30/03/2014

As Pupilas do Senhor Reitor, de Júlio Dinis

, Júlio Dinis, de As Pupilas do Senhor Reitor
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Margarida, exemplo de dignidade

Júlio Dinis, conforme referimos, é escritor de vários gêneros literários começou com a poesia, porém o seu trabalho de maior relevância são os romances. Ainda escreveu contos, peças de teatro e outros. Em toda a narrativa dinisiana, do teatro aos contos, chegando até  As Pupilas, observamos que há sempre personagens com o nome Margarida . Vitor Manuel de Aguiar e Silva diz: 

O nome da personagem funciona frequentemente como um indício, como se a relação entre o significante (nome) e o significado (conteúdo psicológico, ideológico etc.) da personagem fosse motivada intrinsecamente [...] E Álvaro Silvestre, protagonista de Uma abelha na chuva, não tem um apelido que denota rusticidade, uma árvore genealógica de lavradores e labregos contraposta à linhagem dos Pessoas, Alvas e Sanchos, donde procede a mulher com quem casou? (1973, p. 275).

Assim, podemos entender o porquê de tantas margaridas ao longo da obra de Júlio Dinis. A margarida é uma flor que pode ser branca ou amarela. O branco simboliza a pureza e o amarelo a riqueza, sem esquecer a beleza da flor margarida que faz parte das plantas ornamentais. As personagens, criação do autor de As Pupilas, que têm o nome de Margarida, são todas mulheres bonitas e de alma nobre, cheias de bondade e encantamento. Além de Margarida de As Pupilas, há outras igualmente puras e amoráveis, tanto nos contos como no teatro. Dos cinco contos de que é constituído Senões da Província, dois deles:  As apreensões de uma mãe e  Os novelos da tia Filomela têm personagem com o nome Margarida, também dentre as peças, que são oito, quatro delas têm personagens com este nome: Os anéis ou inconvenientes de amar às escuras, As duas cartas, Um segredo de família e Educanda de Odivelas. Aí está, em cada peça, uma Margarida, em cada conto mais Margarida e em cada Margarida a marca indelével da caneta de Júlio Dinis, descrevendo, cada uma dessas personagens femininas com grandeza espiritual e beleza física. Na sua lírica, no poema Um parecer, Júlio Dinis fala da sua preferência pela flor margarida:

As minhas flores dilectas
Não se encontram nos jardins
Por entre estátuas erectas
De mármore e labirintos,
Das estufas nos recintos,
E avenidas de alecrins.

[...] Não: as minhas, as que eu amo
Pois que eu prefiro ao ramo
Das flores mais presumidas
As singelas margaridas!
Que nas campinas colhi (DINIS, s.d., v. II, p. 495).

A singeleza da flor margarida alcança todas as margaridas de Júlio Dinis, porque este arquiteto da moral e dos bons costumes faz dessas mulheres que iluminam os fios das suas narrativas, personagens modelares, como é o caso de Margarida de As Pupilas. Em se tratando de Guida, moça bonita, simples, educada, capaz de grandes sacrifícios pelo bem dos outros, qualidade rara naquela época e em todos os tempos; há um entrelaçar dos caracteres físicos com as qualidades morais: 

Era já então uma simpática figura de mulher a de Margarida. Não se podia dizer um tipo de beleza irrepreensível, mas havia em toda aquela fisionomia um ar de afabilidade e de meiguice tal, que nem avultavam essas pequenas incorreções, só reveladas a exame minucioso e indiferente; [...] Os olhos, sobretudo, negros como poucos, sabiam fixar-se com tanta penetração e bondade, que, só a contemplá-los, esquecia-se tudo o mais. Não possuía um desses tipos fascinantes que atraem as vistas; era fácil até passar por ela, desatendendo-a; mas, fitada uma vez, o olhar deixava-a com pena, e a memória conservava-a; com amor (DINIS, 1999, p. 61).

Margarida, ainda criança, fora alcançada pelos laços cruciais da orfandade de toda, isto é, não tinha mãe nem pai. Vivia com a madrasta que não desmentia pela sua parte, a fama que de ordinário acompanha este pouco simpático nome, tivera a experimentar, nos maus tratamentos recebidos [...] (DINIS, 1999, p. 42). A madrasta tinha aversão a Guida e tratava-a com muita crueldade, impondo tarefas que causavam muito sofrimento e solidão aquela criança de apenas 12 anos, como o pastoreio das ovelhas e cabras em campo aberto. Criara-se num meio hostil, os maus tratos eram crescentes, carregava a amargura de uma vida sem carinho e afeição, pois, faltava o aconchego materno tão necessárias ao coração de uma criança. Enquanto a madrasta era rude e até perversa, Clara e Margarida, [...] ainda crianças, se diziam já amigas inseparáveis (DINIS, 1999, p. 50). A pequena Guida não tinha trégua na sua vida de sofrimento e dor, alguns episódios mostram o quanto a madrasta castigava a sua enteada. Numa noite fria de inverno, a madrasta ordena que Margarida realize uma tarefa e só poderia dormir após terminar tal obrigação que não seria fácil, nem de curta duração. O frio excessivo gelava o corpo e a solidão da noite enchia a cabeça de Margarida de recordações e medo. Assim chorava e tecia, naquela tarefa interminável; com a mão que usava a roca, com a mesma mão enxugava as próprias lágrimas, que lavavam o seu rosto:
  
O silêncio da noite era interrompido por mil ruídos sinistros, próprios para amedrontar as imaginações supersticiosas, como sempre, mais ou menos, são as da gente do campo.

Margarida, naquele momento, sentiu mais amarga, que nunca a sua orfandade e o seu desamparo. Chorou, chorou a ponto de se sufocar, e pediu à Virgem que se compadecesse dela (DINIS, 1999, p. 50).

