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A Desripção da Ilha
O poema Descripção da
Ilha de Itaparica vem, na edição príncipe, separado do poema Eustachidos
por um frontispício divisório. Só aí se declara ser esta a ilha à qual se fez referência
no canto V da narrativa da vida de Santo Eustáquio. As estâncias – oitavas-rimas
– vêm numeradas com algarismos romanos de I a LXV. O poema, portanto, possui
520 versos. Antecedendo à primeira estrofe vem, à maneira de subtítulo, a expressão
“Canto Heróico”. Essa designação diz respeito ao fato de os versos empregados
na descrição seguirem o mesmo padrão do poema épico que a antecede – são versos
decassílabos, em sua maior parte heróicos.
Começa o texto, como de
praxe, pela proposição: diz o poeta que cantará em “heróico verso, e sonoroso”
a sua pátria. Movido de “ânimo heróico, peito generoso”, faz uma apóstrofe ao
leitor, argumentando que, por pior que seja o local de nascimento, não deve ninguém
negar seu berço. Ele menciona lugares como o Ponto, a Líbia ardente, os Alpes gelados,
o Etna comburente e o Píndaso – para dizer em seguida: “Nunca queiras Leitor, ser
delinquente, / Negando a tua Pátria verdadeira”. A referência ao Píndaso ocorre
em Camões (2002, v.III, p.257), na Écloga V, que começa pelo verso “A quem
darei queixumes namorados”, em versos nada elogiosos ao lugar:
“Ou tu do
monte Píndaso és nascida,
ou mármore
te pariu, fermosa e dura:
que não
pode ser seja concebida
dureza tal
de humana criatura;
ou és
quiçais em pedra convertida,
ou tens de
natureza tal ventura;
porém não
fez em ti boa impressão
tornar-te
só de mármore o coração.
Pode-se inferir da queixa do pastor, na écloga, que o Píndaso não era lugar de se elogiar – exceto por seus naturais, já que ao elogio da pátria estão todos obrigados.
Segue-se,
na terceira estância, a invocação à musa, com referência ao monte Hélicon, habitado
por musas, onde ficavam as fontes Aganipe e Hipocrene, cujas águas conferiam
inspiração poética a quem delas bebesse. Diferentemente da invocação que dá
início ao poema Eustachidos, a referência na “Descrição da Ilha” é
exclusivamente mitológica; naquele poema, para
atender à natureza católica do assunto, eram invocados Deus Onipotente e a
Virgem Maria. A esta, pede o poeta: “Sede a minha Calíope”.
Começa a descrição pela
localização geográfica e pelo elogio mitológico da ilha e suas praias –
estâncias IV a VIII. A situação geográfica da ilha é precedida de um rápido retrospecto
histórico da descoberta do Brasil por Pedro Álvares Cabral. No recôncavo, situa-se
Itaparica em frente à cidade da Bahia. Para descrevê-la, vale-se o poeta da mitologia: o mar que a rodeia é referido
como abraço de Netuno, a formosura do lugar faria
Citeréia trocar por ela a sua Chipre, e por suas praias de areia branca
passeiam Galatéia e seu cortejo. A idéia de que Citeréia trocaria Chipre por
Itaparica é, conforme aponta Sérgio Buarque de Holanda, (1991, p.54-55)
apropriação de Manuel Botelho de Oliveira, que, no elogio à sua ilha da Maré,
escrevera: “E se algum tempo Citeréia a achara, / Por esta sua Chipre
desprezara” (OLIVEIRA, 1953, t.I, p.136).
Em
seguida, volta-se o poema para as coisas do mar, o entorno da ilha, mencionando
os pescados, os mariscos e a atividade dos
pescadores – estrofes IX a XV. O poeta descreve o exercício da pesca, os
artefatos usados nessa atividade – os saveiros, a rede, a tarrafa –; ressalta
os perigos do mar – “E quando Áquilo, e Bóreas proceloso / Com fúria os
acomete, eles ligeiros...” –; e compara os peixes na rede à mosca presa na teia
da aranha. A influência de Botelho é evidente, como se pode constatar pelos
seguintes versos
IX.
“Aqui se
cria o peixe copioso,
E os
vastos pescadores em saveiros” (1- 2)
XIII.
“Em canoas
também de quando em quando
Fisgão no
anzol alguns, que por golosos
Ficão
perdendo aqui as próprias vidas,” (,5-7)
XIV
Aqui se
acha o marisco saboroso” ( 1)
XIV
Em tudo
cede aos polvos radiantes” ( 8),
quando comparados aos
seguintes, do poema À Ilha da Maré:
“Aqui se
cria o peixe regalado” (...)
