18/04/2014

As Casadas Solteiras, de Martins Pena

 As Casadas Solteiras, de Luís Carlos Martins Pena
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O teatro de Martins Pena

Luís Carlos Martins Pena (1815-1848)

Tudo é parcialidade, e não só no mundo
como no céu, que é mais ainda!


Martins Pena foi essencialmente um homem de teatro. Entretanto não descobriu a vocação imediatamente. Sem fortuna, órfão de pai e mãe aos 10 anos, e sem acesso ao grupo de intelectuais ao redor da confraria do trono, foi encaminhado para as aulas de comércio por seus tutores comerciantes. Embora tivesse terminado o curso com brilho, não sentia apelo pela profissão, e com certeza ajudado pela irmã que se casara com um alto funcionário da Alfândega, passou a estudar na Academia de Belas Artes, que ainda contava com alguns professores franceses da missão cultural. Com eles Martins Pena adquiriu conhecimentos de pintura, estatuária e arquitetura. Também estudou música e canto, por conta do bom ouvido e de sua admirada voz de tenor. Enquanto isso também estudava literatura e inglês, francês e italiano, línguas que chegou a falar fluentemente, segundo dizem.

Essa formação variada e não ortodoxa decerto facilitou-lhe o desenvolvimento do gosto artístico, aguçando o ouvido e o olhar de observador, qualidades imprescindíveis a quem alimente pretensões teatrais. "Bons olhos e bons ouvidos (ouvido do crítico de música que ele foi) eis certamente o que não faltava a Martins Pena." Acrescente-se o momento politicamente perturbado em que viveu, que deve ter contribuído para o amadurecimento da sensibilidade social, atento aos movimentos revolucionários da época. Sua estréia na literatura, com o conto-crônica "Um episódio de 1831", publicado em 1838 no Gabinete de Leitura, já é revelador desse interesse, pois é na cena social que se concentra sua atenção, descrevendo os atos de selvageria que se seguiram à abdicação de d. Pedro I. Com 16 anos na época, deve ter assistido a cenas semelhantes e ouvido comentários inflamados sobre os acontecimentos.

O ano de 1838 foi fundamental não só para o teatro brasileiro, mas também para nosso autor, que pouco depois da estréia de Antonio José, teve sua primeira comédia, O juiz da roça, levada à cena, embora sem menção de autoria, talvez pelo temor de com isso dificultar a conquista do emprego público: realmente foi nessa época que conseguiu o cargo de amanuense com a ajuda do cunhado poderoso, fazendo carreira no setor. Quando morreu, a caminho do Brasil, era nosso diplomata em Londres, e estava prestes a iniciar uma nova etapa. Quem sabe escrever a ópera cômica brasileira que nos prometeu nos Folhetins? "Aonde ele iria depois desse impulso, jamais saberemos", pondera Décio de Almeida Prado.

Mas nesses inícios, talvez o desejo de seguir a moda, alçando-se a um gênero maior, o tenha levado a experimentar o drama. Escreveu cinco, extraordinariamente medíocres, recheados de retórica enfática e palavrosa, inconsciência de recursos cênicos e ocorrências mirabolantes. Razão teve o Conservatório Dramático, em sessão de 22 de maio de 1846, ao considerar D. Leonor Teles "uma monstruosidade". Mas talvez nenhum dos dramas ultrapasse Itaminda, no qual a protagonista é trancada na oca pela vilã e, para salvá-la, os portugueses tenham de arrombar a porta. Diante disso só podemos repetir o próprio Martins Pena, ao comentar nos Folhetins a encenação de certas óperas: "é duro de engolir!".

Se às vezes as comédias de Pena são avaliadas como ingênuas, negligentes quanto à linguagem e ideologicamente isentas ("a verdade aqui, para não provocar indignação, carece de ser auxiliada provocando bom frouxo de riso", diz ele nos Folhetins ), por outro lado encontramos observações como a de Ruggero Jacobi e a de Sílvio Romero: "Se se perdessem todas as leis, escritos, memórias da história brasileira dos primeiros cinqüenta anos deste século XIX, que está a findar, e nos ficassem somente as comédias de Pena, era possível reconstruir por elas a fisionomia moral de toda essa época".

