24/04/2014

Missal, de Cruz e Sousa

 Missal, de Cruz e Sousa
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Poema em prosa

Para Suzanne Bernard (1959), em seu livro Le Poème en Prose, o poema em prosa “[...] é um gênero de poesia particular, que se utiliza da prosa ritmada para fins estritamente poéticos e que lhe impõe uma estrutura e uma organização de conjunto, cujas leis devemos descobrir: leis não somente formais, mas profundas, orgânicas, como em todo gênero artístico verdadeiro. Trata-se de um gênero distinto: não um híbrido a meio caminho entre prosa e verso”. Massaud Moisés (2001), inicialmente, não concorda em classificar o poema em prosa como gênero, pois, segundo ele, somente a prosa e a poesia, individualmente, assim poderiam ser definidas. Discorda, também, da afirmação de Suzanne Bernard de que o poema em prosa “não se trata de um híbrido a meio caminho entre prosa e verso”, pois, segundo ele, “se substituíssemos a palavra verso por poesia, a afirmação claudicaria”, perdendo sua linha de sustentação teórica.

Ao se falar em poema em prosa, está-se dizendo que determinada obra possui a “forma” de um poema (com poesia, lirismo), manifestado na formatação do “gênero”   em prosa (texto corrido, demarcado por parágrafos). Por essa razão, Moisés (2001: p.349) clarifica que o poema em prosa se tornou de uso corrente no Simbolismo brasileiro, dado o caráter substancialmente poético desse movimento literário.

O poema em prosa brasileiro, segundo Moisés (p.351), segue os moldes iniciados pelo francês Aloysius Bertrand, em 1842. A ele, portanto, é atribuída a paternidade do poema em prosa. Bertrand, por sua vez, era considerado mestre de Charles Baudelaire. Seguindo a linha do seu tutor literário, Baudelaire publica suas primeiras composições na modalidade poema em prosa a partir de 1853. No Brasil, Raul Pompéia foi quem ousou escrever os primeiros textos em poema em prosa, a partir de 1883, mas foi pelas mãos dos simbolistas, mais especificamente Cruz e Sousa, que o poema em prosa ganhou notoriedade, ainda na segunda metade do século XIX. Em solo nacional, o poema em prosa traz em si uma verve revolucionária, contrariando estilos da época e acentuando o poder de persuasão do discurso.

Não se precisa ir tão longe para teorizar e exemplificar o poema em prosa. Basta recorrer ao próprio Cruz e Sousa que, valendo-se de uma didática exemplar (e intertextual), descreve suas impressões acerca dessa modalidade de expressão literária por meio do texto “Intuições", também em poema em prosa:

Quanto à prosa, para ligar um fio de palestra que já há dias tivemos e que agora correlaciona-se a estes assuntos, dir-te-ei que a prosa não é qualidade excepcional dos prosadores exclusivos. Para um espírito complexo de Arte, para o verdadeiro Clarividente, para o Poeta, na grande acepção de sensibilidade desse vocábulo, prosa e verso são teclas, órgãos diferentes onde ele fere as suas Idéias e Sonhos. Prosa e verso são simples instrumentos de transmissão do Pensamento. E, quanto a mim, se me fosse dado organizar, criar uma nova forma para essa transmissão, certo de que o teria feito, a fim de dar ainda mais ductibilidade e amplidão ao meu Sonho. Nem prosa nem verso! Outra manifestação, se possível fosse. Uma Força, um Poder, uma luz, outro Aroma, outra Magia, outro Movimento capaz de veicular e fazer viver e sentir e chorar e rir e cantar e eternizar tudo o que ondeia e turbilhona em vertigens na alma de um artista definitivo, absoluto.
A prosa não pode ser sempre de caráter imutável, impassível diante da flexibilidade nervosa, da aspiração ascendente, da volubilidade irrequieta do Sentimento humano.
Não há hoje, nesta Hora alta e suprema dos tempos, fórmulas preestabelecidas e constituídas em códigos para a estrutura da prosa, principalmente quando ela é feita por uma sensibilidade   doentia e extrema. Há tantas maneiras de fazer cantar a prosa, de a fazer viver, radiar, florir e sangrar, quantas sejam as diversidades dos temperamentos reais e eleitos.
É um caquetismo intelectual ou cavilosidade dos que só produzem verso e dos que só produzem prosa, não perceberem que determinado artista se manifesta igualmente no verso e na prosa, especialmente quando nessa prosa ele consegue traduzir, comunicar com clareza, com profundidade, a sua estesia, a sua idiossincrasia, os seus êxtases, as suas ansiedades íntimas. Pouco importa que essa prosa não guarde regularidades de preceitos, de dogmas, de convenções, que embora partindo às vezes de cérebros até certo ponto livres, são ainda, de certo modo, por certas causas, convenções puras. O que importa é que o artista consiga dizer imperturbavelmente, com a sinceridade dos seus nervos e da sua visão, o que de mais delicado e elevado experimenta (p.585-586).