“E os
pobres pescadores em saveiros
(...)
Outros no
anzol fiados
Têm aos
míseros peixes enganados,
Que sempre
da vil isca cobiçosos
Perdem a
própria vida por gulosos”.
“Não falta
aqui marisco saboroso
Para tirar
fastio ao melindroso;
Os Polvos
radiantes...” (OLIVEIRA, 2005, p. 128)
Parte importante do poema,
que pode ser considerada seu núcleo, é dedicada à pesca da baleia – estrofes XVI a XLI. É nesse
trecho que Itaparica imprime um tom peculiar ao poema. Ele começa essa parte
retomando o episódio bíblico em que Jonas é engolido e depois vomitado por uma baleia. Após descrevê-la através de
metáforas, o poeta a nomeia e afirma que esse mamífero “só a esta Ilha se
sujeita” (XVIII, 2) – o que, para Coutinho (1968, p. 189), marca a intenção de
assinalar um privilégio “de que não poderia louvar-se a Ilha de Maré” de
Botelho de Oliveira. Nesse ponto, o poema, que tem descrição no nome, torna-se
uma narrativa. A pesca inicia-se quando o vento traz a baleia para as
proximidades da costa. Para alcançá-la, os pescadores, que são negros e mestiços,
utilizam-se de lanchas leves e veleiros. Os instrumentos usados para a pesca são
o arpão, lanças e cordas. A narrativa avança e são assinalados alguns
contrastes, como a pequenez do homem diante da imensidão do mar e da
monstruosidade da baleia:
XXI.
Assim
partem intrépidos sulcando
Os
palácios da linda Panopea,
Com
cuidado solícito vigiando
Onde
ressurge a sólida Balea.
Oh gente,
que furor tão execrando
A um
perigo tal te sentencea?
Como
pequeno bicho és atrevido
Contra o
monstro do mar mais desmedido? (grifo nosso)
Os versos grifados lembram
Camões: “Onde pode acolher-se um fraco humano, / Onde terá segura a curta vida, / Que não se
arme e se indigne o Céu sereno / Contra um bicho da terra tão pequeno?” (Lusíadas, I, 106.)
Após a
admoestação sobre os perigos enfrentados pelos pescadores e de algumas referências
mitológicas, a pesca da baleia é narrada. Os homens seguem o cetáceo com cautela
até que, quando estão bem próximos, um pescador, da proa, lança o arpão, ferindo-o.
O animal nada velozmente, tendo a lancha presa em si pela corda do arpão, até
se render aos repetidos golpes de lança. Depois de morta a baleia, um pescador
salta ao mar e prende sua boca para que não se encha de água, até que seja
rebocada para a praia. Logo após, lançam um sinal e outra lancha se aproxima
para ajudar a puxar o cetáceo. Ao chegarem à praia, a baleia é içada através de
uma “trusátil máquina”, que Itaparica descreve
como sendo um sistema simples de roldanas, mas potente o suficiente para
rebocar o enorme peso. Quando a baleia é depositada na praia, muitas pessoas se
aproximam e os negros retalham-na. Sua banha é transformada em azeite, conforme
se lê nestes versos:
XL.
Em vasos
de metal largos, e fundos
O estão
com fortes chamas derretendo
De uns
pedaços pequenos, e fecundos,
Que o
fluido licor vão escorrendo:
São uns
feios Etíopes, e imundos,
Os que
estão este ofício vil fazendo,
Cujos
membros de azeite andam untados,
Daquelas
cirandagens salpicados.
Esse trecho também é
recheado de alusões a passagens bíblicas. Quando o animal é ferido e o sangue
tinge parte das águas, o poeta compara o mar de Itaparica ao famoso Mar
Vermelho:
XXIX.
Do golpe
sae de sangue uma espadana,
Que vai
tingindo o Oceano ambiente,
Com o qual
se quebranta a fúria insana
Daquele
horrível peixe, ou besta ingente;
E sem que
pela plaga Americana
Passado
tenha de Israel a gente,
A
experiência, e vista certifica,
Que é o
mar vermelho o mar de Itaparica.
Também o mito bíblico da
Torre de Babel é citado no poema, quando é descrita a multidão que rodeia a
baleia na praia:
XXXVIII.
