15/03/2014

Poesias de Francisca Júlia da Silva

 Poemas de Francisca Júlia da Silva
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Francisca Júlia da Silva: A questão da inspiração

Se, na atualidade, aos nos depararmos com sonetos de temática e estilo tão semelhantes vem à tona a ideia de cópia, no passado a questão também não foi vista com indiferença. Mario de Andrade tratou do tema com ironia em seu artigo “Mestres do passado” ao falar de Francisca Júlia: “agora está muito em moda dizer que os poetas não copiam... inspiram-se” e arremata com algum reconhecimento, mas ainda irônico: “Francisca Júlia inspirou-se. Inspiração legítima, proclamo, sincero e convencido. Inspiração legítima a dela... e a minha”(1922, p. 261) O debate sobre inspiração ou cópia era tão forte que repercutiu no Ceará, onde o movimento Padaria Espiritual, em sua publicação “O pão”, defende Francisca Júlia: “Duvidamos que tenha Heredia, nos dois países em que se fala a língua portuguesa, discípulo tão notável como a buriladora dos Mármores”. (Citado por CAMARGOS, 2007, p. 29)

Em “Alma e destino”, que aparece logo após as traduções de Goethe, Francisca Júlia irá retomar o tema de “Calme de la mer”, além de se valer de uma epígrafe do autor alemão:

ALMA E DESTINO
(Esphinges)

Alma do homem, como te assemelhas á onda!
Destino do homem, como te assemelhas ao vento!
(Goethe)

A alma do homem é como a onda, que erra
Sempre, espumosa ou lisa, ao vento afeita;
Vem do ceo, sobe ao ceo e desce á terra,
Segundo a lei a que nasceu sujeita;

Contra o vento que chega se revolta;
Ergue-se, espuma, do alto se despenha;
O vento, que a soprou, passa e não volta...
E a vaga espera que outro vento venha...

Vem outro... mais feroz e mais violento...
Ella cresce de novo e se arredonda...
Alma do homem, como és igual á onda!
Como és igual, destino humano, ao vento!

A inspiração da poeta no poema citado e também na temática do traduzido “Calme de la mer” é bastante clara. “Alma e destino” foi publicado em Esphinges, isto é, não fazia parte da obra inicial, Mármores. Por mais que, como dissemos anteriormente, a obra de Francisca Júlia não tenha passado por fases muito claras, já que poemas mais místicos e românticos foram publicados ao lado daqueles considerados mais formalistas, há uma tendência à poesia mais filosófica, moral ou espiritual com o amadurecimento. Os temas da morte e de uma “outra vida”, ou ‘vidas anteriores”, e da alma são mais frequentes após Mármores. Dessa forma, a reflexão de CARA (1989) sobre a lírica parece válida para a artista em análise: “a poesia nunca gostou de esquemas classificatórios, já que sua natureza não se presta a encaixes dóceis em modelos previamente constituídos”. Manuel Bandeira afirma sobre Alberto de Oliveira que, “com o passar dos anos, se foi o poeta despojando desses artifícios até atingir à beleza simples de ‘Alma em flor’”, é possível que o mesmo tenha ocorrido com a Francisca Júlia de “Alma e destino” em relação à de “Musa Impassível”. Sobre essa progressão na carreira, afirma Mário de Andrade (1922, p. 265):

No fim da vida, pelo menos nos últimos tempos, Francisca Júlia publicou, na “Cigarra”, alguns sonetos que demonstram a evolução magnífica do seu espírito. Longe está do parnasianismo marmóreo do início ou da pieguice feminina. Francisca Júlia tornara-se poeta, à medida que o “aplainamento da vida” a envelhecia. Sempre perfeita, sempre comedida, não era mais gelada, nem escrevia para fazer versos belos. Deixara, ó Perfeição, de rondar “à noite, à luz dos astros, a horas mortas” em torno da tua cidadela – como um bárbaro uivando às tuas portas! – era agora viril, lírica, expansão dos sentimentos e das comoções de sua vida.

A obra de Francisca Júlia pode e deve ser estudada com base em seu momento histórico e filiação estilística, e não encerrada no Parnasianismo, ou melhor, na visão simplista que se convencionou ter do período. “A teoria, no entanto, sempre preferiu trabalhar em cima de amplos esquemas” (CARA, 1989, p. 5), pois, conforme bem discute BOSI:

A coexistência de um clima de ideias liberais e uma arte existencialmente negativa pode parecer um paradoxo, ou, o que seria mortificante, um erro de enfoque do historiador. Mas o contraste está apenas na superfície das palavras: a raiz comum dessas direções é a posição incômoda do intelectual em face a sociedade tal como esta se veio configurando a partir da revolução industrial. Agredindo na vida pública o status quo, ele é ainda um rebelde e um rebelde e um protestatário; mas introjetando-o nos meandros de sua consciência, reificando-o como lei natural e como seleção dos mais fortes ele acaba depositário de desencantos e, mais das vezes, conformistas. (BOSI, 1994, p. 168)

Em “Alma e destino”, os sentimentos de um “eu” lírico que suspira enquanto reflete sobre a vida e a existência como quem contempla o mar estão expressos nas exclamações e reticências do poema. Especialmente na quadra que o encerra, dois versos terminados em reticências, como o mar que retorna, e dois em exclamações, como a onda que arrebenta.

