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---Aventuras de
Diófanes: “lembre-te que é de mulher”
Teresa Margarida da Silva e Orta nasceu
em São Paulo, em 1711 ou 1712. Filha do português
José Ramos da Silva, que fez imensa fortuna no Brasil, e da paulista Catarina
de Horta, mudou-se para Portugal
aos cinco anos de idade. Já em Portugal, foi admitida no convento, o qual acabou
abandonando na adolescência, para casar-se, contra a vontade paterna, aos 16 anos, com Pedro
Jansen Moller. Dona de uma audácia inquestionável e de um espírito revolucionário, Teresa não
mediu esforços, nem tão pouco comoveu-se com as súplicas familiares até conseguir, judicialmente, o
direito de sair da casa do pai para casar-se.
Ernesto Ennes, ao referir-se a essa
atitude ousada de Teresa Margarida, aparentemente
pouco relevante, revela a revolução que começava a operar-se nos meios socioculturais e que já
evidenciava a emancipação feminina:
A verdade é que este conflito, na
aparência sem importância, mas duma transcendência singular no fundo, atingia
em cheio a autoridade patriarcal, que a partir desta data jamais se poderia
impor às filhas insubmissas, desobedientes
e irrefletidas, na contingência do primeiro namorado que surgisse. Erma como
que os primeiro alvores da revolução operada nos costumes, com que o advento do
reinado de D. João V haviam de transformar a sociedade portuguesa do
século XVIII. (ENNES, 1952, p. 34-35)
Começava, assim, uma vida ousada e
reveladora de uma mulher que, desde cedo, rompeu
regras, transgrediu normas em seu tempo. Devido à condição financeira e social
de prestígio que a família de
Teresa possuía, a autora acabou por receber uma educação esmerada para seu tempo e que a
fez destacar-se nos meios intelectuais. Como diz Bloem, no estudo crítico apresentado na
primeira edição brasileira da obra, de 1945, “a autora revela com a obra, inteligência
e cultura excepcionais para a época, sobretudo se se considerar a orientação dada à
educação feminina a esse tempo” (1945, p. XV).
A importância de Aventuras de Diófanes como obra reveladora da insubmissão feminina ganha consistência se
pensado e lido sob a luz do Iluminismo, corrente filosófica de suma importância, que
predominou no século XVIII e
que, em Portugal, ganhou proporções
inusitadas, devido aos fortes preceitos religiosos, conservadores e moralistas que o país mantinha.
Do Iluminismo a obra possui as
alegorias e a valorização das ciências e da razão, além de possuir o que pode ser chamado de máscara, pois, a
partir do efeito da alegoria e do uso de disfarces por parte dos personagens e,
até mesmo, da própria autora, pelo uso de um pseudônimo, o romance ganha
conotações expressivas, em um período em que a Igreja, com a criação da Contra-Reforma,
perseguia e proibia qualquer manifestação que julgasse suspeita, impedindo que a
intelectualidade ascendesse entre a classe média e pusesse em risco a sua autonomia.
O que se percebe é que, ao longo de
nossa História, a mulher viu-se obrigada a ocupar
um lugar que lhe foi destinado pelos homens. A caracterização como ser frágil e romântico que durante muito tempo
prevaleceu sobre a figura feminina explica a definição de que não cabe à mulher o papel
de criadora, pois tal atitude não condiz com a formação fragilizada e
sonhadora, próprias da condição feminina. A força e a razão pertenciam à natureza masculina, enquanto que
a sedução e a fragilidade eram fonte de poder para a natureza feminina:
Para a maior parte dos filósofos
iluministas, que à mulher falte razão ou tenha apenas uma razão inferior é de
uma evidência tranquilizadora, mas que, no entanto, pretende apoiar-se em
factos. Entre esses fatos, o mais freqüentemente citado é que não existem
mulheres capazes de invenção, elas estão excluídas do génio, ainda que possam
ter acesso à literatura e a certas ciências. Esta incapacidade é baseada numa
psicologia "natural". A mulher é o ser da paixão e da imaginação, não
do conceito. (DUBY E PERROT, 1991, p. 386)
Por excesso de imaginação pode -se
ficar doente, enlouquecer ou morrer. É
por isso que a fixação do espírito feminino no estádio imaginativo explica que ele continue a ser
infantil, frágil e incontrolável. Um dos remédios indispensáveis mas sempre
insuficiente para esta "loucura" latente
no ser feminino é proibir-lhe a leitura dos romances, essas obras de ficção de
que somente a solidez do espírito viril pode fazer uso. (DUBY E PERROT, 1991,
p. 387)
Definindo a mulher como o “ser da
paixão, não do conceito” a figura feminina adentra
pelo século XVIII tendo a sua função restrita ao espaço do lar, no cuidado dos filhos e do marido, pois sua
condição frágil e sonhadora não lhe permitia outro papel.