Qual em
Babel o povo, que atrevido
Tentou
subir ao Olimpo transparente,
Cujo
idioma próprio pervertido
Foi numa
confusão balbuciente,
Tal nesta
torre, ou monstro desmedido
Levanta as
vozes a confusa gente,
Que
seguindo cad’um diverso dogma
Falar
parece então noutro idioma.
Alguns autores chamaram a
atenção para essa parte do poema – que trata da caça à baleia. Paes e Moisés
(1980, p. 200) consideram o trecho da pesca como um dos mais interessantes.
José Veríssimo (1969, p.72) cita a parte de preparação do azeite, que é feita
pelos negros, e chama a atenção para a palavra “cirandagens”, que, de acordo
com ele, foi “desviada do seu sentido vernáculo (= sarandalha) alimpaduras que
se apartam cirandando (joeirando) e se lançam fora, tem já a acepção brasileira
de restos imprestáveis,
imundície miúda, guloseimas vis”. Para Coutinho (1968, p. 189) esse trecho da pesca é o mais pessoal.
Nesta monografia, três
itens dessa parte do poema serão analisados: o realismo, a presença do trabalho
e do negro.
Pode-se afirmar que todo o
episódio da pesca da baleia é narrado minuciosamente, com um realismo
impressionante. Para demonstrar essa afirmação, serão comparados trechos do
poema com os estudos sobre a pesca da baleia no Brasil feitos por Myriam Ellis
no seu livro A baleia no Brasil colonial. A precisão demonstrada por
Itaparica está presente até na época do ano em que se praticava a pesca. De
acordo com Ellis (1969, p 40) a temporada da pesca iniciava-se no dia de Santo
Antônio ou de São João Batista, e a abundância da pesca dependeria de como
soprariam os ventos do sul. É possível encontrar essa mesma informação nestes
versos: “Tanto que chega o tempo decretado / Que este peixe do vento Austro é
movido”. (XIX, 1-2) Ellis (1969) informa que os tipos de embarcação usados eram
as lanchas baleeiras, saveiros e canoas, sendo que as lanchas eram
caracterizadas pelo mastro e verga, vela de brim, algodão ou aniagem, fateixas
e remos. A descrição das lanchas, que consta do poema, é equivalente: “E de todo
preciso prevenido, / Estão umas lanchas leves, e veleiras, / Que se fazem cos
remos mais ligeiras” (XIX, 6-8). De acordo com Ellis (1969, p.114-115), a
tripulação compunha-se de seis remeiros, arpoador e timoneiro ou patrão do
barco. O arpoador ficava no castelo da proa a vigiar a baleia e a controlar o
mestre do leme com sua voz e gestos. A perseguição ao animal era exaustiva,
exigindo, muitas vezes, ininterruptas horas de atividades, e cabia o arpoamento
à lancha que mais se aproximasse do cetáceo. Ellis (1969, p-116-117) afirma que o
espetáculo era empolgante: a caça a negacear e a frágil embarcação em evoluções,
a segui-la, a cerca-la e a buscar posições para o ataque. Na proa, o arpoador
de pernas afastadas como as pontas de um forcado, arpão em punho, aguardava o
momento de, com uma ou ambas mãos, lançar o ferro e alvejar a presa. Difícil
operação a exigir energia e destreza, golpe de vista, precisão, posto que o
arpão teria que varar uma camada de toicinho de 20 a 50 centímetros de
espessura, penetrar e cravar na carne de um animal dotado de vivacidade, vigor
e ligeireza.
Assim que a baleia
estivesse a uns 6 ou 8
metros da embarcação, o arpoador lançava o ferro no
dorso do animal, que ficava preso à embarcação através da ostaxa, se espadanava
e estrebuchava de dor e susto, e nadava mar afora à velocidade de 500 a 900 metros por minuto.
Tudo isso pode ser constatado através dos seguintes versos de Itaparica:
XXIV.
Mas
enquanto com isto me detenho,
O
temerário risco admoestando,
Eles de
cima do ligeiro lenho
Vão a
Balea horrível avistando:
Pegam nos
remos com forçoso empenho,
E todos
juntos com furor remando
A seguem
por detrás com tal cautela,
Que
imperceptíveis chegam junto dela.
XXV.
O arpão
farpado tem nas mãos suspenso
Um, que da
proa o vai arremessando,
Todos os
mais deixando o remo extenso
Se vão na
lancha súbito deitando;
E depois,
que ferido o peixe imenso
O veloz
curso vai continuando,
Surge cad’um
com fúria, e força tanta,
Que como
um Anteo forte se levanta.
