27/04/2014

O Brasil social e outros estudos sociológicos, de Sílvio Romero

 O Brasil social e outros estudos sociológicos, de Sílvio Romero
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Os pensamentos da exclusão

Proclamada a República, o cenário das realizações rapidamente começou a se desfazer e o papel prestigioso desempenhado pelos intelectuais mudou de maneira radical. Sonhos e utopias se abateram. O que antes era coletivo se individualizou nos interesses pessoais e privados que o novo momento criou. De modo geral, a figura do político-intelectual, tão bem representado na totalidade da “Geração de 70”, sofreu um duríssimo golpe quanto à participação na gestão e elaboração das políticas de governo. E a histórica “Geração de 70” foi desaparecendo por trás de escrivaninhas e de conferências, assimilando os valores pragmáticos dos novos tempos. O papel de timoneiros dos ideais republicanos – sempre reservado a eles – de maneira súbita e repentina desapareceu.

Na República, a fratura do movimento político-intelectual de contestação da geração de 1870 se aprofundou com a progressiva diferenciação de carreiras (...) O novo regime separou a carreira pública em duas metades, segregando paulatinamente o mundo da política partidária do universo intelectual... Mas a República franqueou a carreira da burocracia de Estado aos grupos contestadores da geração de 1870, que adentraram nela pelas veredas já abertas no Império: a diplomacia e o ensino superior. Estes foram os púlpitos da vida intelectual daí por diante. Uns – como Castilhos, Bocaiúva, Campos Sales, Prudente de Morais, Assis Brasil – adquiriram recursos de poder, tornaram-se políticos profissionais. Outros ganharam posições honoríficas e se empenharam em formar associações intelectuais.

O fato é que os intelectuais sofreram um duro golpe em suas vaidades e muito mais em seus projetos políticos. Vinham da propaganda e da prática intelectual de disputar o leitor politicamente, seja através do debate ou da polêmica. Estava incorporado ao comportamento militante, o compromisso de debater idéias de maneira apaixonada e disputar a simpatia ou a cumplicidade do leitor. Foi assim que as idéias cientificistas e republicanas divulgaram o mito do desenvolvimento da nação. E era assim que os intelectuais de modo geral atuavam, de forma orgânica, sempre procurando dar coesão e consistência aos interesses de um “bloco histórico”. O caso de Sílvio Romero é exemplar deste comportamento.

Até a Proclamação, Romero era um quadro intelectual de grupo, da “escola do Recife”, das associações republicanas, da “Geração de 70”, identificado com as novas forças sociais. Sua atuação foi coletiva no sentido de que suas idéias se alinhavam a uma vontade política de classe. De modo que sua ação foi grupal e ele um elemento a mais na construção da utopia coletiva de sua geração, ou seja, o republicanismo. Alcançado o objetivo político, o publicismo dos ideais republicanos se tornou desnecessário. Quer dizer, deixou de ter importância a defesa das idéias do novo regime. Pelo contrário, travou-se um luta política interna pela “escolha dos sonhos” de que seria feita aquela República. Os intelectuais foram alijados desse embate e a quase totalidade aceitou a nova condição de supérfluos, seja na figura de “últimos boêmios” ou na de “primeiros acadêmicos”. Em ambos os casos, o intelectual agora era um ornamento: daí o aparecimento de uma literatura “sorriso da sociedade” e um jornalismo de “colunismo social”.

Neste ambiente surgiu o novo Sílvio Romero, absoluto nas idéias, no comportamento, na intolerância e, agora, na solidão política e também intelectual. Inconformado com o novo papel que querem lhe infligir, tornou-se destoante naquele cenário mental de esterilidade recém inaugurado. Desajustado na sua rebeldia para a Academia Brasileira de Letras (“Aquilo nada vale!”), nos cafés e confrarias da Rua do Ouvidor ou nas disputas pela indicação para a Câmara Federal, Sílvio Romero seguiu como intelectual livre, solitário no combate à política e aos valores “institucionalizados” pelo novo regime. Mas eternamente crente no papel civilizador do intelectual e seu indefectível compromisso com a regeneração nacional.