Não há como discordar. Aí estão, desdobrados em vários momentos, nossos vícios maiores: a política do favor como mola social, a corrupção em todos os níveis, a precariedade e atraso do aparelho judicial, a exploração exercida por estrangeiros e a má assimilação da cultura européia importada, que o inspirou a escrever irônicas paródias da ópera, como O diletante, ou dos melodramas levados à cena por João Caetano. Acrescentem-se a esse rol o contrabando de escravos, os mecanismos da contravenção, a servidão por dívida, comportamentos sexuais e familiares, etc. Esses e outros aspectos que percorriam a sociedade brasileira de alto a baixo são exibidos no palco.

Segundo Paula Beiguelman, a comédia de Pena se baseia principalmente na quebra de autoridade, ocasionada pelos efeitos desintegradores da urbanização. Acrescento entretanto que algumas falas e desfechos podem ser considerados morais, mas não muito, como em O irmão das almas, quando Paulino abençoa recém-casados na última cena com as palavras: "Sejam felizes se o puderem"; ou como em O namorador, em que, ao conselho bem-humorado de que os velhos devem deixar os namoros para os jovens, juntam-se informações menos inocentes: o desejo de adultério e a manipulação dos inferiores; completa o quadro a dominação da mulher e o contraponto contínuo dos africanos a trabalharem calados, enquanto os outros se divertem na noite de são João. Não surpreende que a censura estivesse sempre atenta a essas peças.

Cito um trecho de Os dous ou O inglês maquinista, que estreou em 1845, sendo imediatamente censurada pela Câmara dos Deputados, porque "aparece em cena um contrabandista de africanos trazendo um debaixo de um cesto". Trata-se da cena 13, quando o Negreiro entra na sala acompanhado de um velho preto de ganho com um cesto na cabeça, "coberto com um cobertor de baeta encarnada".

Negreiro — Boas noutes.

Clemência — Oh, pois voltou? O que traz com este preto?

Negreiro— Um presente que lhe ofereço.

Clemência — Vejamos o que é.

Negreiro — Uma insignificância...Arreia, pai! (Negreiro ajuda o preto a botar o cesto no chão. Clemência, Mariquinha chegam-se para junto do cesto, de modo porém que este fica à vista dos espectadores.)

Clemência — Descubra. (Negreiro descobre o cesto e dele levanta-se um moleque de tanga e carapuça encarnada, o qual fica em pé dentro do cesto.) Ó gentes!

Negreiro — Então, hem? (Para o moleque) Quenda! Quenda! (puxa o moleque para fora.)

Clemência — Como é bonitinho!

Negreiro — Ah, ah!

Clemência — Por que o trouxe no cesto?

Negreiro — Por causa dos malsins...

Clemência — Boa lembrança. (Examinando o moleque.) Está gordinho...bons dentes...

Negreiro, à parte, para Clemência — É dos desembarcados ontem no Botafogo.

Não podemos nos esquecer que a questão do tráfico negreiro era a mais espinhosa do momento. De forma provocativa Martins Pena não só exibe todo o trâmite da contravenção, que envolvia deputados, desembargadores e ministros, como também transforma em vilões figuras respeitadas na sociedade. O inglês, não por acaso denominado Gainer, bem poderia exclamar como seu conterrâneo em As casadas solteiras: "Brasil é bom para ganhar dinheiro e ter mulher... Os lucros... cento por cento... É belo".

Mais adiante, na mesma peça, a protagonista, com ironia chamada Clemência, interrompe a conversinha social para ir lá dentro chicotear as "negras", a propósito de louças efetivamente quebradas pelo cão. À volta, ruborizada e ajeitando o lenço ao redor do pescoço, comenta que não gostava de "dar pancada". À semelhança de muitas outras comédias, assistimos aqui ao jogo das palavras desmentindo a realidade da cena e das personagens. Estas estão por demais mergulhadas no contexto escravista para entenderem a incompatibilidade entre o que dizem e o que fazem, movimento que constrói a ironia dramática da peça.

