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Biografia de Casimiro de Abreu
Biografia de Casimiro de Abreu
Tem-na também própria e notável Casimiro de Abreu. Poetando desde 1855, havendo mesmo publicado em Portugal desde 1856, na Ilustração Luso-Brasileira, alguns poemas, só em 1859 deu à luz as suas Primaveras, porventura o mais lido dos nossos livros de versos.
Casimiro José Marques de Abreu era natural da Barra de São João, na província do Rio de Janeiro, onde nasceu em 1837 e morreu em 1860. Seu pai, português como o de Gonçalves Dias, como esse o destinava ao comércio. Menos tratável, porém, que aquele, quis obrigar o filho a ficar numa profissão a que este era de todo avesso. Dos poetas da sua geração é Casimiro de Abreu, talvez mais que outro qualquer, o poeta do amor e da saudade. Os dois sentimentos são a alma da sua poesia. Este pobre rapaz fraco e enfermiço nascera poeta, com a sensação viva, dolorosa do que o grande poeta latino chamara as lágrimas das cousas, cujo mortal encanto lhe penetrou cedo a alma melancólica. O drama íntimo da sua vida, o desconhecimento do seu talento, a contrariedade oposta à sua vocação e, acaso, as imperfeições do lar paterno, tudo teria sido exagerado até ao trágico pela sua sensibilidade doentia. É grande a mágoa que de tudo lhe vem; grande, real e sincera. Da sua vida amorosa nada de certo sabemos. Os seus biógrafos, mesmo aqueles que mais intimamente, parece, o conheceram e trataram, como Reinaldo Montoro e Teixeira de Melo, divagam e amplificam, segundo tem sido aqui o mau vezo dos biógrafos, em vez de lhe investigarem a vida e de a contarem sem impertinentes recatos. Nos seus versos, porém, há a impressão pungente de um amor infeliz que lhe deixou a alma malferida e para sempre dolorosa. O afastamento, a ausência da terra natal, o exílio, como, imitando a Gonçalves Dias, lhe chamou, completaria a exacerbação da sua sensibilidade orgânica e lhe daria ao estro o tom nostálgico que, sem igualar a simplicidade genial do seu inspirador, não lhe ficará somenos em emoção.
É sob a influência da nostalgia e do amor, ambos de fato nele uma doença, que se põe a cantar o Brasil. Mas o Brasil, que canta em seus sentidos versos, a pátria por quem chora e que celebra, é principalmente a terra em que lhe ficaram as cousas amadas e mormente a desconhecida a quem dedicou o seu livro e que, segundo a meia confidência de um daqueles biógrafos, teria encontrado morta quando voltou à terra natal. A saudade desta com os encantos que a saudade empresta aos seus motivos é que o faz patriota, se mesmo com esta restrição se lhe pode aplicar o epíteto, que não vai aqui como elogio. A sua nostalgia é sobretudo o amor, não só à mulher querida, mas a quanto este amoroso amava, o torrão natal, a casa paterna, a vida campestre, que para as almas sensíveis como a sua se enche de prestígio ignorados do vulgo.
Lá de longe cantou a sua terra, os sítios da sua infância, as suas recordações de toda a ordem, avivadas pela saudade, com sentida e comovedora emoção. As penas de amor e de saudade fizeram-no o poeta que foi. Toda a sua curta vida, ainda depois de restituído à sua terra, uma saudade incerta, uma indefinida nostalgia ficar-lhe-ia na alma como um ferrete daquelas penas. E o nosso povo, que do português herdou o senso desses dois sentimentos, em a nossa raça irmanados na mesma emoção, achou porventura em Casimiro de Abreu o mais fiel intérprete das suas próprias comoções elementares, primárias, do amor do torrão e da mulher querida. Pelo que é Casimiro de Abreu o poeta brasileiro que o nosso povo mais entende e a quem mais quer. Ama-o, recita-o, canta-o, fazendo-o um poeta popular, em certos meios quase anônimo. Comprova este asserto o fato de ser Casimiro de Abreu, de todos os nossos poetas, excetuando Gonzaga, certamente o que tem sido mais vezes reimpresso, total ou parcialmente. As suas Primaveras têm, pelo menos, oito edições.
Voltando doente e abatido à terra natal, a vista daquelas cousas tão choradas no exílio põe-lhe na alma dolente acentos raros atingidos pela nossa poesia. E dele se haviam de inspirar Luís Guimarães Júnior, Lúcio de Mendonça e outros que cantaram iguais estados d’alma:
Eis meu lar, minha casa, meus amores,
A terra onde nasci, meu teto amigo,
A gruta, a sombra, a solidão, o rio
Onde o amor me nasceu, cresceu comigo.