Foi o Sílvio Romero da última fase, na temporalidade construída por Antonio Candido; o Romero dos projetos antiliberais, percebidos por Roberto Ventura; o Sílvio Romero “das faculdades agressivas” agora direcionadas para a política, nas palavras de Araripe Junior. Foi o Sílvio Romero de olhar atento à carreira parlamentar que desesperadamente tentava viabilizar, da produção eventual e constante de crítica literária, dos estudos inaugurais de sociologia no Brasil, tentando a todo custo manter a linhagem e a tradição que trouxe do Recife: queria a cultura e queria a política, queria a ciência e queria a poesia, queria a escrita e queria a oratória, queria a literatura e queria o discurso. Ou em suas próprias palavras:

“Para tudo dizer. Senhores, de uma só vez: desejo pura e simplesmente ocupar na política do Brasil a mesma posição que me cabe na literatura, - afastamento completo de todas as coteries, de todos os bandos, de todas as malocas que a infestam”.

É neste instante que se realiza a tese que defendemos para Sílvio Romero, neste trabalho. Para Antonio Candido esta é a terceira fase da obra de Romero, “mais sociológica”, em suas palavras. Ou o “momento antiliberal” de que fala Roberto Ventura. O que estamos tentando demonstrar é algo muito mais grave no conjunto da obra de Sílvio Romero. Algo muito além de “fase” ou de “momento”. É o instante de ruptura de seu projeto político-intelectual. Até ali sua produção crítica e historiográfica havia sido colocada a serviço da militância republicana, opondo-se ao regime monárquico. E neste instante, com a República instalada e o sonho desfeito, colocou sua
obra em oposição ao regime que até aquele momento defendera.

O norte da obra de Sílvio Romero é sempre a política. E suas fases ou momentos distintos não acompanham uma evolução intelectual ou doutrinária, como nos faz supor a idéia de etapas num caminhar biográfico. Em Sílvio Romero, as guinadas ou os diferentes enfoques que sua produção intelectual alterna tem relação com seus interesses políticos imediatos. De modo que, como pretendemos demonstrar, o objetivo de sua atividade intelectual passou a ser o ataque à República, seus valores simbólicos e sua elite dirigente.

Esta guinada ou esta ruptura na sua trajetória intelectual foi radical e afetou sua produção e visão de mundo. De maneira imediata, nos anos seguintes à Proclamação, já o encontramos mergulhado na política local de sua província. Intervindo com manifestos, apoiando candidatos,   enfim, vivendo uma vida pessoal de comprometimento com o dia-a-dia partidário. Mas seu envolvimento intelectual com o novo quadro político – envolvimento e participação feita à base de seu inconformismo nacionalista, de seu isolamento e desilusão – é muito mais relevante do que sua participação como parlamentar. Sílvio Romero investiu contra o novo regime com muito mais furor e radicalidade do que havia feito contra a monarquia. Era o intelectual diante do resultado efetivo de sua utopia.

O caráter essencialmente militar da Proclamação da República foi o primeiro elemento de desacordo de Sílvio Romero que viu, em todo o movimento, o perigo da partidarização das Forças Armadas e também a influência dos positivistas dentro dos quartéis. Para ele, a deposição da Monarquia, por parte dos militares, havia sido adequada, mas a continuação no poder tornara-se desastrosa. A idéia da elite ilustrada, na vanguarda político-intelectual do novo regime, começou a cobrar seu preço, logo no início do processo republicano, quando os espaços começaram a ficar mais estreitos e os vazios rapidamente preenchidos. De modo que começou a rever seus conceitos, como escreve Maria Aparecida Mota:

Os primeiros anos da República brasileira marcados por uma sucessão de golpes, crises, revoltas e ditaduras, motivaram o escritor sergipano a rever sua adesão ao presidencialismo e a propor, como remédio aos descalabros políticos, o regime parlamentar.

Numa série de cartas públicas que escreveu, no ano de 1892, a Rui Barbosa (o ex-conselheiro do Império e ex-ministro de Deodoro da Fonseca), sempre delicado e obsequioso, Sílvio Romero advogou em favor do regime parlamentarista. Mas, como era seu estilo, parte para o ataque aos regimes militares que até aquele momento dirigiam a República, principalmente ao sistema presidencialista que, sem a lisura eleitoral e alternância no poder, transformou a República numa ditadura. E dá mostras claras de sua desilusão com o novo regime.