Concentrada embora na corte, o teatro de Pena faz alusão à maioria das regiões brasileiras, mas também a outras terras, Portugal, França (denúncia da cultura mal assimilada), Itália (a mania da ópera) e Inglaterra (a exploração econômica), que serve ao comediógrafo para a defesa dos interesses nacionais. Por exemplo, um derrotado artesão brasileiro (Francisco, em O caixeiro da taverna) explica as razões de seu fracasso pela presença, no Império, de alfaiates e cabeleireiros franceses, dentistas americanos, maquinistas ingleses e relojoeiros suíços. Só restava aos nacionais arranjarem um emprego público, se por acaso tivessem algum conhecido influente. Mas às vezes nem mesmo isso bastava. "Há coisa de doze para catorze anos, eu era empregado público; Demitiram-me porque diziam que eu roubava a nação. Qual roubava! A nação é que me roubava, pagando-me menos do que eu merecia" (variante de O irmão das almas).

Entre os personagens encontramos funcionários públicos e toda uma gama de empregados de repartições, representantes da elaboração lenta e difícil de uma camada social intermediária no Brasil. A eles acrescentam-se caixeiros, classe politicamente avançada na época ("insolentes", diz Macedo em Luxo e vaidade), sacristãos, soldados, artesãos, floristas e costureiras, essas últimas tidas como profissões prostituídas de moças pobres. Em O caixeiro da taverna, Angélica afirma, muito ironicamente, que Deolinda, costureira, "cose para fora com muita honestidade":

Angélica — Ah, a senhora é a Sra. Deolinda, que cose para fora com Muita honestidade?

Deolinda — Uma sua criada.

Angélica — E que vem em pessoa tomar medida aos fregueses... em suas próprias casas... e tudo com muita honestidade?

Em O irmão das almas, cuja sonoplastia recomendada pelo autor é o lúgubre dobrar de sinos durante toda a ação, Jorge recorda com a irmã momentos de aperto financeiro, quando ela foi aprender a fazer flores com uma francesa, com quem ele acabara brigando, "porque isso de fazer flores parece-me assim... ofício muito leve" (variante da cena 3).

Em O namorador ou A noite de S. João surgem colonos imigrantes da Madeira, submissos à servidão por dívida, mourejando durante todo o tempo, identificados aos escravos que têm a obrigação de vigiar, sem possibilidade de juntar vinténs para a libertação. Por sua vez, numa noite de Natal somos apresentados a uma ama-de-leite branca que perdera o filho, e que se aluga a patroas que "embirram com amas negras", ficando ao alcance do velho libidinoso da casa (As desgraças de uma criança).

Não é raro Martins Pena ser comparado a Debret na pintura dos costumes do Brasil, e é bom que nos lembremos que vários membros do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) reagiram mal a alguns aspectos abordados pelo pintor francês na Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, "pela referência direta à escravidão com cenas, por exemplo, de castigos a escravos". Acho que aí está o nó da questão. A aparente despretensão dos trabalhos dos dois artistas, até pelas dimensões e o meio que escolheram — pequenas aquarelas e minúsculas comédias ou farsas —, revela um olhar independente sobre a sociedade brasileira, sem a idealização da elite. Era impossível a qualquer observador aproximar as cidades de Paris e Rio de Janeiro, esta com as ruas percorridas por enxames de africanos, com escarificações no rosto, trabalhando e cantando para ritmar o esforço. "O escravo estava por toda parte. A primeira coisa que ocorria a alguém que melhorava de vida, até mesmo a um ex-escravo agora liberto, era adquirir um escravo."

Comentando a própria aquarela intitulada "Carros e móveis prontos para ser embarcados", Debret se espanta ao encontrar escravos carregando na cabeça fardos pesados "neste século das Luzes". Entende depois o motivo da resistência da população a outro tipo de transporte: grandes ou pequenos proprietários de escravos, mesmo "a classe mais numerosa, a do pequeno rentista e da viúva indigente" teriam prejuízo ou perderiam o meio de subsistência com a modernização.