XXVI.
Corre o
monstro com tal ferocidade,
Que vai
partindo o úmido Elemento,
E lá do
pego na concavidade
Parece
mostra Tétis sentimento:
Leva a
lancha com tal velocidade,
E com tão
apressado movimento,
Que cá de
longe apenas aparece,
Sem que em
alguma parte se escondesse.
XXVII.
Qual o
ligeiro pássaro amarrado
Com um fio
subtil, em cuja ponta
Vai um
papel pequeno pendurado,
Voa veloz
sentindo aquela afronta,
E apenas o
papel, que vai atado
Se vê pela
presteza, com que monta,
Tal o
peixe afrontado vai correndo
Em seus
membros atada a lancha tendo.
XXVIII.
Depois,
que com o curso dilatado
Algum
tanto já vai desfalecendo,
Eles
então, com força, e com cuidado,
A corda
pouco a pouco vão colhendo;
E tanto
que se sente mais chegado
Ainda com
fúria os mares combatendo,
Nos
membros moles lhe abre uma rotura
Um novo
Aquiles c’ũa lança dura.
Ellis (1969, p. 40)
continua sua descrição, referindo-se às pessoas que se aglomeravam na praia para assistir à caça e aguardar o
reboque do animal – que dependia, além das ferramentas, de eventos naturais
como maré, vento, etc. A bandeirinha branca era o sinal da vitória dos
pescadores sobre a baleia. Quando ela era içada, uma baleeira ia ao encontro dos pescadores levando
um cabo
gurnido a cabrestante e que, enfiado no orifício aberto no bufador da baleia a reboqueava até a praia ou até um
dos trapiches que avançavam mar adentro. Acionado o engenho- às vezes eram dois
ou três – á ação do braço escravo, era a baleia içada vagarosamente fora d’água,
aproveitado o impulso da maré, sem o qual inútil seria o forcejar do
cabrestante a ranger e a retesar a corda ligada à massa inerte de toicinho e
carne de dez, quinze, vinte ou mais toneladas. Guindastes completavam a tarefa
de retirar da água o gigante. (ELLIS, 1969, p. 120)
Nada disso faltou ao
espírito observador de Itaparica:
E o poeta continua:
XXXII
Tanto que
a presa tem bem sojugada
Um signal
branco lançam victoriosos,
E outra
lancha para isto decretada
Vem
socorrer com cabos mais forçosos:
Uma, e
outra se parte emparelhada,
Indo a
vela, ou cos remos furiosos,
E pelo mar
serenas navegando
Para terra
se vão endireitando.
XXXIII
Cada um se
mostra no remar constante,
Se lhe não
tem o Zéfiro assoprado,
E com
fadigas, e suor bastante
Vem a
tomar o porto desejado.
Deste em
espaço não muito distante,
Em o
terreno mais acomodado
Uma
Trusátil máquina está posta
Só para
esta função aqui deposta.
XXXVII
O povo,
que se ajunta é infinito,
E ali tem
muitos sua dignidade,
Os outros
vêm do Comarcão destrito,
E
despovoam parte da Cidade:
Retumba o
ar com o contínuo grito,
Soa das
penhas a concavidade,
E entre
eles todos tal furor se accende,
Que às
vezes um ao outro não se entende.
Em relação à fabricação do
azeite, é importante frisar que esse produto era muito importante na economia doméstica colonial.
Era usado no preparo de sabão, na iluminação
pública, na construção civil, dentre outros usos (ELLIS, 1969, p. 122). Em relação
à sua fabricação, escreve a autora:
Descarregadas
as enormes lascas de toicinho na oficina do açougue da fábrica de beneficiar o
azeite, cortadores e picadores armados de facões que manobravam em cepos de
madeira, reduziam-no a postas e depois a nacos de um quilo mais ou menos. Á
medida que o picavam, removiam-no ao compartimento anexo, a oficina das
fornalhas, onde fundia durante dez ou doze horas, em enorme tachos – caldeiras –
de cobre ou ferro – de 50 ou mais arrobas as maiores – ao fogo contínuo e crepitante
que luzia sob as grelhas.
Itaparica resumiu o
trabalho de feitura do azeite de forma surpreendente:
XXXIX
Desta
maneira o peixe se reparte
Por toda
aquela cobiçosa gente,
Cabendo a
cada qual aquela parte,
Que lhe
foi consignada do regente:
As banhas
todas se depõem à parte,
Que juntas
formam um acervo ingente,
Das quaes
se faz azeite em grande cópia,
Do que
esta Terra não padece inópia.
