30/03/2014

A Tragédia da Rua das Flores, de Eça de Queirós

 A Tragédia da Rua das Flores, de Eça de Queirós
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Da tragédia ao trágico.

A interrogação, que direciona uma importante observação deste trabalho, é a de como se pode definir o trágico. Por saber que o questionamento e a investigação são as molas mestras da reflexão e do pensamento, acredita-se prudente deter-se nestas questões.

Para alguns teóricos, Jean Marie Domenach (1968), por exemplo, o retorno do trágico é um aspecto que está evidente nesse tempo; para outros, o trágico e a tragédia detêm profundidade e intensidade que vão à frente dos costumes, dos caprichos e das atualidades.

As reflexões, que serão tecidas acerca de como se pode definir o trágico, levarão em consideração a história e a época, assim como a tentativa de compreensão do homem e da existência. Não se referirá, nesse momento, nenhuma tragédia específica, nem mesmo nenhum escritor ou período. Ao tentar definição que designe a própria substância do trágico, o estudioso deparar-se-á com alguns obstáculos, principalmente em se tratando da significação do vocábulo tragédia e da extensa bibliografia existente sobre esse gênero literário.

No vocabulário usual, o termo “tragédia” denota ocorrências nocivas, funestas, terrificantes, que conduzem a sensações sombrias, tristes, desagradáveis, de sofrimento, propriamente ditas. O vocábulo “tragédia” também pode significar calamidade, grande desastre ou desgraça, igualmente um desastre que não se pode prever ou a enfermidade que leva ao termo da existência. Tem-se o conhecimento de que o termo “tragédia” surge no século V a.C., com as representações teatrais; porém, o entendimento comum e usual, permite-se inferir que a tragédia surge e adquire outro sentido com o decorrer dos séculos.

A origem etimológica da palavra “tragédia” é muito discutida. “Tragodía” é palavra formada por duas outras: “tragos”, que significa “bode”; “oidé”, que significa “canto”. Assim sendo, “tragédia” significa, etimologicamente, “canto do bode”. A interpretação desta origem é variada. Alguns estudiosos acreditam que tal denominação provém do fato de os sátiros vestirem-se com peles de bodes. Sendo eles cantores dos ditirambos a Dioniso, a denominação é assim justificada. Esta tese é defendida pelos Peloponesos, que vinculam a origem da tragédia a solo pátrio. Aríon é o primeiro a compor um ditirambo, a dar-lhe nome, e a representá-lo em Corinto (LESKY, 1996, p. 255). Corinto está localizado no Peloponeso.

Assim sendo, os habitantes desta região da Grécia querem a primazia da criação da tragédia. Outros dizem que se trata de “canto pelo bode como prêmio”. Ou seja, que, quando os cantos eram entoados, atribuía-se um bode para o vencedor. Horácio – em Ars Poetica – “é o testemunho mais conhecido desta teoria, segundo a qual o cantor campesino entoava outrora seu canto ‘trágico’ para obter um bode como prêmio” (Apud LESKY, 1996, p. 67-68).

Há ainda uma terceira versão para a compreensão da origem etimológica da palavra “tragédia”: “canto sacrificial do bode”. Há sempre, numa tragédia, um herói pertencente ao mundo dominante da aristocracia. Sua natureza é dominada pela hybris, desmedida, fuga dos limites impostos pela boa convivência em sociedade. Esta especificidade de caráter acaba por conduzir o herói à hamartia, erro trágico. O final do percurso é a morte, sendo, pois, como tal, um ente a ser sacrificado para o bem da pólis.

Juntamente com todas estas especificidades que envolvem o vocábulo tragédia, outras se juntam, principalmente em se tratando das variadas aplicações do vocábulo em ambientes e acepções divergentes. Ainda é preciso lembrar que, em determinadas situações, o vocábulo indica – também – angústia, aflição, amargura e padecimento.

Desde Aristóteles, são inúmeras as definições de tragédia, embora todas geram contestação ou controvérsia. Determinados escritores e teóricos indicam o sentido da palavra tragédia através das concepções de dignidade e ruína.

José Pedro da Silva Santos Serra (1998) lembra que, no prefácio de Bérénice, Racine mostra que a característica principal da tragédia se encontra na grandeza da ação e das sensibilidades que a sustentam, enfatizando que não é necessário que haja sangue e morte, é apenas necessário que a ação seja grande; que as personagens sejam heróicas; que as paixões sejam instigadas e que todos os efeitos ou as conseqüências da melancolia grandiosa que faz toda a satisfação da tragédia se efetivem.