Diante disso, só restava aos artistas inventar uma solução formal adequada às circunstâncias. Num ensaio inaugural, Rodrigo Naves mostra que este foi o maior mérito de Debret. Vindo do ateliê do neoclássico David, percebeu a diferença do meio e inteligentemente procurou adequar-se a ele. Se as obras realizadas na França tinham "uma forma ostensivamente forte", Debret "deriva para trabalhos acanhados e modestos". O mérito não foi só a troca do óleo pela aquarela, mas a própria realização dela, com linhas flutuantes, disposições inesperadas e contornos pouco definidos — o que marca não só o afastamento do padrão francês, mas uma percepção inteligente de nossa sociedade.

Martins Pena, por sua vez, apesar das tentativas de vôos altos — tropeço também de seus contemporâneos —, acerta na forma miúda, vivíssima, a todo momento posta à prova do palco. Seus Folhetins valem também como um exemplo de sua formação, com minuciosa descrição da dramaturgia da época através da encenação das óperas. Se lhe são familiares as convenções teatrais e a tradição francesa, vira-se também para a prata da casa: aproveita-se dos teatrinhos de feira, nos quais como no resto do mundo era comum populares se misturarem a intelectuais, além do circo de cavalinhos, a cujo encantamento se refere já em O juiz de paz na roça; menciona ainda os teatros mecanizados, que infelizmente só conhecemos pelos anúncios nos periódicos da corte e das províncias, tanto devia ser o seu sucesso. Ao alcance de Pena estavam também as representações de rua, extremamente engenhosas conforme as descreve Ewbank, com animais ensinados, fogos, e figuras "de papel colorido sustentadas por delicadas armações", executando piruetas no alto de mastros, bufões "irresistíveis" e até mesmo números da Commedia dell´Arte, como a menção que faz a Punch e Juddy, uma das referências de As desgraças de uma criança. Não se pode também esquecer a proliferação, a partir da década de 1840, das caricaturas e dos desenhos cômicos, de saída inspirados na Lanterna Mágica, Periódico Plástico-filosófico, de Araújo Porto-Alegre.

Surpreendemos esse contexto colorido e fragmentado nas minúsculas comédias de Pena, tecidas com fios de qualidades diferentes. Na primeira peça, ainda treinando a mão, encontramos o entremez articulado a uma estrutura de comédia clássica, mas o resultado ainda é indeciso e muito preso ao documento. Mais tarde, em 1844, em O namorador ou A noite de S. João, um de seus trabalhos mais bem urdidos e mais inovadores, Pena conjuga três fios. O primeiro, o do enredo amoroso próprio da comédia de costumes, embora não se trate de uma comédia de amor, a que ele nunca se dedicou. O autor parece mais interessado em aprofundar uma dialética amorosa, observada em suas diferentes fases, o que é quase impossível de se executar, como ele o faz, numa comédia de um só ato. Nela há relações envolvendo sexo e amor entre diferentes níveis da sociedade: entre jovens da mesma condição econômica, outros mais pobres, entre velhos casados e ricos, entre serviçais, entre patrão (moço ou velho) com empregadas, entre moço rico e vários tipos de mulher: velha, moça, bonita, feia, branca, cabocla, escrava. Observe-se o diálogo abaixo, cena 15, versando sobre o tempo e o amor:

Luís — Não a amo mais porque há já três meses que ela me ama.

Clementina — Boa razão! Não a ama porque ela ainda o ama.

A segunda linha explorada é a da farsa rústica portuguesa, representada pelos ilhéus submetidos à servidão por dívida. Aqui também Pena inova, pois as características dessa farsa (rusticidade de personagens, palavras chulas e pancadaria) misturam-se à patética revolta do ilhéu em relação à exploração de seu trabalho: "Oh! Quem me dera viver sem trabalhar. Cresce-me água à boca quando vejo um rico. São os felizes... que cá o homem anda de canga ao pescoço..." (cena 6).

Por fim temos a linha da farsa propriamente dita, levada a cabo por um velho em suas investidas sexuais em relação à ilhoa, que tem mais dois interessados: o marido e Luís, sobrinho do velho, compondo todos uma ciranda cômica no melhor estilo.

Como ponto de convergência desses três fios está a fogueira de são João, metaforizada no "fogo do amor", tendo ao mesmo tempo valor funcional e utilitário, pois à sua luz desmascara-se o velho amoroso.