Fundado na comparação entre o movimento da onda impulsionada pelo vento e o ser do homem, seu destino como homem, que nasce, vive e morre, o poema procura captar as oscilações constantes da experiência humana com uma simplicidade bem maior que a dos quadros poéticos parnasianos. A comparação entre o destino humano universal e os seres da natureza confere certo ar de naturalidade ao poema, que afasta a impressão de artificialismo. O mar e o vento, assim como o homem, nesse poema são formas universais, comuns a toda a humanidade, portanto, a ausência de um eu lírico manifesto não se confunde com uma busca pela impassibilidade, mas parece expressar que o poema se refere a uma lei geral, que regeria tanto a natureza quanto o destino humano. Apesar da ausência da primeira pessoa, a voz que fala no poema ou a mão que orquestra o movimento dos versos, reunindo na mesma musicalidade o destino humano às ondulações do mar ante a força do vento, não é a de uma observadora distante. A escolha pela composição do poema a partir da comparação entre os dois elementos (homem e natureza) exige um movimento de aproximação entre seres de natureza diferente e, ao mesmo tempo, certo distanciamento que dê uma visão mais ampla, de conjunto, da trajetória do homem pela vida.

O mar e o vento são elementos da natureza, não são personificados, como nos poemas de tendência romântica, são barreiras naturais que se apresentam ao homem, mas que ao mesmo tempo são recriadas e transfiguradas no mundo do poema e adequadas aos fins da poesia. Nesse sentido, o poema expressa o movimento do homem na luta pelo seu desenvolvimento, isto é, do homem que se separa da natureza, para quem os elementos do mundo natural são barreiras a serem enfrentadas e contra as quais o homem se revolta, se levanta e as adequa segundo seus fins. Nesse processo, o poema, embora expresse a lei universal que o homem não pode evitar – “Vem do ceo, sobe ao ceo e desce á terra, / Segundo a lei a que nasceu sujeita;” –, reafirma também a submissão das leis naturais à ação humana, como o poema submete a realidade às formas poéticas para melhor representá-la.

Na comparação figurada, embora seja a alma humana e o destino do homem que se igualem a onda e ao vento, que existem a priori como forças da natureza, na concepção de homem que aqui se apresenta é a forma humana que se espelha nas forças naturais e que dão elas um sentido humano, fazendo delas uma forma de compreensão do próprio humano; desse jeito o poema dobra a lei universal às leis da poesia.

Essa inter-relação entre homem e natureza, para chegar ao campo da comparação, agora, entre as obras, vem do humanismo goetheano que é captado e indicado pela autora na epígrafe. Essa apropriação, a nosso ver, longe de ser sinal de escassez da inspiração individual, é, ao contrário, uma manifestação do desejo de universalização da própria poesia nacional. Esse desejo, na história da formação do sistema literário, sempre foi acompanhado de forma direta ou indireta pelo desejo de fazer uma literatura nacional que estivesse à altura da universal.

Mesmo que o “desejo de ter uma literatura” (nacional) não possa ser visto com clareza na obra em estudo, não é possível negar o apontado por Antonio Candido sobre a formação da literatura brasileira como “síntese de tendências universalistas e particularistas” (2006, p. 25) tanto nesse quanto nos poemas que foram aqui estudados.

O caráter empenhado da literatura romântica não se apresenta na melhor produção de Francisca Júlia. Quando ele aparece expressamente na obra da autora, como já visto, se reduz à tradição da ilusão ilustrada que também percorre nosso sistema literário, gerando limites e alguns avanços na representação poética. No caso de Francisca Júlia, o empenho formativo evidente ficou restrito aos poemas dedicados à formação escolar ou moral e, embora não tenham sido objeto de estudo desta dissertação, à primeira vista, parecem carecer de força estética efetiva.

No caso de “Alma e destino”, é evidente a tendência universalista do poema, mas o traço particularista também aparece na gradação que a autora dá à comparação. Se na epígrafe goetheana alma e onda / destino e vento se “assemelham”, na poesia de Francisca Julia o vento que sopra parece ser “mais feroz e mais violento”. A despeito da atmosfera de naturalidade do movimento dado ao ritmo do poema ou de certo heroísmo estoico conferido à reação humana, a comparação anuncia um destino particular ao homem do soneto brasileiro, um pequeno ajuste no grau da comparação: “Alma do homem, como és igual á onda! / Como és igual, destino humano, ao vento!”. A adequação é sútil, mas não é desprezível. Na poesia nacional e no chão brasileiro, os enfrentamentos e a relação entre homem e natureza parecem ser mais imediatos, mais violentos; uma violência poetizada, “espumosa ou lisa”, mas, ainda assim, violência.