Pelo que se observa, as deficiências das conceituações e explicações para a noção de tragédia são grandes. Focalizando apenas as idéias de grandeza e queda, chegar-se-ão a inúmeras. Afinal, o que significa grandeza e queda? Grandeza alude às personagens, ao
mito, à ação; queda refere-se à ocorrência acidental, a acontecimento funesto, à inevitabilidade. Ainda é importante lembrar que a queda ao mesmo tempo em que poderá ser fatal, terminante e decisiva, poderá proporcionar ao indivíduo a liberdade e a salvação. São inúmeras as questões acerca da conceituação de tragédia enquanto dignidade e queda, o que denota que são correntes, difusas, sem precisão.

Uma questão nos parece necessária: onde está estabelecida a gênese do trágico? Ele nasce com a forma estética da tragédia? Segundo Albin Lesky (1996), a origem do trágico se encontra já nas epopéias, na Ilíada e na Odisséia; propriamente dito – a poesia
homérica já está revestida de rudimentos de trágico. Sabendo que o trágico se encontra, mesmo que em caráter elementar, na epopéia homérica, pode-se percebê-lo, associando-o à forma estética da tragédia. Deve-se acrescentar que o vocábulo trágico não encerra interpretação homogênea; pelo contrário, encerra multiplicidade de significações, que varia de acordo com o ambiente cultural e com o propósito do escritor. Trágico é um conhecimento, é uma idéia que não é possível restringir, demarcar, circunscrever, classificar, pois é de riqueza abundante.

Assim, configura-se importante tecer algumas considerações acerca da banalização que o vocábulo trágico vem sofrendo ao longo dos séculos, bem como acerca do gradativo distanciamento do sentido clássico, para se transformar em adjetivo que evidencia ocorrências, episódios e situações funestas e sinistras determinadas como trágicas.

As palavras trágico e tragédia são vítimas de banalizações progressivas, melhor dizendo, de um esvaziamento do próprio conteúdo, visto que perdem o significado e, por isso, assumem os mais diversos sentidos. Assim, usa-se a palavra tragédia para qualquer evento dotado de intensidade negativa, como a morte, um terremoto, etc. Essa é uma das dificuldades que problematiza a compreensão do trágico e da tragédia. Uma outra dificuldade é a divergência existente entre as diversas teorias que pretendem interpretá-los. Porém, a principal dificuldade é própria da resistência que envolve o fenômeno trágico, já que é rebelde a qualquer tipo de definição: deparamos na tragédia com uma situação humana limite, que habita regiões impossíveis de serem codificadas. As interpretações permanecem aquém do trágico, e lutam com uma realidade que não pode ser reduzida a conceitos. (BORNHEIN, 1975, p.6)

Situações aborrecedoras, fatos desagradáveis, desenlaces infelizes, acontecimentos aflitivos ou solitários não são suficientes para caracterizar o trágico – é preciso muito mais. É necessário, por exemplo, uma ocorrência seguida de episódios, como tão bem registra Otávio Cabral: o trágico se dá “através de uma sucessão de acontecimentos, como que uma reação em cadeia” (2000, p.15).

O fundamento do trágico reside na tensão entre a consciência grave do limite humano e a tentativa desesperada de ultrapassá-lo. Essa visão está presente tanto na tragédia clássica quanto na moderna. Em ambas, o herói passa de uma situação de equilíbrio aparente para uma situação caótica, instalando-se a tensão trágica na ruptura da medida e na punição que o homem procura em vão compreender. Em se tratando dos gregos, o combate se dá entre o homem e o destino – poderoso e sobrenatural – que pesa sobre ele. Há uma força que dirige, porém não impede o homem de agir com liberdade. O herói trágico pode agir ou não agir, aceitar ou não aceitar determinada situação, e é justamente o emprego consciente dessa liberdade que o conduz à catástrofe. O conteúdo da ação trágica baseia-se nas forças universais que dirigem a vontade humana e se justifica por si mesma.

A esse propósito, pode-se dizer que, como escreve Gumbrecht (2001), não há ação trágica sem a presença ameaçadora da morte. No caso das obras que este estudo pretende analisar, se está diante de duas tragédias, não no sentido literal do termo, conforme mencionar-se-á mais adiante, mas está-se diante de dois romances em que os elementos trágicos estão presentes, já mesmo pelo aspecto ameaçador da morte que se encontra nas obras A Tragédia da Rua das Flores e Os Maias.


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Fonte:
Luciana Ferreira Leal: “Elementos do trágico em Eça de Queirós: A Tragédia da Rua das Flores e os Maias”. (Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista para a obtenção do título de Doutor em Letras. Área de Conhecimento: Literatura e vida social. Orientador: Dr. Odil José de Oliveira Filho). Assis, 2006. Disponível em: http://www.athena.biblioteca.unesp.br/

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