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Os pensamentos da
exclusão
Proclamada a República, o
cenário das realizações rapidamente começou a se desfazer e o papel prestigioso
desempenhado pelos intelectuais mudou de maneira radical. Sonhos e utopias se
abateram. O que antes era coletivo se individualizou nos interesses pessoais e
privados que o novo momento criou. De modo geral, a figura do político-intelectual,
tão bem representado na totalidade da “Geração de 70” , sofreu um duríssimo golpe
quanto à participação na gestão e elaboração das políticas de governo. E a
histórica “Geração de 70”
foi desaparecendo por trás de escrivaninhas e de conferências, assimilando os
valores pragmáticos dos novos tempos. O papel de timoneiros dos ideais
republicanos – sempre reservado a eles – de maneira súbita e repentina
desapareceu.
Na República, a fratura do
movimento político-intelectual de contestação da geração de 1870 se aprofundou
com a progressiva diferenciação de carreiras (...) O novo regime separou a
carreira pública em duas metades, segregando paulatinamente o mundo da política
partidária do universo intelectual... Mas a República franqueou a carreira da
burocracia de Estado aos grupos contestadores da geração de 1870, que adentraram
nela pelas veredas já abertas no Império: a diplomacia e o ensino superior.
Estes foram os púlpitos da vida intelectual daí por diante. Uns – como
Castilhos, Bocaiúva, Campos Sales, Prudente de Morais, Assis Brasil –
adquiriram recursos de poder, tornaram-se políticos profissionais. Outros ganharam
posições honoríficas e se empenharam em formar associações intelectuais.
O fato é que os
intelectuais sofreram um duro golpe em suas vaidades e muito mais em seus
projetos políticos. Vinham da propaganda e da prática intelectual de disputar o
leitor politicamente, seja através do debate ou da polêmica. Estava incorporado
ao comportamento militante, o compromisso de debater idéias de maneira apaixonada
e disputar a simpatia ou a cumplicidade do leitor. Foi assim que as idéias cientificistas
e republicanas divulgaram o mito do desenvolvimento da nação. E era assim que
os intelectuais de modo geral atuavam, de forma orgânica, sempre procurando dar
coesão e consistência aos interesses de um “bloco histórico”. O caso de Sílvio
Romero é exemplar deste comportamento.
Até a Proclamação, Romero
era um quadro intelectual de grupo, da “escola do Recife”, das associações republicanas,
da “Geração de 70” ,
identificado com as novas forças sociais. Sua atuação foi coletiva no sentido
de que suas idéias se alinhavam a uma vontade política de classe. De modo que
sua ação foi grupal e ele um elemento a mais na construção da utopia coletiva
de sua geração, ou seja, o republicanismo. Alcançado o objetivo político, o
publicismo dos ideais republicanos se tornou desnecessário. Quer dizer, deixou
de ter importância a defesa das idéias do novo regime. Pelo contrário,
travou-se um luta política interna pela “escolha dos sonhos” de que seria feita
aquela República. Os intelectuais foram alijados desse embate e a quase
totalidade aceitou a nova condição de supérfluos, seja na figura de “últimos
boêmios” ou na de “primeiros acadêmicos”. Em ambos os casos, o intelectual
agora era um ornamento: daí o aparecimento de uma literatura “sorriso da
sociedade” e um jornalismo de “colunismo social”.
Neste ambiente surgiu o
novo Sílvio Romero, absoluto nas idéias, no comportamento, na intolerância e,
agora, na solidão política e também intelectual. Inconformado com o novo papel
que querem lhe infligir, tornou-se destoante naquele cenário mental de
esterilidade recém inaugurado. Desajustado na sua rebeldia para a Academia
Brasileira de Letras (“Aquilo nada vale!”), nos cafés e confrarias da Rua do
Ouvidor ou nas disputas pela indicação para a Câmara Federal, Sílvio Romero seguiu como intelectual livre, solitário
no combate à política e aos valores “institucionalizados”
pelo novo regime. Mas eternamente crente no papel civilizador do intelectual e
seu indefectível compromisso com a regeneração nacional.