Para Cruz e Sousa, o artista pode buscar novas formas de se expressar, podendo ser em prosa, em poesia, as duas ao mesmo tempo, ou nem prosa e nem poesia, dependendo do “espírito complexo da Arte” impregnado na alma do artista, o que é responsável por proporcionar “outro Aroma, outra Magia, outro Movimento” à produção artística. Conforme ele, o prosador não precisa ser um exclusivo criador em prosa; tampouco o poeta, de poesia. Ambos, independentemente da marca, ocupam-se em transmitir um pensamento, um estado de alma, à revelia da forma como o texto é distribuído na folha de papel. Cruz e Sousa deseja ir além da palavra e da forma. Sua arte de prosador e de poeta extrapola a escrita e os aspectos perceptíveis à luz da razão. Tudo é força e poder. Tudo é mágico e carrega essências exóticas.

Conforme Suzanne Bernard, existem duas características primordiais para a existência do “poema em prosa”: brevidade e gratuidade, esta última utilizada no sentido de espontaneidade, de naturalidade. Segundo Amaral, esses pré-requisitos foram atendidos por Cruz e Sousa em Missal, pois os textos são relativamente curtos, de duas a três páginas. No entanto, como à época a tendência à narração e à discussão de problemas estéticos ganhava mais e mais fôlego, essa amplitude discursiva é acentuada em          Evocações, transformando cada texto em pequenos ensaios estéticos, como é o caso de “Emparedado”, escapando às características propostas por Suzanne Bernard.

Sobre o assunto, a posição defendida nesta pesquisa está alinhada ao pensamento de Pires (2002, p.367-380), descrito em sua pesquisa      Pela volúpia do Vago: O Simbolismo – O poema em prosa nas literaturas portuguesa e brasileira. Conforme ele, ainda não há consenso entre os estudiosos acerca do valor dos poemas em prosa de Cruz e Sousa, os quais são “mal assimilados e incompreendidos pela crítica”. Salienta que, “[...] no geral, há certo descaso – e falta de subsídios crítico-teóricos – em relação à poesia em prosa de Cruz e Sousa, vista negativamente como narrativa falhada. Assim, verifica-se que continua em aberto a necessidade de uma análise mais acurada dos poemas em prosa do autor”.

Em sua tese, Pires (2002) reúne o posicionamento de alguns críticos sobre o assunto. De um lado, dentre os que consideram o poema em prosa de Cruz e Sousa menor do que sua poesia estão Sílvio Romero, José Veríssimo, Ronald de Carvalho, Raimundo Magalhães Júnior, Gama Rosa, Alfredo Bosi, dentre outros. Ronald de Carvalho (1922, p.379), na Pequena história da literatura brasileira, diz que “A prosa de ficção dos simbolistas, de que Missal e as Evocações, de Cruz e Sousa, dão bem a medida, é despicienda e de valor duvidoso.” (apud Pires, p.369). Wilson Martins, por sua vez, em Pontos de vista (1962), afirma que “O prosador, em Cruz e Sousa, é, com grande freqüência, medíocre e menos que medíocre (inclusive em Missal): nele, também, o nosso poema em prosa e a nossa prosa poética não atingiram culminâncias sensacionais.” (apud Pires, p.370).

Em contrapartida, nomes como Massaud Moisés, Sonia Brayner, Terezinha Tagé, Tristão de Athayde, Ivan Teixeira, Sílvio Castro vêem o poema em prosa de Cruz e Sousa como algo original, típico de quem inventa o seu próprio canto a partir da desconstrução das formas tradicionais, à revelia das normas literárias rígidas. Nestor Vítor, por sua vez, procura agir de forma isenta, avaliando tanto o valor da poesia como do poema em prosa, sem esconder sua preferência pela poesia em versos do Poeta Negro, destaca Pires. A estudiosa Sonia Brayner, em  Labirinto do espaço romanesco (1979, p.238-239), ao se referir às obras Missal e Evocações, de Cruz e Sousa, diz que “Seus poemas em prosa são movimentos de re-flexão sobre a negatividade da situação de ‘emparedado’, distanciado para sempre de uma possível unidade com o mundo. A ironia trágica que lhe exaspera a voz poética encontra na construção mais flexível do poema em prosa campo para a violência de sua inspiração torturada. [...] Esta narratividade essencial que tenta captar a linguagem do sonho, da memória e da experiência corresponde a uma    fala subjetiva sem esquemas preestabelecidos a criar sua própria modulação. [...] Um clima de superexcitação nervosa, de alucinação, de onirismo invade os poemas em prosa de Cruz e Sousa.
[...]”.


A título de conclusão, sentencia: “Nenhuma obra soube tão bem traduzir para a literatura brasileira do final do século XIX o avançado estágio da luta interior que se [travava] na procura de expressão do homem moderno”. (apud Pires, p.371) [negrito meu]


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Fonte:

Volnei José Righi: “O poeta emparedado: tragédia social em Cruz e Sousa”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília – UnB, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira, sob orientação da Profª Drª Sylvia Helena Cyntrão). Brasília, 2006. Disponível em: http://repositorio.unb.br/

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