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O teatro de Martins Pena
Luís Carlos Martins Pena (1815-1848)
Tudo é parcialidade, e não só no mundo
como no céu, que é mais ainda!
Martins Pena foi essencialmente
um homem de teatro. Entretanto não descobriu a vocação imediatamente. Sem
fortuna, órfão de pai e mãe aos 10 anos, e sem acesso ao grupo de intelectuais
ao redor da confraria do trono, foi encaminhado para as aulas de comércio por
seus tutores comerciantes. Embora tivesse terminado o curso com brilho, não
sentia apelo pela profissão, e com certeza ajudado pela irmã que se casara com
um alto funcionário da Alfândega, passou a estudar na Academia de Belas Artes,
que ainda contava com alguns professores franceses da missão cultural. Com eles
Martins Pena adquiriu conhecimentos de pintura, estatuária e arquitetura.
Também estudou música e canto, por conta do bom ouvido e de sua admirada voz de
tenor. Enquanto isso também estudava literatura e inglês, francês e italiano,
línguas que chegou a falar fluentemente, segundo dizem.
Essa formação variada e não
ortodoxa decerto facilitou-lhe o desenvolvimento do gosto artístico, aguçando o
ouvido e o olhar de observador, qualidades imprescindíveis a quem alimente
pretensões teatrais. "Bons olhos e bons ouvidos (ouvido do crítico de
música que ele foi) eis certamente o que não faltava a Martins Pena."
Acrescente-se o momento politicamente perturbado em que viveu, que deve ter
contribuído para o amadurecimento da sensibilidade social, atento aos
movimentos revolucionários da época. Sua estréia na literatura, com o
conto-crônica "Um episódio de 1831", publicado em 1838 no Gabinete de
Leitura, já é revelador desse interesse, pois é na cena social que se concentra
sua atenção, descrevendo os atos de selvageria que se seguiram à abdicação de
d. Pedro I. Com 16 anos na época, deve ter assistido a cenas semelhantes e
ouvido comentários inflamados sobre os acontecimentos.
O ano de 1838 foi fundamental não
só para o teatro brasileiro, mas também para nosso autor, que pouco depois da
estréia de Antonio José, teve sua primeira comédia, O juiz da roça, levada à
cena, embora sem menção de autoria, talvez pelo temor de com isso dificultar a
conquista do emprego público: realmente foi nessa época que conseguiu o cargo
de amanuense com a ajuda do cunhado poderoso, fazendo carreira no setor. Quando
morreu, a caminho do Brasil, era nosso diplomata em Londres, e estava prestes a
iniciar uma nova etapa. Quem sabe escrever a ópera cômica brasileira que nos
prometeu nos Folhetins? "Aonde ele iria depois desse impulso, jamais
saberemos", pondera Décio de Almeida Prado.
Mas nesses inícios, talvez o
desejo de seguir a moda, alçando-se a um gênero maior, o tenha levado a
experimentar o drama. Escreveu cinco, extraordinariamente medíocres, recheados
de retórica enfática e palavrosa, inconsciência de recursos cênicos e
ocorrências mirabolantes. Razão teve o Conservatório Dramático, em sessão de 22
de maio de 1846, ao considerar D. Leonor Teles "uma monstruosidade".
Mas talvez nenhum dos dramas ultrapasse Itaminda, no qual a protagonista é
trancada na oca pela vilã e, para salvá-la, os portugueses tenham de arrombar a
porta. Diante disso só podemos repetir o próprio Martins Pena, ao comentar nos
Folhetins a encenação de certas óperas: "é duro de engolir!".
Se às vezes as comédias de Pena
são avaliadas como ingênuas, negligentes quanto à linguagem e ideologicamente
isentas ("a verdade aqui, para não provocar indignação, carece de ser
auxiliada provocando bom frouxo de riso", diz ele nos Folhetins ), por
outro lado encontramos observações como a de Ruggero Jacobi e a de Sílvio
Romero: "Se se perdessem todas as leis, escritos, memórias da história
brasileira dos primeiros cinqüenta anos deste século XIX, que está a findar, e
nos ficassem somente as comédias de Pena, era possível reconstruir por elas a
fisionomia moral de toda essa época".