Foi o Sílvio Romero da
última fase, na temporalidade construída por Antonio Candido; o Romero dos
projetos antiliberais, percebidos por Roberto Ventura; o Sílvio Romero “das
faculdades agressivas” agora direcionadas para a política, nas palavras de
Araripe Junior. Foi o Sílvio Romero de olhar atento à carreira parlamentar que
desesperadamente tentava viabilizar, da produção eventual e constante de
crítica literária, dos estudos inaugurais de sociologia no Brasil, tentando a
todo custo manter a linhagem e a tradição que trouxe do Recife: queria a
cultura e queria a política, queria a ciência e queria a poesia, queria a
escrita e queria a oratória, queria a literatura e queria o discurso. Ou em
suas próprias palavras:
“Para tudo dizer. Senhores,
de uma só vez: desejo pura e simplesmente ocupar na política do Brasil a mesma
posição que me cabe na literatura, - afastamento completo de todas as coteries, de todos os bandos, de todas as
malocas que a infestam”.
É neste instante que se
realiza a tese que defendemos para Sílvio Romero, neste trabalho. Para Antonio
Candido esta é a terceira fase da obra de Romero, “mais sociológica”, em suas
palavras. Ou o “momento antiliberal” de que fala Roberto Ventura. O que estamos
tentando demonstrar é algo muito mais grave no conjunto da obra de Sílvio
Romero. Algo muito além de “fase” ou de “momento”. É o instante de ruptura de
seu projeto político-intelectual. Até ali sua produção crítica e
historiográfica havia sido colocada a serviço da militância republicana,
opondo-se ao regime monárquico. E neste instante, com a República instalada e o
sonho desfeito, colocou sua
obra em oposição ao regime
que até aquele momento defendera.
O norte da obra de Sílvio
Romero é sempre a política. E suas fases ou momentos distintos não acompanham
uma evolução intelectual ou doutrinária, como nos faz supor a idéia de etapas
num caminhar biográfico. Em Sílvio Romero, as guinadas ou os diferentes
enfoques que sua produção intelectual alterna tem relação com seus interesses políticos
imediatos. De modo que, como pretendemos demonstrar, o objetivo de sua atividade
intelectual passou a ser o ataque à República, seus valores simbólicos e sua elite
dirigente.
Esta
guinada ou esta ruptura na sua trajetória intelectual foi radical e afetou sua produção e visão de mundo. De maneira imediata, nos anos
seguintes à Proclamação, já o encontramos mergulhado na política local de sua
província. Intervindo com manifestos, apoiando candidatos, enfim, vivendo uma vida pessoal de comprometimento
com o dia-a-dia partidário. Mas seu envolvimento intelectual com o novo quadro
político – envolvimento e participação feita à base de seu inconformismo nacionalista,
de seu isolamento e desilusão – é muito mais relevante do que sua participação
como parlamentar. Sílvio Romero investiu contra o novo regime com muito mais
furor e radicalidade do que havia feito contra a monarquia. Era o intelectual diante
do resultado efetivo de sua utopia.
O caráter essencialmente
militar da Proclamação da República foi o primeiro elemento de desacordo de
Sílvio Romero que viu, em todo o movimento, o perigo da partidarização das
Forças Armadas e também a influência dos positivistas dentro dos quartéis. Para
ele, a deposição da Monarquia, por parte dos militares, havia sido adequada,
mas a continuação no poder tornara-se desastrosa. A idéia da elite ilustrada, na
vanguarda político-intelectual do novo regime, começou a cobrar seu preço, logo
no início do processo republicano, quando os espaços começaram a ficar mais
estreitos e os vazios rapidamente preenchidos. De modo que começou a rever seus
conceitos, como escreve Maria Aparecida Mota:
Os primeiros anos da
República brasileira marcados por uma sucessão de golpes, crises, revoltas e
ditaduras, motivaram o escritor sergipano a rever sua adesão ao
presidencialismo e a propor, como remédio aos descalabros políticos, o regime parlamentar.
Numa série de cartas
públicas que escreveu, no ano de 1892, a Rui Barbosa (o ex-conselheiro do
Império e ex-ministro de Deodoro da Fonseca), sempre delicado e obsequioso,
Sílvio Romero advogou em favor do regime parlamentarista. Mas, como era seu
estilo, parte para o ataque aos regimes militares que até aquele momento dirigiam
a República, principalmente ao sistema presidencialista que, sem a lisura eleitoral
e alternância no poder, transformou a República numa ditadura. E dá mostras claras
de sua desilusão com o novo regime.