Embora o pensamento no século XVIII em
Portugal tenha sido bastante "beato", ligado a moralismos e
comportamentos conservadores, uma obra destacou-se no processo de formação do ideário
setecentista português, revelando importância e interesse para a poesia: O Verdadeiro Método de Estudar (1756), de Luís Antonio
Verney. A obra caracteriza-se
pelas propostas pedagógicas
inovadoras que apresenta e pela crítica às instituições pedagógicas
tradicionais. Verney, nessa obra de combate e crítica, prima pela democratização do ensino
e pela instrução das mulheres, como se pode notar na transcrição, abaixo, de
trechos do Verdadeiro Método
de Estudar:
Quanto à necessidade, eu acho-a grande
que as mulheres estudem. Elas, principalmente as mães de família, são as nossas
mestras nos primeiros anos da nossa vida. (...) Além disso, elas governam a
casa, e a direcção do económico fica na esfera da sua jurisdição. E que coisa
boa pode fazer uma mulher que não tem alguma idéia da economia? Além disso, o
estudo pode formar os costumes, dando belíssimos ditames para a vida; e uma
mulher que tem alguma notícia deles pode, nas horas ociosas, empregar-se em coisa
útil e honesta, no mesmo tempo que outras se empregam em leviandades
repreensíveis. (...) Persuado-me que a maior parte dos homens casados que não
fazem gosto de conversar com suas mulheres, e vão a outras partes procurar
divertimentos poucos inocentes, é porque as acham tolas no trato; e este é o
motivo que aumenta aquele desgosto que naturalmente se acha no contínuo do
trato de marido com mulher. (VERNEY,
1746, p. 125)
Nesse apêndice, em que Verney apresenta
o “Estudo das Mulheres”, é perceptível a preocupação com esse aspecto da Nova
Pedagogia que se pretendia implantar em Portugal e que estabelecia um plano de
igualdade entre homens e mulheres, em termos da educação que ambos deveriam receber, ou
seja, segundo Verney, a capacidade feminina dependia apenas das oportunidades que
durante muitos séculos foram negadas às mulheres:
(...)Parecerá paradoxo a estes Catões
Portugueses ouvir dizer que as Mulheres
devem estudar; contudo, se examinarem o caso, conhecerão que não é nenhuma
parvoíce ou coisa nova, mas bem usual e racionável. Pelo que toca à capacidade,
é loucura persuadir-se que as Mulheres tenham menos que os homens. Elas não são
de outra espécie no que toca a alma; e a diferença do sexo não tem parentesco
com a diferença do entendimento. A experiência podia e devia desenganar estes
homens. Nós ouvimos todos os dias mulheres que discorrem tão bem como os
homens; e achamos nas histórias mulheres que souberam as Ciências muito melhor
que alguns grandes Leitores que nós ambos conhecemos. (VERNEY, 1746, p. 123-
125)
Em meio a esse pensamento filosófico
divergente, surge, em 1752, Aventuras
de Diófanes. As idéias que norteiam as páginas do
romance, na voz dos personagens, demonstram
que a autora era grande conhecedora do pensamento filosófico iluminista, sobretudo no que se refere à
figura feminina. A autora tinha "sutileza de espírito" suficiente
para perceber que a diferença entre os homens e as mulheres existia porque a
mulher, durante toda a
história, fora objeto de
representação masculina; por isso, as concepções, criadas por homens, colocavam as
mulheres em uma posição de inferioridade: "Eles vieram primeiro ao Mundo, fizeram as
leis, e tomaram para si as regalias" (ORTA, 1993, p. 95).
Há, no romance, críticas à
educação feminina da época, que, em pleno século de combate às idéias que não se
baseavam na razão, insistem em manter uma imagem estereotipada da mulher,
definindo-a pela sua beleza e pela sua coquetaria. A autora critica essa imagem
da mulher ociosa e incapaz e destaca a importância da leitura e do trabalho como meios para garantir a
afirmação da capacidade feminina como veremos no capítulo de análise do romance em
questão.
Percebe-se, portanto, que Aventuras de Diófanes é um romance consciente dos direitos
femininos que busca, a partir de uma obra de cunho didático e moralista (pois
só assim o livro pôde ser publicado), criticar o pensamento filosófico que
continuava a definir a mulher a
partir de sua condição sexual.
Teresa Margarida é, portanto,
personagem de uma história que, seja na vida social, ao enfrentar o pai, aos 16 anos
apenas, e casar-se contra a sua vontade, seja na vida literária, ao escrever um
romance e discutir o papel da mulher, mostra-se audaciosa e inovadora em uma época pouco
acostumada a ver mulheres escritoras e, sobretudo, escrevendo sobre a própria
condição feminina.
É interessante
observarmos as palavras iniciais do Prólogo, de Aventuras de Diófanes, pois nos permite
refletir sobre a alusão que a autora faz sobre a “razão particular” que a levou a escrever o romance:
Leitor prudente, bem
sei que dirás ser melhor
método não dar satisfações; mas tenho razão particular, que me obriga a
dizer-te, que não culpes a confiança de que me revisto, para representar a
figura dos doutos no teatro deste livro... (ORTA, 1993, p. 56).