Que outra coisa é essa gestão inqualificável, indefinível do Sr. Floriano, reformando generais, ministros do supremo tribunal, demitindo por desacordo político funcionários vitalícios? Que outro nome pode ter em língua humana todo esse balmacedismo crudelíssimo que está trucidando o Rio Grande do Sul, a não ser de ditadura, a férrea ditadura dos governos ineptos e malignos?

Mais:

(...) se o regime (presidencialista) fosse viável no Brasil, passadas as primeiras dificuldades, iria sempre em ascensão gradativa para melhor; o contrário, entretanto, é a verdade; o primeiro governo constitucional foi mau, o segundo é péssimo, e este, que já está com três ou quatro modificações vai de mal a pior...O sistema bem cedo está conhecido neste país pelos seus frutos; em três anos expôs às vistas de todos os seus vícios, as suas mazelas.

E assim vai Sílvio Romero apontando “arreganhos ditatoriais” do governo provisório e das presidências militares que até aquele momento haviam dominado o regime. No ano seguinte, 1894, lançou um violento ataque aos positivistas, no livro Doutrina contra Doutrina. Claro que Sílvio Romero via a doutrina positivista por trás das Forças Armadas, e foi também contra eles que apontou sua ferocidade nestes anos iniciais do regime. Tanto Rui Barbosa, quanto Sílvio Romero sentiu a perda de espaço político e ideológico para os grupos radicais que apoiaram e eram apoiados por Floriano Peixoto. Ficou claro o jogo de cena e de ação política de propaganda que Rui e Romero executaram “com as cartas” para atacar o governo militar.

Sejamos francos e digamos a verdade inteira: o partido puritano-jacobino aspirou desde 15 de novembro de 1889, e aspira ainda hoje, à posse exclusiva do poder; a ele se devem grandes desatinos no provisório e especialmente no governo atual de Floriano Peixoto.

É interessante observar como Rui Barbosa e Sílvio Romero, representantes do liberalismo dominante nos longos anos seguintes da República Velha, estavam atentos e
receosos da influência dos positivistas. É curioso observar também como se dava o envolvimento de intelectuais desta envergadura no palco da propaganda efetiva e na pregação das doutrinas. O ataque ao sistema republicano presidencialista surgiu diante do temor dos liberais de não conseguir o poder. Nas “cartas” de Sílvio Romero, cita o próprio Rui Barbosa e atacam juntos os positivistas:

‘Politicamente, o comtismo é um organizador exótico e funesto. Seus princípios de constituição temporal nada absolutamente inovaram para a doutrina da liberdade. Seu ideal, em matéria de governo, tende para as formas de uma opressão férrea, que a teocracia não excedeu. Seus livros santos não conhecem a democracia liberal, nem as instituições representativas, nem a federação americana...’ Tais palavras exprimem a verdade e são bem próprias para reduzir a legítimas proporções a incompetência audaciosa dos afamados padres do Grand-Etre, quando ousam sobrepor-se à vida pensante deste país, acreditando petulantemente que eles a monopolizam.

Nos governos militares Sílvio Romero denunciou a ação ditatorial, a proposta de um estado interventor, e o radicalismo positivista que desvirtuava o recém inaugurado republicanismo brasileiro. Apostava nos governos civis e ali residia o pouco de esperança que ainda mantinha. Quando os governos civis, liberais e cafeicultores chegaram ao poder e foram se sucedendo sem que mudança radical alguma ocorresse, passou a denunciar a “farsa republicana” de grandes e trágicas proporções. Seu olhar tornou-se mais pessimista e com a vocação intelectual e racionalista de sempre, decidiu sistematizar a natureza invariavelmente negativa do republicanismo no Brasil.


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Fonte:
Luis Alberto Scotto Almeida: “Desilusão republicana: percursos e rupturas no pensamento de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Lima Barreto”. (Tese de doutoramento apresentada ao curso de Pós-Graduação em Literatura, da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação do prof. Dr. João Hernesto Weber, como requisito parcial para obtenção do título de doutor). Florianópolis, 2008. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br

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