Não há como discordar. Aí estão,
desdobrados em vários momentos, nossos vícios maiores: a política do favor como
mola social, a corrupção em todos os níveis, a precariedade e atraso do
aparelho judicial, a exploração exercida por estrangeiros e a má assimilação da
cultura européia importada, que o inspirou a escrever irônicas paródias da
ópera, como O diletante, ou dos melodramas levados à cena por João Caetano.
Acrescentem-se a esse rol o contrabando de escravos, os mecanismos da
contravenção, a servidão por dívida, comportamentos sexuais e familiares, etc.
Esses e outros aspectos que percorriam a sociedade brasileira de alto a baixo
são exibidos no palco.
Segundo Paula Beiguelman, a
comédia de Pena se baseia principalmente na quebra de autoridade, ocasionada
pelos efeitos desintegradores da urbanização. Acrescento entretanto que algumas
falas e desfechos podem ser considerados morais, mas não muito, como em O irmão
das almas, quando Paulino abençoa recém-casados na última cena com as palavras:
"Sejam felizes se o puderem"; ou como em O namorador, em que, ao conselho
bem-humorado de que os velhos devem deixar os namoros para os jovens, juntam-se
informações menos inocentes: o desejo de adultério e a manipulação dos
inferiores; completa o quadro a dominação da mulher e o contraponto contínuo
dos africanos a trabalharem calados, enquanto os outros se divertem na noite de
são João. Não surpreende que a censura estivesse sempre atenta a essas peças.
Cito um trecho de Os dous ou O
inglês maquinista, que estreou em 1845, sendo imediatamente censurada pela
Câmara dos Deputados, porque "aparece em cena um contrabandista de
africanos trazendo um debaixo de um cesto". Trata-se da cena 13, quando o
Negreiro entra na sala acompanhado de um velho preto de ganho com um cesto na
cabeça, "coberto com um cobertor de baeta encarnada".
Negreiro — Boas noutes.
Clemência — Oh, pois voltou? O
que traz com este preto?
Negreiro— Um presente que lhe
ofereço.
Clemência — Vejamos o que é.
Negreiro — Uma
insignificância...Arreia, pai! (Negreiro ajuda o preto a botar o cesto no chão.
Clemência, Mariquinha chegam-se para junto do cesto, de modo porém que este
fica à vista dos espectadores.)
Clemência — Descubra. (Negreiro
descobre o cesto e dele levanta-se um moleque de tanga e carapuça encarnada, o
qual fica em pé dentro do cesto.) Ó gentes!
Negreiro — Então, hem? (Para o
moleque) Quenda! Quenda! (puxa o moleque para fora.)
Clemência — Como é bonitinho!
Negreiro — Ah, ah!
Clemência — Por que o trouxe no
cesto?
Negreiro — Por causa dos
malsins...
Clemência — Boa lembrança.
(Examinando o moleque.) Está gordinho...bons dentes...
Negreiro, à parte, para Clemência
— É dos desembarcados ontem no Botafogo.
Não podemos nos esquecer que a
questão do tráfico negreiro era a mais espinhosa do momento. De forma
provocativa Martins Pena não só exibe todo o trâmite da contravenção, que
envolvia deputados, desembargadores e ministros, como também transforma em
vilões figuras respeitadas na sociedade. O inglês, não por acaso denominado
Gainer, bem poderia exclamar como seu conterrâneo em As casadas solteiras:
"Brasil é bom para ganhar dinheiro e ter mulher... Os lucros... cento por
cento... É belo".
Mais adiante, na mesma peça, a
protagonista, com ironia chamada Clemência, interrompe a conversinha social
para ir lá dentro chicotear as "negras", a propósito de louças
efetivamente quebradas pelo cão. À volta, ruborizada e ajeitando o lenço ao
redor do pescoço, comenta que não gostava de "dar pancada". À
semelhança de muitas outras comédias, assistimos aqui ao jogo das palavras
desmentindo a realidade da cena e das personagens. Estas estão por demais
mergulhadas no contexto escravista para entenderem a incompatibilidade entre o
que dizem e o que fazem, movimento que constrói a ironia dramática da peça.
