02/03/2014

A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida

 A Intrusa, de Júlia Lopes de Almeida
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A composição estética de A intrusa

A intrusa, assim como boa parte dos romances do século XIX e início do século XX, apresenta um narrador onisciente de terceira pessoa, apesar de no primeiro capítulo da obra termos a impressão de que ela inicia-se sem a presença de um narrador a conduzir as ações e os personagens, como se a história narrasse a si própria, visto que somos postos, de imediato, diante da fala dos personagens:

– Que temporal!
– E um friozinho! Conhecem vocês nada mais gostoso do que ouvir- se o barulho da chuva quando se está agasalhado? Eu estou me regalando...
– Sempre o mesmo egoísta! Como estás em tua casa... mas... desalmado, lembra-te de nós! São quase horas de me ir recolhendo aos meus penates. E ali o padre Assunção, caso não fique pelo caminho, terá também que marchar um bom pedaço a pé. Ao Teles, esse o bonde leva-o até o quarto de dormir! Nasceu empelicado (ALMEIDA, 1994, p.03).

Com essa abertura em forma de diálogo, tem-se a impressão de que a trama romanesca irá se desenvolver à revelia de um narrador, permitindo-se, assim, que o leitor tenha acesso apenas ao que as personagens falam ou fazem. Todavia, embora, conforme Kayser (1976), no século XVIII, tenham sido compostos romances completamente dialogados, essa técnica, fenômeno típico de apresentação dramática, é dificilmente sustentável em textos longos. Em virtude disso, talvez, em lugar desse narrador em modo dramático, segue- se um narrador onisciente que, ainda no primeiro capítulo, emerge logo após o diálogo transcrito anteriormente:

Por essa feia noite de chuva, conversam em casa do advogado Argemiro Cláudio, no Cosme Velho, o seu grande amigo padre Assunção, o deputado Armindo Teles e o Adolfo Caldas, homem de quarenta anos, sem profissão determinada, mas muito bem aceito nas rodas políticas e literárias, que frequentava assiduamente. Tinham jantado tarde, fumavam agora na biblioteca de Argemiro, sentados à mesa do pôquer.

Menos por virtude que por começo, padre Assunção não quisera tomar parte no jogo e andava pela sala sacudindo o pano da batina a cada impulso das suas largas passadas. Era alto, magro anguloso, de uma cor pálida; e nas suas feições acentuadas, em que melhor condiria o sarcasmo, havia uma tal expressão de candura (…) (ALMEIDA, 1994, p.03).

Se o início do romance em análise é marcado pelo contato direto entre o leitor e o universo ficcional, o narrador, como mostra o excerto acima, assume a posição de intermediário entre o narratário e o que acontece na narrativa e com os personagens. Sob esse aspecto, A intrusa é um romance construído a partir da presença/ausência do narrador e a partir da acentuada recorrência de diálogos, momento em que o narrador se ausenta da história por algum tempo. Apesar da existência de momentos em que o narrador desaparece para nos colocar diante do que os personagens falam ou pensam e em virtude de ser quase impossível manter a ação romanesca sustentada apenas pela força de diálogos, o que vai predominar na condução da ação no romance em análise é a presença de um narrador demiurgo que dispõe de liberdade para narrar à vontade, para colocar-se acima dos fatos narrados, adotando, portanto, um ponto de vista divino, já que ele não só “tudo conhece da história (...) mas também tudo pode esquadrinhar, inclusive a vida mental das personagens”. (MOISÉS, 2004, p. 411).

Aliás, a relevância da existência da focalização ou do ponto de vista como componente estrutural está no fato de que, mediante o foco narrativo, é possível perceber “as relações que o narrador mantém com o universo diegético e também com o narratário, o que equivale a dizer que representa um fator de primordial relevância na constituição do discurso narrativo” (AGUIAR e SILVA, 1979, p. 319). Em A intrusa, é pelas palavras do narrador, pelos seus pensamentos e sensações que somos guiados e levados à descrição dos personagens, dos ambientes e dos espaços ficcionais. Assim, tomando, como exemplo, o mesmo trecho que consta na página anterior, o uso de adjetivos (feia, grande, largas, pálida, acentuadas), de sintagmas nominais ou preposicionados (homem de quarenta anos, sem profissão determinada), além da utilização da descrição de personagens (Era alto, magro anguloso, de uma cor pálida; e nas suas feições acentuadas, em que melhor condiria o sarcasmo, havia uma tal expressão de candura) ou ambientes, nos revela a existência de um narrador que se interpõe entre o narratário e a ação romanesca com mais liberdade, mais independência e mais autonomia, embora o faça de maneira neutra, abstendo-se de intervir na história, procurando exilar-se em absoluto da narrativa. Em outras palavras, em A intrusa, o narrador é marcado por uma presença discreta e, por meio do contar e do mostrar equilibrados, ele dá-nos a impressão de que a narrativa desenvolve-se por si própria.


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Fonte:
Marcelo Medeiros da Silva: “Júlia Lopes de Almeida e Carolina Nabuco: uma escrita bem-comportada?”. (Tese de Doutorado apresentada ao Programa  de Pós-Graduação em Letras da Universidade  Federal  da  Paraíba,  como requisito para a  obtenção do grau de Doutor em Letras.  Área de Concentração: Literatura e Cultura.  Linha de  Pesquisa: Memória e Produção  Cultural.  Orientadora:  Profa.  Dra.  Nadilza Martins de Barros Moreira).  João Pessoa, 2011.

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