15/03/2014

A profissão de Jacques Pedreira, João do Rio

  João do Rio: “A profissão de Jacques Pedreira
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A questão do intelectual e o poder em Lima Barreto

Ao refletir sobre o papel do intelectual brasileiro no contexto sociopolítico do país, percebemos que ele pode comodamente compactuar com o      status quo e assumir uma atitude blasé ou, ainda, tornar-se o intelectual inconformado, engajado, em oposição às mazelas que testemunha. Esse é o caso de Lima Barreto que, mediante a crônica, assim como nos romances, contos, artigos etc., põe em questionamento as contradições e as revela para o leitor. Como ele mesmo assevera em correspondência a Almáquio Cirne:“ Não te julgues a nica vítima dos duros tempos que atravessamos. O nosso destino é sofrer nesta ou naquela profissão. O nosso temperamento e o feitio da nossa atividade intelectual estão sempre em conflito com a sociedade [...]” (BARRETO, apud RESENDE, 1993, p. 282). Ao adotar a postura de um observador com elevado senso crítico, o autor não se manifesta apenas por meias palavras ou com a elegância dos salões. Prefere a clareza da linguagem, na qual não falta, porém, a utilização de recursos estilísticos que lhe valorizam o texto, especialmente quando lida com a construção das imagens persuasivas para a orientação do seu ponto de vista.

Na busca pelo poder político que, no contexto da Velha República, é o que cria e assegura meios de subsistência às elites agrárias do país, ocorrem inúmeros problemas que acabam por fraturar o ideário de República sonhado pelos militares. A República acaba, por vezes, refém de antigos ranços políticos e submissa ao modelo europeu, bem como ao ideal positivista, de onde será copiado, pelos militares, o lema: “ordem e progresso”. A busca do nacionalismo comprometida de tal maneira que o Brasil chega a ter o nome mudado para “Estados Unidos do Brasil”. Todos esses acontecimentos são minuciosamente observados e criticados por Lima Barreto.

Lima Barreto colocou-se não apenas como crítico do fazer literário, rejeitando o preciosismo linguístico, mas também como crítico do papel dos intelectuais de jornal e do uso que estes faziam da imprensa, o que explica as contundentes críticas do jornalista, no tocante à não-independência ou não-atitude com relação às denúncias sociais, aos preconceitos, à não-participação do povo, à hipocrisia, à corrupção, às diferenças sociais e econômicas entre ricos e pobres, à não-implantação da reforma agrária. Lima Barreto recusa o papel de intelectual orgânico do Estado, mesmo sendo funcionário da Secretaria da Guerra.

Em diversas de suas crônicas, Lima Barreto questiona as estruturas econômicas, representadas pelas oligarquias rurais, e o poder que junto a elas se consolida em face à negação da importância do negro na formação da nação. Os processos de exclusão, segregação de classe e de cor, além de alienação do negro, aparecem descritos em crônicas como “A volta” e “O convento”.

Outro aspecto importante é a crítica à Grande Imprensa que, segundo Beatriz Resende (1993, p. 24), não é gratuita, mas fundamenta-se no desacordo com o papel político exercido por alguns intelectuais a serviço do Estado, no objetivo de organizar a sociedade pelo alto. Esse papel político, não obstante as críticas contra o Estado, não é compartilhado com tanta veemência por seu contemporâneo, Paulo Barreto, em algumas das crônicas relacionadas por nós.

Lima Barreto procurou não deixar que suas angústias o fizessem calar diante do silêncio de vários intelectuais. É no plano temático e discursivo, que permeiam as relações de poder, que Lima Barreto constrói suas críticas. A loucura e a morte propiciam mostrar essas questões. No estudo sobre Triste fim de Policarpo Quaresma, realizado por Haydée Ribeiro Coelho (1981, p. 34-39), verificou-se como a oposição ao poder levou o protagonista à loucura e à morte. Na crônica “Elogio da morte”, de Lima Barreto, datada de 1918, contrariar uma pessoa poderosa é considerado loucura. Aquele que o faz é chamado de louco. Nesta crônica, o narrador afirma, no entanto, que malucos foram os reformadores do mundo. O herói louco, que desafia a morte ou que nela encontra prêmio maior que a vida permite vislumbrar a face quixotesca do cronista. Nos textos em questão, a morte é enunciada e evocada como prêmio ou mesmo consolo diante dos embates sociais, pois, segundo o autor, a morte tem o mérito de produzir o enaltecimento que o sujeito não teve em vida, conforme o trecho:

Não sei quem foi que disse que a Vida é feita pela Morte. É a destruição contínua e perene que faz a vida. A esse respeito, porém, eu quero crer que a Morte mereça maiores encômios. É ela que faz todas as consolações das nossas desgraças; é dela que nós esperamos a nossa redenção; é a ela a quem todos os infelizes pedem socorro e esquecimento. Gosto da Morte porque ela é o aniquilamento de todos nós; gosto da Morte porque ela nos sagra. Em vida, todos nós só somos conhecidos pela calúnia e maledicência, mas, depois que Ela nos leva, nós somos conhecidos (a repetição é a melhor figura de retórica), pelas nossas boas qualidades. É inútil estar vivendo, para ser dependente dos outros; é inútil estar vivendo para sofrer os vexames que não merecemos.

