ao seu poder,
tal como o anel de Polícrates, ou se o seu caiporismo será tal, que nunca mais
tome posse dela. A questão assim colocada pela equivalência com o anel é a da propriedade
da idéia, a qual indica a sorte ou o caiporismo de Xavier. Apoderando-se de sua
idéia, será acumulado de obséquios pela fortuna, tal como Polícrates; não lhe
pondo nunca a mão, será, pois, pleno de caiporismo.
É a
primeira vez que aparece no diálogo o termo “caiporismo”, que designa o estado de
alguém cumulado de má sorte. Trata-se de uma figura recorrente na ficção de Machado
para caracterizar personagens azarados, que não realizam suas potencialidades. Há
diversos contos em que essa figura aparece. Em
Papéis avulsos, por exemplo, há dois momentos significativos: “D. Benedita” e “O
empréstimo”, em que os personagens são regidos por uma má sina. Percebe-se já o
sentido invertido em que é tomado o caso do anel de Polícrates: no “original”,
a história ilustra a fortuna de Polícrates; na imitação de Xavier, a história
ilustra o caiporismo, a falta de sorte.
A imitação
invertida é explicitada pelo personagem A do seguinte modo: “Polícrates experimentara
a felicidade; o Xavier quis tentar o caiporismo; intenções diversas, ação idêntica”
(Ibidem, p. 185). Vê-se que o desvio produzido no sentido da anedota colhida
em línio serve claramente ao propósito do Xavier, que, como indica a
caracterização feita pelo narrador machadiano, realiza na prática a própria definição
do que é a paródia, imitando a ação de
Polícrates, mas inserindo nela uma intenção diversa ou divergente.
Depois de referir que o Xavier,
comovendo com seu discurso a um amigo, que é comparado a um peixe, atira-lhe o anel, ou seja, a sua
idéia, o narrador machadiano alerta seu interlocutor para o fato de que o que
irá contar não é fácil de crer, pois junta-se “à realidade uma alta dose de
imaginação”, livrando-se da responsabilidade do que conta declarando que apenas
repete o que disse o Xavier. Percebe-se que o locutor, sistematicamente, apenas
repete as palavras de Xavier; é, portanto, um imitador das palavras de Xavier. Sua
fala é marcada, assim, pela repetição do que ouviu em outro lugar, o que o caracteriza
como alguém que produz seus frutos
apropriando-se das sementes lançadas por Xavier.
Em diversos
lugares, o narrador relata que o Xavier ouviu a sua frase, chamando-a como um anel,
mas em todos os casos a idéia batia as asas e escapava de sua memória. Tratando
sistematicamente a sua idéia a partir do modelo do anel de Polícrates, Xavier, em
diversas ocasiões, reconhece-a e clama para que entre em seu dedo. No entanto,
não consegue se apropriar dela, que, como um ser alado, foge de seu suposto proprietário.
No dia em que apanhou a idéia, o narrador refere que o Xavier ficou tão contente,
que afirmou que ia escrever a propósito um conto fantástico, revelando conhecer
os contos de Edgar Allan Poe. Pode-se dizer que é exatamente o que faz o personagem
A no diálogo: apresenta um caso digno de memória, narrado em poucos minutos, “página
fulgurante, pontuada de mistérios”, revelando, mais uma vez, ser um daqueles
que aproveitam das sementes lançadas pelo Xavier, mas que, diferentemente dos plagiadores de idéias, declara
de quem são as idéias.
O sentido que
adquire no conto o caso do anel de Polícrates é explicitamente determinado pelo
próprio Xavier, segundo informa o personagem A: “com um sorriso fino e sarcástico”,
Xavier define-se como “o Polícrates do caiporismo”, nomeando A como seu “ministro honorário e gratuito” (Ibidem, p. 187).
Com isso, indica-se que Xavier imita a ação de Polícrates, mas com uma diferença irônica, na qual se destaca o
caiporismo, e não a Fortuna, como na versão do Xavier do caso do anel de Polícrates.
Uma vez determinado o sentido da imitação, Xavier pode nomear um “ministro” para
divulgar e representar sua história. Percebe-se, assim, no personagem A um aprendiz
ou representante das palavras do Xavier.
Retomando o
modelo da anedota de Polícrates, os personagens que se apropriam da idéia do
Xavier são indicados como peixes que engolem a idéia e a trazem para diante de
seu proprietário, que acaba não conseguindo se
apossar dela. O último caso é o do amigo a quem Xavier primeiro lançou a idéia. À beira da morte, o amigo
ainda soluça a famigerada frase a Xavier, que contou o caso ao A com lágrimas, o
que indica o desespero do personagem, a tragédia de sua vida. Mais uma vez, a idéia
esvoaça sobre a mente do Xavier, emitindo um “risinho de escárnio”, e, como das
outras vezes, foge, entrando no cérebro dos sujeitos ali presentes, que a consideraram como “pio legado do defunto”.
Nota-se, por
tudo que foi dito, que o ânimo parodista do personagem A não tem limites,
podendo-se pensar que, assim como os personagens que se aproveitam das idéias
do Xavier, ele, como ministro gratuito do Xavier, conta os seus casos apropriando-se,
embora declarando a propriedade de algumas, de inúmeras idéias e imagens
criadas pelo “Polícrates do caiporismo”.
Pode-se dizer
que Machado de Assis desenvolve, em “O anel de Polícrates”, como observa Enylton
de Sá Rego, o tema da propriedade das idéias, sujeitas à apropriação pela escrita
e pela comunidade. Por não escrever, não se apropriando de suas próprias idéias,
o Xavier não afirmava a sua propriedade sobre elas, talvez por saber que “não
eram mais do que simples elos repetidos de uma longa tradição literária” (REGO,
1989, p. 116). Donde resulta que, em literatura, a originalidade depende mais do
uso que se faz das idéias e das imagens colhidas em outros autores do que da propriedade
que se exerce sobre elas, o que nos faz pensar nas questões colocadas pela
paródia, que também consiste em apropriação indébita de idéias e imagens alheias.
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Fonte:
Fonte:
Márlio
Barcellos Pereira Da Silva: Procedimentos
paródicos e distanciamento irônico em Papéis avulsos, de Machado de
Assis Márlio Barcellos
Pereira da Silva Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Literatura Brasileira do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof.
Dr. Hélio de Seixas Guimarães). São Paulo, 2009. Disponível em: www.teses.usp.br
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