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Francisca Júlia da Silva: A questão da inspiração
Se, na atualidade, aos nos
depararmos com sonetos de temática e estilo tão semelhantes vem à tona a ideia
de cópia, no passado a questão também não foi vista com indiferença. Mario de
Andrade tratou do tema com ironia em seu artigo “Mestres do passado” ao falar
de Francisca Júlia: “agora está muito em moda dizer que os poetas não copiam...
inspiram-se” e arremata com algum reconhecimento, mas ainda irônico: “Francisca
Júlia inspirou-se. Inspiração legítima, proclamo, sincero e convencido. Inspiração
legítima a dela... e a minha”(1922, p. 261) O debate sobre inspiração ou cópia
era tão forte que repercutiu no Ceará, onde o movimento Padaria Espiritual, em sua
publicação “O pão”, defende Francisca Júlia: “Duvidamos que tenha Heredia, nos dois
países em que se fala a língua portuguesa, discípulo tão notável como a
buriladora dos Mármores”. (Citado por CAMARGOS, 2007, p. 29)
Em “Alma e destino”, que aparece
logo após as traduções de Goethe, Francisca Júlia irá retomar o tema de “Calme
de la mer”, além de se valer de uma epígrafe do autor alemão:
ALMA E DESTINO
(Esphinges)
Alma do homem, como te assemelhas
á onda!
Destino do homem, como te
assemelhas ao vento!
(Goethe)
A alma do homem é como a onda,
que erra
Sempre, espumosa ou lisa, ao
vento afeita;
Vem do ceo, sobe ao ceo e desce á
terra,
Segundo a lei a que nasceu
sujeita;
Contra o vento que chega se
revolta;
Ergue-se, espuma, do alto se
despenha;
O vento, que a soprou, passa e
não volta...
E a vaga espera que outro vento
venha...
Vem outro... mais feroz e mais
violento...
Ella cresce de novo e se
arredonda...
Alma do homem, como és igual á
onda!
Como és igual, destino humano, ao
vento!
A inspiração da poeta no poema
citado e também na temática do traduzido “Calme de la mer” é bastante clara.
“Alma e destino” foi publicado em Esphinges, isto é, não fazia parte da obra
inicial, Mármores. Por mais que, como dissemos anteriormente, a obra de
Francisca Júlia não tenha passado por fases muito claras, já que poemas mais
místicos e românticos foram publicados ao lado daqueles considerados mais
formalistas, há uma tendência à poesia mais filosófica, moral ou espiritual com
o amadurecimento. Os temas da morte e de uma “outra vida”, ou ‘vidas
anteriores”, e da alma são mais frequentes após Mármores. Dessa forma, a
reflexão de CARA (1989) sobre a lírica parece válida para a artista em análise:
“a poesia nunca gostou de esquemas classificatórios, já que sua natureza não se
presta a encaixes dóceis em modelos previamente constituídos”. Manuel Bandeira
afirma sobre Alberto de Oliveira que, “com o passar dos anos, se foi o poeta
despojando desses artifícios até atingir à beleza simples de ‘Alma em flor’”, é
possível que o mesmo tenha ocorrido com a Francisca Júlia de “Alma e destino”
em relação à de “Musa Impassível”. Sobre essa progressão na carreira, afirma
Mário de Andrade (1922, p. 265):
No fim da vida, pelo menos nos
últimos tempos, Francisca Júlia publicou, na “Cigarra”, alguns sonetos que
demonstram a evolução magnífica do seu espírito. Longe está do parnasianismo
marmóreo do início ou da pieguice feminina. Francisca Júlia tornara-se poeta, à
medida que o “aplainamento da vida” a envelhecia. Sempre perfeita, sempre
comedida, não era mais gelada, nem escrevia para fazer versos belos. Deixara, ó
Perfeição, de rondar “à noite, à luz dos astros, a horas mortas” em torno da
tua cidadela – como um bárbaro uivando às tuas portas! – era agora viril,
lírica, expansão dos sentimentos e das comoções de sua vida.