Os mesmos campos que eu deixei criança,
Árvores novas, tanta flor no prado!...
Oh! como és linda, minha terra d’alma,
—Noiva enfeitada para o seu noivado.
Foi aqui, foi ali, além... mais longe,
Que eu sentei-me a chorar no fim do dia,
—Lá vejo o atalho que vai dar na várzea...
Lá o barranco por onde eu subia!...
Acho agora mais seca a cachoeira
Onde banhei meu infantil cansaço,
—Como está velho o laranjal tamanho
Onde eu caçava o sanhaçu a laço!...
Como eu me lembro dos meus dias puros!
Nada me esquece!... Esquecer quem há de?
—Cada pedra que eu palpo ou tronco ou folha
Fala-me ainda dessa doce idade.
E a casa?... as salas, estes móveis, tudo,
O crucifixo pendurado ao muro...
O quarto do oratório, a sala grande
Onde eu temia penetrar no escuro!...
É da melhor, da mais alta, da mais profunda poesia. Como poeta do amor, não é demais dizer que Casimiro de Abreu deu à nossa língua, tão rica sob este aspecto, algum dos seus mais comovidos senão mais formosos cantos. A uns destes os prejudicou, no conceito da geração imediata ao poeta, a mesma popularidade que os vulgarizou nos recitativos de salão, como foram de moda. Não obsta que poemas como Amor e medo e Minha alma é triste sejam, sem encarecimento, apesar da sua toada que nos é hoje menos agradável, dos mais belos da nossa poesia.
Com incorreções de forma poética, a que somos depois do parnasianismo demasiadamente sensíveis, têm eles em alto grau, sentimento, idealização, emoção da melhor espécie poética, e até, em mais de um passo, peregrinas excelências de expressão. Há em Amor e medo notadamente um ardor de volúpia ao mesmo tempo contida e exuberante, que lhe realça sobremodo a beleza, e formosuras de sensação e de expressão que não teriam o direito de desdenhar os mais reputados sequazes de Baudelaire. É forte a sua tradução das tentações amorosas da carne, como o diriam estes poetas, e, mais, de todo nova na nossa poesia, senão também na da língua portuguesa:
Ai! Se eu te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Solto o cabelo nas espáduas nuas...
Ai! Se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos, palpitante o seio!...
Ai! Se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala, a protestar baixinho,
Vermelha a boca soluçando um beijo!...
Desprezados, como necessariamente sucederá dentro em pouco, os preconceitos que a vulgarização de tais versos contra eles criou, eles nos aparecerão em toda a sua novidade e beleza de sensação e expressão. Ver-se-a o seu realismo de idéias e estilo, nem sequer suspeitado então como fórmula ou processo de escola, do mesmo passo que se lhes sentirá o ardor e a intensidade que desafia quanto a paixão à cola daquele poeta francês e dos seus discípulos pôs nos versos dos nossos ulteriores poetas. Em que lhes pese ao estúpido desdém pelo verdadeiro e notável poeta que é Casimiro de Abreu, facilmente se verifica que eles lhe sofreram a influência e freqüentemente o imitaram, raro o igualando e nunca o excedendo na realidade da emoção nem no sublime da expressão. Pela profundeza e sinceridade do seu sentimento poético, tem ele mais razão de viver do que estes; já vive de fato mais do que eles viverão, e o futuro, não duvido vaticinar, o desforrará cabalmente dos seus tolos desdéns.
Tristeza ingênita, melancolia amorosa, acerba nostalgia, angustioso sofrimento de uma alma rica de ingênuas e ardentes aspirações de glória e de amor, tudo deu a este delicioso poeta a feição dolorosa que ainda no meio dos poetas dolentes da sua geração o distingue. Tinha também, como os outros, o pressentimento da morte prematura. Mais de um poema seu o declara ou o revê.
A um amigo recém-morto dizia:
Dorme tranqüilo à sombra do cipreste...
—Não tarda a minha vez;
Com efeito, dois anos depois, finava-se com vinte e três de idade, na sua fazenda ou sítio de Indaiaçu, no torrão natal, às cinco horas e vinte e cinco minutos da tarde do dia 18 de outubro de 1860.
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Fonte:
José Veríssimo: “História da Literatura Brasileira”. Ministério da Cultura - Fundação Biblioteca Nacional - Departamento Nacional do Livro, disponível digitalmente no site: Domínio Público
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