Além deste poema, vários outros de Francisca Júlia poderiam ser comparados a poemas anteriores de outros autores e que parecem ter fornecido a inspiração para sua produção. Por exemplo, “Dança de Centauras” à “Fuite de Centaures”, “Sonho Africano” à “Banzo”, “Os argonautas” à “Les Conquérants”. Como salienta SCHAWRZ, “a questão da cópia não é falsa, desde que tratada pragmaticamente, de um ponto de vista estético e político e liberta da mitológica exigência da criação a partir do nada” (2005, p. 136). Dentro da questão da dialética do localismo e do cosmopolitismo, conforme explica Antonio Candido (2011), os autores periféricos oscilam “ora a afirmação premeditada e por vezes violenta do nacionalismo literário, com veleidades de criar até uma língua diversa; ora o declarado conformismo, a imitação consciente dos padrões europeus”. Francisca Júlia certamente se encaixaria no último movimento, mas com a devida moderação julgamos possível verificar o que há de brasileiro em sua obra, ainda que sem teor algum nacionalista.

 A questão da imitação das formas européias na nação brasileira pode ser em parte explicada pela “penúria cultural” que fazia com os escritores se voltassem necessariamente para “os padrões metropolitanos e europeus em geral, formando um agrupamento de certo modo aristocrático em relação ao homem inculto” (CANDIDO, 2006, p. 178-179).

Segundo MONTALEGRE, “não há dúvida que na França o Parnasianismo constitui escola onde havia, por acordo tácito, mestres que professavam e discípulos que respeitosamente acatavam as suas lições” (1945, p. 11), destacando como exemplo Louis Ménard e Leconte de Lisle. O caráter academicista do Parnasianismo, de uma arte a ser feita dentro de um círculo, declarado, obviamente propiciava a recorrência de temas e a imitação de estilos. Soma-se a isso a suposta desimportância do tema, já que como afirma do “eu” lírico de “Desejo Inútil”: “qualquer coisa afinal de belo escolher devo”. Aleatório em relação ao tema, mas demonstrando submissão na forma verbal “devo”.

O prefaciador de Mármores, João Ribeiro considerou que “cabe ao artista criar, sem a preocupação de imitação da natureza (ou do real) e em tampouco submeter o processo de criação a verdades morais, políticas ou científicas”. Se cotejarmos essa afirmação à obra de Francisca Júlia, ela soa quase contrária, tanto se preocupou a autora com a mimese pura, quanto formulou verdades morais, inclusive associando o belo e moralmente correto em diversos momentos.

Para CARA (1979, p. 75), “o legado crítico de João Ribeiro não é propriamente fecundo enquanto leitor da poesia de seu tempo, mas traz, por outro lado, informações vivas e curiosas no que se refere a certas formulações sobre a literatura e a arte”. De fato, o prefácio elogioso de Mármores tem pouca contribuição crítica ou de análise do trabalho:

Assim, sua obra crítica vai mostrá-lo divido entre certas reflexões teóricas, extremamente atuais e instigantes, e uma leitura de textos, que ora responde ao padrão mais médio de gosto, ora atesta uma grande capacidade de percepção, para além dos modelos que aplica. (CARA, 1979, p. 75)

Já BUENO (2007, p. 211) considera João Ribeiro como o “crítico de poesia mais liberto de idiossincrasias estéticas do Brasil de sua época, veio a confirmar-lhe o prestígio”, o prestígio de Francisca Júlia, no caso.

 Atualmente podemos facilmente apontar as falhas dessa literatura “de academia”, cheia de preceitos e formatações, porém, na época, havia um quadro relativamente numeroso de poetas em franca produção e publicação nos meios jornalísticos, e a seleção a ser feita pelo crítico era, então, um desafio. Para FRANCHETTI (2007, p. 11):

é no momento parnasiano que se afirma, uniforme e universalmente reconhecido, o terceiro elemento do sistema, ou seja, o mecanismo transmissor: o padrão lingüístico, imagético e temático parnasiano, que será glosado em alguns círculos, até os dias de hoje como sinônimo de poesias.

Os autores são unânimes em reconhecer um número superior de poetas parnasianos a simbolistas. E pensarmos que, em seu Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, Andrade Muricy catalogou mais de cem, 131 para sermos exatos, o que podemos pensar sobre a produção dos parnasianos.


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Fonte:
João Vicente Pereira Neto: “Oscilações líricas de uma musa impassível. Itinerário poético de Francisca Júlia no sistema literário brasileiro”. (Dissertação apresentada ao curso Pós-Graduação Literatura do Departamento de Teoria Literária e Literatura da Universidade de Brasília como requisito para obtenção do título de Mestre em Literatura Brasileira. Orientadora: Professora Dra. Ana Laura dos Reis Corrêa). Universidade de Brasília - Instituto de Letras Departamento de Teoria Literária e Literatura. Brasília, 2013.

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