A obra de Francisca Júlia pode e
deve ser estudada com base em seu momento histórico e filiação estilística, e
não encerrada no Parnasianismo, ou melhor, na visão simplista que se
convencionou ter do período. “A teoria, no entanto, sempre preferiu trabalhar
em cima de amplos esquemas” (CARA, 1989, p. 5), pois, conforme bem discute
BOSI:
A coexistência de um clima de
ideias liberais e uma arte existencialmente negativa pode parecer um paradoxo,
ou, o que seria mortificante, um erro de enfoque do historiador. Mas o
contraste está apenas na superfície das palavras: a raiz comum dessas direções
é a posição incômoda do intelectual em face a sociedade tal como esta se veio
configurando a partir da revolução industrial. Agredindo na vida pública o
status quo, ele é ainda um rebelde e um rebelde e um protestatário; mas
introjetando-o nos meandros de sua consciência, reificando-o como lei natural e
como seleção dos mais fortes ele acaba depositário de desencantos e, mais das
vezes, conformistas. (BOSI, 1994, p. 168)
Em “Alma e destino”, os
sentimentos de um “eu” lírico que suspira enquanto reflete sobre a vida e a
existência como quem contempla o mar estão expressos nas exclamações e
reticências do poema. Especialmente na quadra que o encerra, dois versos
terminados em reticências, como o mar que retorna, e dois em exclamações, como
a onda que arrebenta.
Fundado na comparação entre o
movimento da onda impulsionada pelo vento e o ser do homem, seu destino como
homem, que nasce, vive e morre, o poema procura captar as oscilações constantes
da experiência humana com uma simplicidade bem maior que a dos quadros poéticos
parnasianos. A comparação entre o destino humano universal e os seres da
natureza confere certo ar de naturalidade ao poema, que afasta a impressão de
artificialismo. O mar e o vento, assim como o homem, nesse poema são formas
universais, comuns a toda a humanidade, portanto, a ausência de um eu lírico manifesto
não se confunde com uma busca pela impassibilidade, mas parece expressar que o
poema se refere a uma lei geral, que regeria tanto a natureza quanto o destino humano.
Apesar da ausência da primeira pessoa, a voz que fala no poema ou a mão que orquestra
o movimento dos versos, reunindo na mesma musicalidade o destino humano às
ondulações do mar ante a força do vento, não é a de uma observadora distante. A
escolha pela composição do poema a partir da comparação entre os dois elementos
(homem e natureza) exige um movimento de aproximação entre seres de natureza diferente
e, ao mesmo tempo, certo distanciamento que dê uma visão mais ampla, de conjunto,
da trajetória do homem pela vida.
O mar e o vento são elementos da
natureza, não são personificados, como nos poemas de tendência romântica, são
barreiras naturais que se apresentam ao homem, mas que ao mesmo tempo são
recriadas e transfiguradas no mundo do poema e adequadas aos fins da poesia.
Nesse sentido, o poema expressa o movimento do homem na luta pelo seu
desenvolvimento, isto é, do homem que se separa da natureza, para quem os
elementos do mundo natural são barreiras a serem enfrentadas e contra as quais o
homem se revolta, se levanta e as adequa segundo seus fins. Nesse processo, o
poema, embora expresse a lei universal que o homem não pode evitar – “Vem do
ceo, sobe ao ceo e desce á terra, / Segundo a lei a que nasceu sujeita;” –,
reafirma também a submissão das leis naturais à ação humana, como o poema
submete a realidade às formas poéticas para melhor representá-la.
Na comparação figurada, embora
seja a alma humana e o destino do homem que se igualem a onda e ao vento, que
existem a priori como forças da natureza, na concepção de homem que aqui se
apresenta é a forma humana que se espelha nas forças naturais e que dão elas um
sentido humano, fazendo delas uma forma de compreensão do próprio humano; desse
jeito o poema dobra a lei universal às leis da poesia.