XL
Em vasos
de metal largos, e fundos
O estão
com fortes chamas derretendo
De uns
pedaços pequenos, e fecundos,
Que o
fluido licor vão escorrendo:
São uns
feios Etíopes, e imundos,
Os que
estão este ofício vil fazendo,
Cujos
membros de azeite andam untados,
Daquelas
cirandagens salpicados.
O realismo presente nessa
parte do poema não se restringe apenas à pesca em si. A pena de Itaparica não parou nem diante de temas
tabus durante muito tempo na literatura brasileira: o trabalho manual e o
negro. Ambos, durante alguns séculos, foram simplesmente apagados dos textos
literários. Ora, para se falar em trabalho, necessário era se falar nos negros que, como afirmou Antonil (1968,
p.120) “Os escravos são as mãos & os
pés do senhor do engenho, porque sem elles não he possível fazer, conservar &
aumentar fazenda, nem ter engenho corrente”. Como houve, durante muito tempo no
Brasil, a tentativa de se apagar a memória e a importância dos negros no
contexto econômico e social brasileiro, o silêncio foi a arma escolhida. Basta,
também, lembrar que Rui Barbosa, ao tempo da abolição da escravatura, mandou queimar todos
os documentos relativos à entrada de escravos no Brasil, para apagar os negros
da história brasileira. A literatura, que está sempre relacionada à sociedade
em que é produzida, o mesmo modo, ignorou os
negros. O negro começou a aparecer em textos literários, com mais freqüência,
apenas no final do Romantismo. A primeira personagem negra (mas que tinha todos
os traços de uma européia) foi a Isaura do romance A Escrava Isaura, de
Bernardo Guimarães. Antes, porém, aparece, também, um negro idealizado, o Quitúbia, de José Basílio
da Gama (PICCHIO, 1977, p. 34). O negro “real” começará a ter relevo na
literatura apenas a partir de Castro Alves, no final do século XIX. Afirma Picchio
(1977, p. 33): “A transposição literária é lenta e só ocorre por
conscientização social”. Entretanto no século XVIII, Itaparica aparece como uma
voz dissonante e a frente de seu tempo em relação ao binômio trabalho/negro. Na
Descripção da Ilha de Itaparica... estão os dois: trabalho e negro
retratados sem idealização, sem juízo de valor. Quem enfrenta os mares para
pescar a enorme e perigosa baleia é o negro e o mestiço, quem transforma a
banha em azeite através de um árduo trabalho são os negros. Nesse aspecto, o
poema tem um ar moderno, realista, que não se encontra em seus contemporâneos e
que outros escritores posteriores como os primeiros românticos não conheceram.
Essa característica peculiar da obra itaparicana não se poderia omitir neste
trabalho.
Após o episódio da caça à
baleia, o poeta retoma a descrição da ilha – estâncias XLII a LXIV –, agora em
focalização mais aproximada, referindo-se à arquitetura (um forte e ruínas de
um engenho de açúcar), às águas e suas fontes, ao relevo, aos animais que aí se
criam, às flores (açucena, bonina, cravo e jasmim), às frutas (uva, coco,
banana, limão, laranja, romã, melão, melancia, figo, ananás, jaca, caju,
castanha, araçá, oiti, cajá, pitanga e maracujá), aos alimentos (mandioca,
inhame, fava, cará, batata, milho, arroz e mangará) e, de um modo abrangente, à
vegetação e às aves. Logo após comentar sobre as ruínas de um forte, o poeta na
estrofe seguinte ressalta que na Ilha de Itaparica não há engenho de açúcar:
XLIII
Não há
nesta Ilha engenho fabricado
Dos que o
açúcar fazem saboroso,
Porque um,
que ainda estava levantado
Fez nele o
seu ofício o tempo iroso:
Outros
houve também, que o duro fado
Por terra
pôs cruel, e rigoroso,
E ainda
hoje um, que foi mais soberano
Pendura as
cinzas por painel Troiano.
Quando ele faz essa
afirmação, está dialogando com o poema À Ilha da Maré, visto que, nessa
silva, Oliveira (2005, p. 135-136) dedica alguns versos a um próspero engenho:
Nesta ilha
está muito ledo, e mui viçoso
Um Engenho
famoso,
Que quando
quis o fado antiguamente
Era rei
dos engenhos preminente,
E quando
Holanda pérfida, e nociva
O queimou,
renasceu qual fênix viva.