Que outra coisa é essa
gestão inqualificável, indefinível do Sr. Floriano, reformando generais,
ministros do supremo tribunal, demitindo por desacordo político funcionários
vitalícios? Que outro nome pode ter em língua humana todo esse balmacedismo crudelíssimo
que está trucidando o Rio Grande do Sul, a não ser de ditadura, a férrea
ditadura dos governos ineptos e malignos?
Mais:
(...) se o regime
(presidencialista) fosse viável no Brasil, passadas as primeiras dificuldades,
iria sempre em ascensão gradativa para melhor; o contrário, entretanto, é a
verdade; o primeiro governo constitucional foi mau, o segundo é péssimo, e este,
que já está com três ou quatro modificações vai de mal a pior...O sistema bem
cedo está conhecido neste país pelos seus frutos; em três anos expôs às vistas
de todos os seus vícios, as suas mazelas.
E assim vai Sílvio Romero
apontando “arreganhos ditatoriais” do governo provisório e das presidências
militares que até aquele momento haviam dominado o regime. No ano seguinte,
1894, lançou um violento ataque aos positivistas, no livro Doutrina contra
Doutrina. Claro que Sílvio Romero via a doutrina positivista por trás das
Forças Armadas, e foi também contra eles que apontou sua ferocidade nestes anos
iniciais do regime. Tanto Rui Barbosa, quanto Sílvio Romero sentiu a perda de
espaço político e ideológico para os grupos radicais que apoiaram e eram
apoiados por Floriano Peixoto. Ficou claro o jogo de cena e de ação política de
propaganda que Rui e Romero executaram “com as cartas” para atacar o governo
militar.
Sejamos francos e digamos a
verdade inteira: o partido puritano-jacobino aspirou desde 15 de novembro de
1889, e aspira ainda hoje, à posse exclusiva do poder; a ele se devem grandes desatinos
no provisório e especialmente no governo atual de Floriano Peixoto.
É interessante observar
como Rui Barbosa e Sílvio Romero, representantes do liberalismo dominante nos
longos anos seguintes da República Velha, estavam atentos e
receosos
da influência dos positivistas. É curioso observar também como se dava o envolvimento de intelectuais desta envergadura no palco da
propaganda efetiva e na pregação das doutrinas. O ataque ao sistema republicano
presidencialista surgiu diante do temor dos liberais de não conseguir o poder.
Nas “cartas” de Sílvio Romero, cita o próprio Rui Barbosa e atacam juntos os
positivistas:
‘Politicamente, o comtismo
é um organizador exótico e funesto. Seus princípios de constituição temporal
nada absolutamente inovaram para a doutrina da liberdade. Seu ideal, em matéria
de governo, tende para as formas de uma opressão férrea, que a teocracia não
excedeu. Seus livros santos não conhecem a democracia liberal, nem as
instituições representativas, nem a federação americana...’ Tais palavras
exprimem a verdade e são bem próprias para reduzir a legítimas proporções a incompetência
audaciosa dos afamados padres do Grand-Etre, quando ousam sobrepor-se à vida
pensante deste país, acreditando petulantemente que eles a monopolizam.
Nos governos militares
Sílvio Romero denunciou a ação ditatorial, a proposta de um estado interventor,
e o radicalismo positivista que desvirtuava o recém inaugurado republicanismo
brasileiro. Apostava nos governos civis e ali residia o pouco de esperança que
ainda mantinha. Quando os governos civis, liberais e cafeicultores chegaram ao
poder e foram se sucedendo sem que mudança radical alguma ocorresse, passou a
denunciar a “farsa republicana” de grandes e trágicas proporções. Seu olhar tornou-se
mais pessimista e com a vocação intelectual e racionalista de sempre, decidiu sistematizar
a natureza invariavelmente negativa do republicanismo no Brasil.
---
Fonte:
Luis Alberto Scotto Almeida: “Desilusão republicana:
percursos e rupturas no pensamento de Sílvio Romero, Euclides da Cunha e Lima
Barreto”. (Tese de doutoramento apresentada ao curso
de Pós-Graduação em Literatura, da Universidade Federal de Santa Catarina, sob
orientação do prof. Dr. João Hernesto Weber, como requisito parcial para
obtenção do título de doutor). Florianópolis,
2008. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br
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