Essa inter-relação entre homem e
natureza, para chegar ao campo da comparação, agora, entre as obras, vem do
humanismo goetheano que é captado e indicado pela autora na epígrafe. Essa
apropriação, a nosso ver, longe de ser sinal de escassez da inspiração
individual, é, ao contrário, uma manifestação do desejo de universalização da
própria poesia nacional. Esse desejo, na história da formação do sistema
literário, sempre foi acompanhado de forma direta ou indireta pelo desejo de fazer
uma literatura nacional que estivesse à altura da universal.
Mesmo que o “desejo de ter uma
literatura” (nacional) não possa ser visto com clareza na obra em estudo, não é
possível negar o apontado por Antonio Candido sobre a formação da literatura
brasileira como “síntese de tendências universalistas e particularistas” (2006,
p. 25) tanto nesse quanto nos poemas que foram aqui estudados.
O caráter empenhado da literatura
romântica não se apresenta na melhor produção de Francisca Júlia. Quando ele
aparece expressamente na obra da autora, como já visto, se reduz à tradição da
ilusão ilustrada que também percorre nosso sistema literário, gerando limites e
alguns avanços na representação poética. No caso de Francisca Júlia, o empenho
formativo evidente ficou restrito aos poemas dedicados à formação escolar ou
moral e, embora não tenham sido objeto de estudo desta dissertação, à primeira
vista, parecem carecer de força estética efetiva.
No caso de “Alma e destino”, é
evidente a tendência universalista do poema, mas o traço particularista também
aparece na gradação que a autora dá à comparação. Se na epígrafe goetheana alma
e onda / destino e vento se “assemelham”, na poesia de Francisca Julia o vento
que sopra parece ser “mais feroz e mais violento”. A despeito da atmosfera de
naturalidade do movimento dado ao ritmo do poema ou de certo heroísmo estoico
conferido à reação humana, a comparação anuncia um destino particular ao homem
do soneto brasileiro, um pequeno ajuste no grau da comparação: “Alma do homem,
como és igual á onda! / Como és igual, destino humano, ao vento!”. A adequação
é sútil, mas não é desprezível. Na poesia nacional e no chão brasileiro, os enfrentamentos
e a relação entre homem e natureza parecem ser mais imediatos, mais violentos;
uma violência poetizada, “espumosa ou lisa”, mas, ainda assim, violência.
Além deste poema, vários outros
de Francisca Júlia poderiam ser comparados a poemas anteriores de outros
autores e que parecem ter fornecido a inspiração para sua produção. Por
exemplo, “Dança de Centauras” à “Fuite de Centaures”, “Sonho Africano” à “Banzo”,
“Os argonautas” à “Les Conquérants”. Como salienta SCHAWRZ, “a questão da cópia
não é falsa, desde que tratada pragmaticamente, de um ponto de vista estético e
político e liberta da mitológica exigência da criação a partir do nada” (2005,
p. 136). Dentro da questão da dialética do localismo e do cosmopolitismo, conforme
explica Antonio Candido (2011), os autores periféricos oscilam “ora a afirmação
premeditada e por vezes violenta do nacionalismo literário, com veleidades de
criar até uma língua diversa; ora o declarado conformismo, a imitação
consciente dos padrões europeus”. Francisca Júlia certamente se encaixaria no
último movimento, mas com a devida moderação julgamos possível verificar o que
há de brasileiro em sua obra, ainda que sem teor algum nacionalista.
A questão da imitação das formas européias na
nação brasileira pode ser em parte explicada pela “penúria cultural” que fazia
com os escritores se voltassem necessariamente para “os padrões metropolitanos
e europeus em geral, formando um agrupamento de certo modo aristocrático em
relação ao homem inculto” (CANDIDO, 2006, p. 178-179).