Concentrada embora na corte, o
teatro de Pena faz alusão à maioria das regiões brasileiras, mas também a
outras terras, Portugal, França (denúncia da cultura mal assimilada), Itália (a
mania da ópera) e Inglaterra (a exploração econômica), que serve ao
comediógrafo para a defesa dos interesses nacionais. Por exemplo, um derrotado
artesão brasileiro (Francisco, em O caixeiro da taverna) explica as razões de
seu fracasso pela presença, no Império, de alfaiates e cabeleireiros franceses,
dentistas americanos, maquinistas ingleses e relojoeiros suíços. Só restava aos
nacionais arranjarem um emprego público, se por acaso tivessem algum conhecido
influente. Mas às vezes nem mesmo isso bastava. "Há coisa de doze para
catorze anos, eu era empregado público; Demitiram-me porque diziam que eu
roubava a nação. Qual roubava! A nação é que me roubava, pagando-me menos do
que eu merecia" (variante de O irmão das almas).
Entre os personagens encontramos
funcionários públicos e toda uma gama de empregados de repartições,
representantes da elaboração lenta e difícil de uma camada social intermediária
no Brasil. A eles acrescentam-se caixeiros, classe politicamente avançada na
época ("insolentes", diz Macedo em Luxo e vaidade), sacristãos,
soldados, artesãos, floristas e costureiras, essas últimas tidas como
profissões prostituídas de moças pobres. Em O caixeiro da taverna, Angélica
afirma, muito ironicamente, que Deolinda, costureira, "cose para fora com
muita honestidade":
Angélica — Ah, a senhora é a Sra.
Deolinda, que cose para fora com Muita honestidade?
Deolinda — Uma sua criada.
Angélica — E que vem em pessoa
tomar medida aos fregueses... em suas próprias casas... e tudo com muita
honestidade?
Em O irmão das almas, cuja
sonoplastia recomendada pelo autor é o lúgubre dobrar de sinos durante toda a
ação, Jorge recorda com a irmã momentos de aperto financeiro, quando ela foi
aprender a fazer flores com uma francesa, com quem ele acabara brigando, "porque
isso de fazer flores parece-me assim... ofício muito leve" (variante da
cena 3).
Em O namorador ou A noite de S.
João surgem colonos imigrantes da Madeira, submissos à servidão por dívida,
mourejando durante todo o tempo, identificados aos escravos que têm a obrigação
de vigiar, sem possibilidade de juntar vinténs para a libertação. Por sua vez,
numa noite de Natal somos apresentados a uma ama-de-leite branca que perdera o
filho, e que se aluga a patroas que "embirram com amas negras", ficando
ao alcance do velho libidinoso da casa (As desgraças de uma criança).
Não é raro Martins Pena ser
comparado a Debret na pintura dos costumes do Brasil, e é bom que nos lembremos
que vários membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)
reagiram mal a alguns aspectos abordados pelo pintor francês na Viagem
pitoresca e histórica ao Brasil, "pela referência direta à escravidão com
cenas, por exemplo, de castigos a escravos". Acho que aí está o nó da
questão. A aparente despretensão dos trabalhos dos dois artistas, até pelas
dimensões e o meio que escolheram — pequenas aquarelas e minúsculas comédias ou
farsas —, revela um olhar independente sobre a sociedade brasileira, sem a
idealização da elite. Era impossível a qualquer observador aproximar as cidades
de Paris e Rio de Janeiro, esta com as ruas percorridas por enxames de
africanos, com escarificações no rosto, trabalhando e cantando para ritmar o
esforço. "O escravo estava por toda parte. A primeira coisa que ocorria a
alguém que melhorava de vida, até mesmo a um ex-escravo agora liberto, era
adquirir um escravo."
Comentando a própria aquarela
intitulada "Carros e móveis prontos para ser embarcados", Debret se
espanta ao encontrar escravos carregando na cabeça fardos pesados "neste
século das Luzes". Entende depois o motivo da resistência da população a
outro tipo de transporte: grandes ou pequenos proprietários de escravos, mesmo
"a classe mais numerosa, a do pequeno rentista e da viúva indigente"
teriam prejuízo ou perderiam o meio de subsistência com a modernização.