Como esclarece Montez,
será essa “razão particular” o “fato de ser mulher e escrever, saindo do espaço
restrito da ignorância para o espaço amplo do saber confirmado pelas páginas de Aventuras de Diófanes?
Talvez...” (MONTEZ, 1993, p. 32). O fato, porém,
é que Teresa Margarida não se calou, mesmo vivendo em um momento histórico, social e literário em que a
figura feminina era pouco expansiva. Como lamenta Xavière Gauthier: “enquanto as mulheres
permanecerem em silêncio, elas estarão fora do processo histórico” (GAUTHIER, In:
Hollanda, 1994, p. 37). A autora de Aventuras
de Diófanes só conseguiu fazer parte desse
referido “processo histórico”, sendo hoje reconhecida pela crítica, por ter ido além do que
lhe era permitido, não se calando mesmo numa sociedade em que a mulher não tinha voz,
mesmo sendo necessário escrever romance alegórico e encobrir seu verdadeiro nome com
o uso de um pseudônimo.
A crítica feminista ao
discutir o papel da mulher escritora aborda questões interessantíssimas que nos
permitem refletir sobre a atuação da mulher ao se colocar no espaço masculino e registrar a
sua visão sobre a própria condição feminina, distanciando-se da “visão
falocêntrica” que durante séculos prevaleceu em nossa cultura, já que toda a imagem ou retrato que se fazia
das mulheres na literatura, e na sociedade em geral, era fruto de uma sociedade
machista, que insistia em marcar as diferenças entre homens e mulheres,
apresentando as mulheres como inferiores, frágeis e sonhadoras. É exatamente a visão invertida que se tem em Aventuras de Diófanes , pois, além de se ter uma obra de
ficção escrita por uma
mulher, nela tem-se o retrato, através da escrita dessa autora, da própria figura feminina:
O estudo da imagem
biológica na escrita das mulheres é útil e importante na medida em que
compreendemos que outros fatores além da anatomia estão envolvidos. As idéias a respeito
do corpo são fundamentais para que se compreenda
como as mulheres conceptualizam sua situação na sociedade; mas não pode haver
qualquer expressão do corpo que não seja mediada pelas estruturas lingüísticas,
sociais e literárias. A diferença da prática literária das mulheres, portanto,
deve ser baseada (nas palavras de Miller) “no corpo se sua escrita e não na
escrita de seu corpo”. (BUARQUE DE HOLLANDA, 1994, p. 35).
Assim, em Aventuras de Diófanes,
estaremos em contato com um documento que nos
permite uma visão diferenciada da mulher do século XVIII, pois é sob o ponto de
vista feminino que as personagens do romance, sobretudo Hemirena, personagem
principal, serão
retratadas. Até o século XVIII, a mulher, como já dito anteriormente, foi musa
e inspiração em muitos
poemas e em prosa, porém, sob a visão masculina, pois eram os homens os escritores.
É interessante
observarmos, sobretudo, que o romance de Teresa Margarida, se por um lado
mostra-se “atrasado”, como diz a crítica e como veremos no capítulo de análise, por não apresentar as categorias
narrativas com as mesmas abordagens que vinham apresentando romances da
Inglaterra, França e Espanha, por exemplo, desde o início do século XVIII, ou, ainda por não
se referir à “cor local”, por outro lado, merece destaque por ser a primeira
obra de ficção escrita por uma mulher, de nacionalidade brasileira, a reivindicar
os direitos femininos, em uma autêntica defesa da igualdade entre homens e mulheres.
Teresa Margarida
faleceu aos 80 anos em Lisboa, depois de uma vida atribulada. Assistiu a quase todos os
importantes acontecimentos de Portugal no século XVIII: os horrores da Inquisição e o
terrível terremoto de 1755. Além disso, viveu sete anos de cárcere no Mosteiro de Ferreira
de Aves, por haver mentido ao Rei D. José, afirmando que seu filho engravidara
uma rica moça de família portuguesa. Encerra-se, assim, em 1793, uma vida de muita luta e
insubmissão, que nos deixou como legado páginas de um brilhante documento acerca da
revolução social e da emancipação feminina em um período marcado pela repressão.
Embora o romance de
Teresa não se enquadre perfeitamente no
modelo de romance que o século XVIII começava a apresentar e que está baseado
nos princípios do “realismo formal”,
sua importância não pode ser negada. Sob
a máscara alegórica, esconde-se a verdadeira
intenção da obra e é ela que devemos valorizar ao lermos e analisarmos o romance, sem esquecermos, é
claro, das reais condições da ficção e da sociedade portuguesa da época.
---
Fonte:
Fonte:
Helaine
Aparecida Hipólito: “Aventuras de Diófanes:
as “aventuras” do romance
português”. (Dissertação apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP, para a obtenção do
título de Mestre em Letras. (Área de Concentração: Literaturas de Língua Portuguesa. Orientador: Prof. Dr.
Odil José de Oliveira Filho). Assis, 2004
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