Segundo MONTALEGRE, “não há
dúvida que na França o Parnasianismo constitui escola onde havia, por acordo
tácito, mestres que professavam e discípulos que respeitosamente acatavam as
suas lições” (1945, p. 11), destacando como exemplo Louis Ménard e Leconte de
Lisle. O caráter academicista do Parnasianismo, de uma arte a ser feita dentro
de um círculo, declarado, obviamente propiciava a recorrência de temas e a
imitação de estilos. Soma-se a isso a suposta desimportância do tema, já que como
afirma do “eu” lírico de “Desejo Inútil”: “qualquer coisa afinal de belo
escolher devo”. Aleatório em relação ao tema, mas demonstrando submissão na
forma verbal “devo”.
O prefaciador de Mármores, João
Ribeiro considerou que “cabe ao artista criar, sem a preocupação de imitação da
natureza (ou do real) e em tampouco submeter o processo de criação a verdades
morais, políticas ou científicas”. Se cotejarmos essa afirmação à obra de
Francisca Júlia, ela soa quase contrária, tanto se preocupou a autora com a
mimese pura, quanto formulou verdades morais, inclusive associando o belo e moralmente
correto em diversos momentos.
Para CARA (1979, p. 75), “o
legado crítico de João Ribeiro não é propriamente fecundo enquanto leitor da
poesia de seu tempo, mas traz, por outro lado, informações vivas e curiosas no
que se refere a certas formulações sobre a literatura e a arte”. De fato, o
prefácio elogioso de Mármores tem pouca contribuição crítica ou de análise do trabalho:
Assim, sua obra crítica vai
mostrá-lo divido entre certas reflexões teóricas, extremamente atuais e
instigantes, e uma leitura de textos, que ora responde ao padrão mais médio de
gosto, ora atesta uma grande capacidade de percepção, para além dos modelos que
aplica. (CARA, 1979, p. 75)
Já BUENO (2007, p. 211) considera
João Ribeiro como o “crítico de poesia mais liberto de idiossincrasias
estéticas do Brasil de sua época, veio a confirmar-lhe o prestígio”, o
prestígio de Francisca Júlia, no caso.
Atualmente podemos facilmente apontar as
falhas dessa literatura “de academia”, cheia de preceitos e formatações, porém,
na época, havia um quadro relativamente numeroso de poetas em franca produção e
publicação nos meios jornalísticos, e a seleção a ser feita pelo crítico era,
então, um desafio. Para FRANCHETTI (2007, p. 11):
é no momento parnasiano que se
afirma, uniforme e universalmente reconhecido, o terceiro elemento do sistema,
ou seja, o mecanismo transmissor: o padrão lingüístico, imagético e temático
parnasiano, que será glosado em alguns círculos, até os dias de hoje como sinônimo
de poesias.
Os autores são unânimes em
reconhecer um número superior de poetas parnasianos a simbolistas. E pensarmos
que, em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, Andrade Muricy
catalogou mais de cem, 131 para sermos exatos, o que podemos pensar sobre a
produção dos parnasianos.
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Fonte:
João Vicente Pereira Neto: “Oscilações líricas de uma musa impassível. Itinerário poético de Francisca Júlia no sistema literário brasileiro”. (Dissertação apresentada ao curso Pós-Graduação Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literatura da Universidade de Brasília como requisito para obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira. Orientadora: Professora Dra. Ana Laura dos Reis Corrêa). Universidade de Brasília - Instituto de Letras Departamento de Teoria Literária e Literatura. Brasília, 2013.
Fonte:
João Vicente Pereira Neto: “Oscilações líricas de uma musa impassível. Itinerário poético de Francisca Júlia no sistema literário brasileiro”. (Dissertação apresentada ao curso Pós-Graduação Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literatura da Universidade de Brasília como requisito para obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira. Orientadora: Professora Dra. Ana Laura dos Reis Corrêa). Universidade de Brasília - Instituto de Letras Departamento de Teoria Literária e Literatura. Brasília, 2013.
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