Diante disso, só restava aos
artistas inventar uma solução formal adequada às circunstâncias. Num ensaio
inaugural, Rodrigo Naves mostra que este foi o maior mérito de Debret. Vindo do
ateliê do neoclássico David, percebeu a diferença do meio e inteligentemente
procurou adequar-se a ele. Se as obras realizadas na França tinham "uma
forma ostensivamente forte", Debret "deriva para trabalhos acanhados
e modestos". O mérito não foi só a troca do óleo pela aquarela, mas a
própria realização dela, com linhas flutuantes, disposições inesperadas e
contornos pouco definidos — o que marca não só o afastamento do padrão francês,
mas uma percepção inteligente de nossa sociedade.
Martins Pena, por sua vez, apesar
das tentativas de vôos altos — tropeço também de seus contemporâneos —, acerta
na forma miúda, vivíssima, a todo momento posta à prova do palco. Seus
Folhetins valem também como um exemplo de sua formação, com minuciosa descrição
da dramaturgia da época através da encenação das óperas. Se lhe são familiares
as convenções teatrais e a tradição francesa, vira-se também para a prata da
casa: aproveita-se dos teatrinhos de feira, nos quais como no resto do mundo
era comum populares se misturarem a intelectuais, além do circo de cavalinhos,
a cujo encantamento se refere já em O juiz de paz na roça; menciona ainda os
teatros mecanizados, que infelizmente só conhecemos pelos anúncios nos
periódicos da corte e das províncias, tanto devia ser o seu sucesso. Ao alcance
de Pena estavam também as representações de rua, extremamente engenhosas
conforme as descreve Ewbank, com animais ensinados, fogos, e figuras "de
papel colorido sustentadas por delicadas armações", executando piruetas no
alto de mastros, bufões "irresistíveis" e até mesmo números da
Commedia dell´Arte, como a menção que faz a Punch e Juddy, uma das referências
de As desgraças de uma criança. Não se pode também esquecer a proliferação, a
partir da década de 1840, das caricaturas e dos desenhos cômicos, de saída
inspirados na Lanterna Mágica, Periódico Plástico-filosófico, de Araújo
Porto-Alegre.
Surpreendemos esse contexto
colorido e fragmentado nas minúsculas comédias de Pena, tecidas com fios de
qualidades diferentes. Na primeira peça, ainda treinando a mão, encontramos o
entremez articulado a uma estrutura de comédia clássica, mas o resultado ainda
é indeciso e muito preso ao documento. Mais tarde, em 1844, em O namorador ou A
noite de S. João, um de seus trabalhos mais bem urdidos e mais inovadores, Pena
conjuga três fios. O primeiro, o do enredo amoroso próprio da comédia de
costumes, embora não se trate de uma comédia de amor, a que ele nunca se
dedicou. O autor parece mais interessado em aprofundar uma dialética amorosa,
observada em suas diferentes fases, o que é quase impossível de se executar,
como ele o faz, numa comédia de um só ato. Nela há relações envolvendo sexo e
amor entre diferentes níveis da sociedade: entre jovens da mesma condição
econômica, outros mais pobres, entre velhos casados e ricos, entre serviçais,
entre patrão (moço ou velho) com empregadas, entre moço rico e vários tipos de
mulher: velha, moça, bonita, feia, branca, cabocla, escrava. Observe-se o
diálogo abaixo, cena 15, versando sobre o tempo e o amor:
Luís — Não a amo mais porque há
já três meses que ela me ama.
Clementina — Boa razão! Não a ama
porque ela ainda o ama.
A segunda linha explorada é a da
farsa rústica portuguesa, representada pelos ilhéus submetidos à servidão por
dívida. Aqui também Pena inova, pois as características dessa farsa
(rusticidade de personagens, palavras chulas e pancadaria) misturam-se à
patética revolta do ilhéu em relação à exploração de seu trabalho: "Oh!
Quem me dera viver sem trabalhar. Cresce-me água à boca quando vejo um rico.
São os felizes... que cá o homem anda de canga ao pescoço..." (cena 6).
Por fim temos a linha da farsa
propriamente dita, levada a cabo por um velho em suas investidas sexuais em
relação à ilhoa, que tem mais dois interessados: o marido e Luís, sobrinho do
velho, compondo todos uma ciranda cômica no melhor estilo.
Como ponto de convergência desses
três fios está a fogueira de são João, metaforizada no "fogo do
amor", tendo ao mesmo tempo valor funcional e utilitário, pois à sua luz
desmascara-se o velho amoroso.