A vida não pode ser uma dor, uma humilhação de contínuos e burocratas idiotas; a vida deve ser uma vitória. Quando, porém, não se pode conseguir isso, a Morte é que deve vir em nosso socorro. A covardia mental e moral do Brasil não permite movimentos de independência; ela só quer acompanhadores de procissão, que só visam lucros ou salários nos pareceres. Não há, entre nós, campo para as grandes batalhas de espírito e inteligência. Tudo aqui é feito com o dinheiro e os títulos. A agitação de uma ideia não repercute na massa e quando esta sabe que se trata de contrariar uma pessoa poderosa, trata o agitador de louco. Estou cansado de dizer que os malucos foram os reformadores do mundo. Le Bon dizia isto a propósito de Maomé, nas suas Civilisation des arabes, com toda a razão; e não há chanceler falsificado e secretária catita que o possa contestar. São eles os heróis; são eles os reformadores; são eles os iludidos; são eles que trazem as grandes ideias, para melhoria das condições da existência da nossa triste Humanidade. Nunca foram os homens de bom senso, os honestos burgueses ali da esquina ou das secretárias chics que fizeram as grandes reformas no mundo. Todas elas têm sido feitas por homens, e, às vezes mesmo mulheres, tidos por doidos. A divisa deles consiste em não ser panurgianos e seguir a opinião de todos, por isso mesmo podem ver mais longe do que os outros. Se nós tivéssemos sempre a opinião da maioria, estaríamos ainda no Cro-Magnon e não teríamos saído das cavernas. O que é preciso, portanto, é que cada qual respeite a opinião de qualquer, para que desse choque surja o esclarecimento do nosso destino, para própria felicidade da espécie humana. Entretanto, no Brasil, não se quer isto. Procura-se abafar as opiniões, para só deixar em campo os desejos dos poderosos e prepotentes. Os órgãos de publicidade, por onde se podiam elas revelar, são fechados e não aceitam nada que os possa lesar. Dessa forma, quem, como eu nasceu pobre e não quer ceder uma linha da sua independência de espírito e inteligência, só tem que fazer elogios à Morte. Ela é a grande libertadora que não recusa os seus benefícios a quem lhe pede. Ela nos resgata e nos leva à luz de Deus. Sendo assim, eu a sagro, antes que ela me sagre na minha pobreza, na minha infelicidade, na minha desgraça e na minha honestidade. Ao vencedor, as batatas! (BARRETO, apud RESENDE, 2004, p. 391-392).

Para o cronista, o reconhecimento de uma pessoa, geralmente, torna-se maior com a morte do que em vida. Se a vida reduz-se apenas a infortúnios, então, ela não tem valor. De acordo com o narrador, as grandes mudanças só são realizadas por aqueles que não temem a morte. É por isso que, no Brasil, não se seguiram grandes movimentos de “independência”, conforme o narrador. Os grandes movimentos carecem de heróis que não temam a morte, carecem de loucos. Para o Homem racional, os grandes embates se dão pelos títulos e pelo dinheiro, uma vez que a vida se rege pelos valores materiais, mas a morte se orienta pelas coisas espirituais. A loucura é uma fuga da vida, onde a razão impera. O narrador esclarece que a divergência de opiniões é saudável e importante para a felicidade do homem.

A crônica se encerra com a ratificação da oposição do cronista à ingerência dos poderes constituídos sobre a Imprensa. Sobretudo, o cronista se opõe, novamente, aos fechamentos de jornais e ao cerceamento da liberdade de imprensa. Sua crítica acaba por produzir um sério questionamento da própria República, que tantos obstáculos impõe à vida.

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Fonte:
Aciomar Fernandes de Oliveira: “Etnicidade, memória e poder nas crônicas de Lima Barreto e João do Rio: entre o dilema e o silenciamento”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras - Estudos Literários - da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de mestre em Letras: Estudos Literários. Área de concentração: Teoria da Literatura Linha de Pesquisa: LEA – Literatura e Expressão da Alteridade Orientadora: Prof. Drª. Haydée Ribeiro Coelho). Belo Horizonte, 2010.

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