Há, também, muitas outras
referências ao poema de Botelho de Oliveira.
Quando são descritas as
frutas, percebe-se nitidamente a influência da silva nos versos itaparicanos, como se pode constatar
através dos seguintes exemplos: “As frutas se produzem copiosas, / De várias
castas e várias cores, / Umas se estimam muito por cheirosas (XLVII)”, quando comparados a estes, da silva À
Ilha da Maré:
“As
fruitas se produzem copiosas,
E são tão
deleitosas,
Que como
junto ao mar o sítio é posto,
Lhes dá
salgado o mar o sal do gosto” (OLIVEIRA, 2005, p.129).
Em relação
à descrição das uvas, podem-se apontar dois intertextos: o primeiro é a silva e
o segundo são textos dos primeiros cronistas coloniais que deram notícias sobre
o Brasil. O ponto em comum é o fato de ambos afirmarem que em território
brasileiro as uvas produziam duas vezes por
ano. Seguem os trechos, sendo o primeiro de Santa Maria Itaparica:
XLVIII
Entre elas
todas têm lugar subido
As uvas
doces, que esta Terra cria,
De tal
sorte, que em número crescido
Participa
de muitas a Bahia:
Este fruto
se gera apetecido
Duas vezes
no ano sem profia,
E por isso
é do povo celebrado,
E em toda
a parte sempre nomeado.
O segundo é de Manuel
Botelho (2005, 130):
As uvas
moscatéis são tão gostosas,
Tão raras,
tão mimosas,
Que se
Lisboa as vira, imaginara
Que alguém
dos seus pomares as furtara;
Delas a
produção por copiosas
Parece
milagrosa,
Porque
dando em um ano duas vezes,
Geram dois
partos, sempre, em doze meses.
O terceiro trecho vem de uma
carta, de 1549, do Padre Manuel da Nóbrega (2006, p. 32), da Companhia de
Jesus:“Há nela diversas frutas de que comem os da terra, ainda que não sejam
boas como as daí, as quais creio que dariam aqui, se se plantassem. Porque vejo
dar-se parreiras, uvas até duas vezes por ano (...)”.
Fecha-se a descrição com a
referência pormenorizada à divisão da ilha em duas grandes Freguesias (a da
matriz dedicada ao Redentor e a de Santo Amaro), passando daí às capelas (São
Lourenço, duas de São João, Senhora do Bom Despacho, Santo Antônio, Nossa
Senhora das Mercês, Senhora da Penha e São José). Essa descrição casa perfeitamente
com o relato de Pitta (1950) sobre a ilha: “Tem duas magníficas igrejas paroquiais, outros formosos templos e boas
capelas particulares; teve alguns engenhos, que já não existem mais, mas
permanecem outras fazendas de grande rendimento e muitas casas de sumptuosa arquitectura”.
Por fim,
no epílogo, diz o poeta: “Não usei termos de Poeta experto, / Fui historiador em
tudo certo.” – estrofe LXV. É interessante comentar um detalhe sobre esses
versos finais. De acordo com Moisés (1985, p.
128) a denominação “poeta esperto” (sic) faz uma referência negativa aos
metrificadores gongóricos – o que, para esse autor, faz com que a poesia de
Itaparica seja anunciadora do Arcadismo e indique a superação do Barroco. Esse
argumento, que interpreta “esperto” (sic) como “perspicaz, sagaz”, atribui ao
poeta uma intenção crítica que não reconhecemos em seus versos – “esperto”, na verdade,
tem no verso, o sentido de “especialista, que tem por fundamento sua própria experiência”.
---
Fonte:
Gracinéa Imaculada Oliveira: “Descripção da ilha de Itaparica, termo da cidade da Bahia, da qual se faz menção no canto quinto, de Frei Manuel de Santa Maria Itaparica: edição interpretativa e estudo.” (Monografia apresentada ao curso de Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do Grau de Bacharel em Letras – Português. Orientador: Prof. Dr. José Américo de Miranda Barros). Belo Horizonte, 2007
Fonte:
Gracinéa Imaculada Oliveira: “Descripção da ilha de Itaparica, termo da cidade da Bahia, da qual se faz menção no canto quinto, de Frei Manuel de Santa Maria Itaparica: edição interpretativa e estudo.” (Monografia apresentada ao curso de Letras da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do Grau de Bacharel em Letras – Português. Orientador: Prof. Dr. José Américo de Miranda Barros). Belo Horizonte, 2007
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