Se olharmos a produção de Pena
como um todo, percebemos que a comédia que marca o ponto de inflexão da obra é
Os dous ou O inglês maquinista, que esboça em vários momentos uma comédia de
meios-tons, refinada, que poderia ser um caminho desenvolvido por Martins Pena,
se assim o desejasse. Observe-se a leveza do diálogo na cena 10, que funciona
pelo que não diz, e que é absolutamente impensável no teatro da época:
Mariquinha — ...Primo?
Felício — Priminha?
Mariquinha — Aquilo?
Felício — Vai bem.
Cecília — O que é?
Mariquinha — Uma cousa.
O Judas em sábado de Aleluia
(1844), obra-prima de apenas doze cenas, já mostra um teatrólogo dono das
técnicas e consciente do caminho escolhido (por essa época Martins Pena desiste
dos dramas a que tão equivocadamente se dedicara). Agora a comédia está
ajustada a princípios teatrais, e a preparação das cenas faz-se com minúcia,
resultando num desfecho absolutamente amarrado, com o protagonista dirigindo-se
ao público à maneira clássica.
No entanto, a verdadeira invenção
formal de Pena foi introduzir na simetria da tradição cômica (velhos versus
jovens, serviçais versus amos, nacionais versus estrangeiros, etc.) uma
assimetria básica: a presença dos escravos, que se deslocam no palco sem
correspondência de pares. Sem voz e sem razão, trabalham sem descanso,
chicoteados, empurrados, enganados, sugerindo uma outra história recalcada pela
trama colorida e veloz que gira diante dos olhos do espectador.
Se concordamos com Sábato Magaldi
ao afirmar que a comédia de Martins Pena pode ser considerada "uma escola
de ética", antecipando o que se chamou de "alta comédia
realista", acrescentamos que entre esta e a obra de Pena há uma diferença
básica: em vez dos discursos estilosos que recheiam o teatro das intenções
moralizantes, o que facilitava a identificação com o nacional buscada por
todos, Martins Pena deu o seu recado através do próprio jogo de relações que a
cena estabelece. Retrato em três por quatro, mesquinho e melancólico, muitas
vezes tosco ou constrangedor? Claro, mas as limitações eram do contexto, não
dos recursos utilizados. "E se nós não estamos bem constituídos, a culpa
não é minha... E passo para a oposição!" — diz o dramaturgo em O judas em
sábado de Aleluia. Nessa peça também lemos que no Brasil "um cidadão é
livre... enquanto não o prendem", afirmação particularizada em O noviço:
"as leis criminais fizeram-se para os pobres". Esse abalo do país
"livre e ilustrado" apóia-se também nas minuciosas rubricas que o
autor nos deixou, em manuscritos com incontáveis variantes, que o aproximam do
papel do moderno encenador, profissão inexistente na época. Freqüentemente
exige inteligência cênica dos atores, palavras sempre utilizadas, para a
compreensão da sutileza dos papéis, sua interpretação, marcação cênica, etc.
É importante sublinhar que ao
colocar desta forma o escravo em suas peças, definidas como "microcosmo
cênico dotado de notável pugnacidade", Pena rejeitou a tradição de
identificá-lo ao simples palhaço, com seus lances de finura e imbecilidade,
mero gracioso rodeado de tiradas morais, exemplo seguido por Alencar em O
demônio familiar, apesar das expressivas qualidades cênicas da peça. Em Martins
Pena, o escravo está à margem da convenção cristalizada, e à margem da
sociedade, embora seja o único visto a trabalhar em cena. Como se nas marchas e
contramarchas da comédia fosse introduzido um elemento retardador, silencioso,
que impressiona por também aludir à tensão de classes da época.
"O bom negro no
Brasil", afirma Décio de Almeida Prado, analisando Mãe, de Alencar,
"é aquele que desaparece de imediato, quando sua presença incomoda a
memória familiar".
Com o silêncio talvez Martins
Pena sugira não haver palavras para descrever tal situação.
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Fonte:
Fonte:
Vilma Arêas (Professora do departamento de teoria literária do Instituto de Estudos
da Linguagem da Unicamp) - Novos estud. - CEBRAP nº 76. São Paulo Nov. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/
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