Todo o tempo que Margarida conviveu com a madrasta, a sua vida foi um vale de lágrimas, porém a revolta e o ressentimento nunca encontrou acolhida no coração daquela generosa criatura. Como diz o Vitor Manuel, o nome da personagem funciona como indício e no caso da mãe de Clara não foi diferente. Em todos os capítulos que são impregnados da sua maldade, lá está nomeada como madrasta , não existe um nome de batismo ou de registro do cartório. Até as beatas e as mexeriqueiras que são mal vistas na sociedade aldeã, têm nome, porém à madrasta de Margarida foi-lhe negado este direito. Assim viveu Margarida, amargurada e triste, pelos maus tratos e monstruosidades da madrasta, situação que a fez um temperamento melancólico. As dores da vida não abalaram as virtudes de Margarida, cada dia ela se tornava mais caridosa e amável. Quando a madrasta adoeceu, Margarida foi a enfermaria cuidadosa e terna:

Assim continuou este viver por muitos anos, até que a mãe de Clara adoeceu. Durante a moléstia, foi Margarida desvelada e incansável enfermeira, colhendo sempre, em paga dos seus carinhos, modos rudes e ásperos, expressões inequívocas da aversão que nunca deixara de sentir por ela. A heróica rapariga não afrouxava por isso na afetuosa caridade com que a tratava (DINIS, 1999, p. 54).

Margarida, além de oferecer um perdão amplo, total àquela que foi motivo das maiores amarguras na sua vida, cuida da madrasta no seu leito de dor, como o Bom Samaritano (Lucas, cap. X, vv. 25 a 37). Aprendeu com as próprias dores a respeitar os outros e socorrer os deserdados da vida. No seu primeiro romance campesino, Júlio Dinis mostra o dia-a-dia de Margarida, após ministrar aulas as suas alunas, procurava sempre empregar o seu tempo com visitas aos mais necessitados, levando remédio e consolação aos doentes, e muitas vezes chorando com eles as humilhações de que era vítima, pela falta de recursos. Certa ocasião, o reitor encontrou Margarida saindo do casebre de um dos seus assistidos, com os olhos vermelhos, por ter compartilhado da desventura de uma cobrança do homem da botica, uma conta do remédio que sequer tinha curado a enfermidade. O reitor, prontamente, ajuda a sua pupila a resolver aquela situação aflitiva:

 Que tens, Margarida? perguntou ele, com solicitude.  esses olhos são de quem chorou.
 É que despedaça o coração ouvi-lo!
 Então está mais doente?
 Está muito mal.
 E aonde ias tu?
 A casa. O boticário quer o dinheiro dos remédios... (DINIS, 1999, p. 76).

Margarida seguia os ensinamentos do Cristo e, consequentemente, à prática da caridade; virtude que segundo São Paulo: [...] é paciente; é branda e benfazeja; a caridade não é invejosa; não é temerária; [...] mas se rejubila com a verdade; tudo suporta, tudo crê, tudo espera, tudo sofre (Cap. XIII, vv. 1 a 7). Margarida é verdadeiramente caridosa, exercita esta virtude não só com a beneficência e o amparo aos deserdados da vida, mas também no conjunto de todas as qualidades do coração, na bondade e na benevolência para com todos, até com seus inimigos. Na aldeia, criação de Júlio Dinis, Margarida luta contra o mal, seu objetivo é o bem que pode fazer à sociedade campesina que está inserida; servindo a todos que cruzam o seu caminho, especialmente os mais carentes. Ao longo da narrativa de As Pupilas, Margarida não altera o seu comportamento é sempre generosa, compreensiva, afável e profundamente caridosa. Todas estas características vão se acentuando, quando a trama se encaminha para a conclusão, como podemos observar, no encontro de Clara com Daniel, no jardim da sua casa, pois teria acontecido o rompimento do noivado de Pedro com a pupila mais nova e que seria um escândalo para o povo da aldeia onde as beatas e mexeriqueiras espalhariam bastante veneno. Porém, Margarida abdica da sua boa reputação e do seu nome limpo para salvar o casamento e a honra de Clara. Margarida é a luminosa coluna que sustenta as adversidades da própria vida, sem deixar que as demais personagens do seu convívio resvale para os abismos da corrupção e das desventuras da vida. O reitor, homem generoso e de bom caráter, que está entre os personagens modelares, tem profundo respeito por Margarida, pela sua conduta ilibada, sem mancha nem a menor mácula, também pelo seu potencial intelectual. Em várias ocasiões, ao longo da narrativa, o padre Antônio chega a confiar mais na sua pupila, do que nele próprio:

Pois bem, pergunte-se ao sr. reitor e se ele disser que... − Ora, o sr. reitor, sim! Basta ser pedido teu para ele aprovar.

[...] Clara tinha alguma razão em suspeitar da imparcialidade do juiz. O pároco, tutor das duas raparigas, acostumara-se a admirar o bom senso e inteligência superior de Margarida a ponto de confiar mais nela, do que em si mesmo (DINIS, 1999, p. 45).

Fazendo jus ao nome, Margarida é a flor mais nobre, mais pura e mais bem dotada de qualidades, que embeleza o jardim tecido por Júlio Dinis, em As Pupilas do Senhor Reitor. 
  
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Fonte:
Maria Neni de Freitas: “Representações do feminino em Júlio Dinis: uma leitura de uma Família Inglesa e as Pupilas do Senhor Reitor”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras, como requisito parcial para obtenção do título de Doutor em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Orientadora: Prof. Dra. Wilma Martins de Mendonça). João Pessoa, 2009. Disponível em: http://www.cchla.ufpb.br/

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