Se olharmos a produção de Pena como um todo, percebemos que a comédia que marca o ponto de inflexão da obra é Os dous ou O inglês maquinista, que esboça em vários momentos uma comédia de meios-tons, refinada, que poderia ser um caminho desenvolvido por Martins Pena, se assim o desejasse. Observe-se a leveza do diálogo na cena 10, que funciona pelo que não diz, e que é absolutamente impensável no teatro da época:

Mariquinha — ...Primo?

Felício — Priminha?

Mariquinha — Aquilo?

Felício — Vai bem.

Cecília — O que é?

Mariquinha — Uma cousa.

O Judas em sábado de Aleluia (1844), obra-prima de apenas doze cenas, já mostra um teatrólogo dono das técnicas e consciente do caminho escolhido (por essa época Martins Pena desiste dos dramas a que tão equivocadamente se dedicara). Agora a comédia está ajustada a princípios teatrais, e a preparação das cenas faz-se com minúcia, resultando num desfecho absolutamente amarrado, com o protagonista dirigindo-se ao público à maneira clássica.

No entanto, a verdadeira invenção formal de Pena foi introduzir na simetria da tradição cômica (velhos versus jovens, serviçais versus amos, nacionais versus estrangeiros, etc.) uma assimetria básica: a presença dos escravos, que se deslocam no palco sem correspondência de pares. Sem voz e sem razão, trabalham sem descanso, chicoteados, empurrados, enganados, sugerindo uma outra história recalcada pela trama colorida e veloz que gira diante dos olhos do espectador.

Se concordamos com Sábato Magaldi ao afirmar que a comédia de Martins Pena pode ser considerada "uma escola de ética", antecipando o que se chamou de "alta comédia realista", acrescentamos que entre esta e a obra de Pena há uma diferença básica: em vez dos discursos estilosos que recheiam o teatro das intenções moralizantes, o que facilitava a identificação com o nacional buscada por todos, Martins Pena deu o seu recado através do próprio jogo de relações que a cena estabelece. Retrato em três por quatro, mesquinho e melancólico, muitas vezes tosco ou constrangedor? Claro, mas as limitações eram do contexto, não dos recursos utilizados. "E se nós não estamos bem constituídos, a culpa não é minha... E passo para a oposição!" — diz o dramaturgo em O judas em sábado de Aleluia. Nessa peça também lemos que no Brasil "um cidadão é livre... enquanto não o prendem", afirmação particularizada em O noviço: "as leis criminais fizeram-se para os pobres". Esse abalo do país "livre e ilustrado" apóia-se também nas minuciosas rubricas que o autor nos deixou, em manuscritos com incontáveis variantes, que o aproximam do papel do moderno encenador, profissão inexistente na época. Freqüentemente exige inteligência cênica dos atores, palavras sempre utilizadas, para a compreensão da sutileza dos papéis, sua interpretação, marcação cênica, etc.

É importante sublinhar que ao colocar desta forma o escravo em suas peças, definidas como "microcosmo cênico dotado de notável pugnacidade", Pena rejeitou a tradição de identificá-lo ao simples palhaço, com seus lances de finura e imbecilidade, mero gracioso rodeado de tiradas morais, exemplo seguido por Alencar em O demônio familiar, apesar das expressivas qualidades cênicas da peça. Em Martins Pena, o escravo está à margem da convenção cristalizada, e à margem da sociedade, embora seja o único visto a trabalhar em cena. Como se nas marchas e contramarchas da comédia fosse introduzido um elemento retardador, silencioso, que impressiona por também aludir à tensão de classes da época.

"O bom negro no Brasil", afirma Décio de Almeida Prado, analisando Mãe, de Alencar, "é aquele que desaparece de imediato, quando sua presença incomoda a memória familiar".

Com o silêncio talvez Martins Pena sugira não haver palavras para descrever tal situação.


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Fonte:

Vilma Arêas (Professora do departamento de teoria literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp) - Novos estud. - CEBRAP  nº 76. São Paulo Nov. 2006. Disponível em: http://www.scielo.br/

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