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Entre
os escritos e as construções
Para este
trabalho, interessa-me a narrativa expressa por meio do romance. Isso se deve,
principalmente, por ser o romance a consolidação e uma maneira de expansão da
modernidade. Celebra-se o início do romance moderno com a publicação de Dom
Quixote, de Miguel de Cervantes. A partir desse marco, o gênero se consagra
e ganha asas pelo mundo. A expansão, porém, se dá de forma mais efetiva durante
e posteriormente à revolução industrial, com a expansão da escrita e da imprensa;
com a formação de romances-folhetins e a publicação literária em jornais.
Ao
prevalecer a cultura da escrita, as leituras tornam-se individuais, perdendo um
pouco da tradição oral existente. Importante lembrar que esse fenômeno decorre
em paralelo com a expansão do capitalismo e a formação de uma nova classe: a
burguesia. O romance, portanto, é estreitamente ligado ao universo burguês e
moderno, consolidados na cidade.
Não por
acaso, Walter Benjamin, defensor da narratividade oral e tradicional, ancorado
na perspectiva de Lukács, tornou-se um crítico ferrenho da (in)experiência da
narração com a expansão e dominação do romance na vida burguesa. Em seu curto
ensaio “A crise do romance”, de 1930, ele apresenta críticas principalmente aos
plenos domínios do autor diante do texto. O escritor conduz as personagens e a
técnica da narração, além de desconhecer a dimensão externa da narração e
constitui, nesse sentido, a antítese mais completa da atitude épica pura,
representada pela narrativa (Benjamin, 1994).
Benjamin
critica o contexto em que a narração se torna externa ao autor sem que este
tenha mínimo diálogo com a público que a consume. Sabe-se que a literatura só
se completa quando há o contato externo com o leitor, no momento em que ele
frui da leitura. Antes desse momento, seria como se não existisse literatura.
Mesmo sabendo que esse momento continua a existir, Benjamin critica essa
postura por ela se dar de forma individual.
O romance,
segundo Benjamin, é responsável pela extinção de experiências narrativas
coletivas, pois “a matriz do romance é o indivíduo em sua solidão, o homem que
não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações, a quem ninguém pode
dar conselhos, e que não sabe dar conselhos a ninguém” (ibid., 1994:
54). Desta forma, o romance se distingue de outras prosas ficcionais como
contos de fadas, sagas, provérbios e farsas. O romance, ao contrário desses
gêneros citados, não provém da tradição oral, nem a alimenta.
Benjamin
ocupou boa parte de suas reflexões sobre a experiência narrativa, suas
dimensões da oralidade e, ao mesmo tempo, sua extinção. Na década de 30, o
filosofo alemão produziu textos, tentando entender a gênese da narrativa e suas
problemáticas com avanço da modernidade. Dono de uma obra eminentemente composta
por ensaios, o esforço de Benjamin está em “romper e fugir da prisão do
conformismo cultural obedecida a constelações do histórico que não podem ser
simples e fugidios exemplos de idéias, mesmo que na sua unicidade constituam as
próprias idéias como históricas” (Adorno, 1992: 13).
O avanço
das cidades modernas acontece em paralelo à expansão do romance, juntamente com
o advento tecnológico e racional. É na primeira metade do século XIX, que na
cidade de Paris, se consolida o projeto de urbanização proposto do Haussmann em
que há uma racionalidade-vida dos espaços urbanos. Percebe-se a expansão das cidades que não parecem mais
findar-se em suas fronteiras e viverem um constante desejo de crescimento e expansão. De acordo com Antoine
Picon,
a cidade fechada, cercada de fortificações
ou de bulevares difíceis de deslocar, era substituída por uma cidade com limites
sempre provisórios, a serem tratados de forma dinâmica. Paralelamente, começava
a nascer a idéia de uma solidariedade econômica entre as cidades dispersas no território.
A noção de malha urbana iria emergir progressivamente de um conjunto de reflexões
sobre essa solidariedade (Picon,
2001: 69).
Dessa
forma, Benjamin percebe existir um desequilíbrio entre os impulsos de
produtividade dos homens e sua força de constantes resistências de oposição à
modernidade. Diante do advento do capitalismo e dessa desproporção, Benjamin
compreende que o homem moderno “vá enfraquecendo e busque refúgio na morte. A modernidade
deve manter-se sob o signo do suicídio, selo de uma vontade heróica, que nada
concede a um modo de pensar hostil” (Benjamin, 1989: 74).
Ao mesmo
tempo em que apresenta a crítica, o filósofo acredita que a modernidade é uma
matéria-prima riquíssima para a experiência das representações. Ela está a
espera de um mestre que perceba este material e contribua para a consolidação
da fundação da arte moderna. Esse mestre, aparentemente, pelo menos nos
escritos de Benjamin, não existe. Há, no entanto, a prosa de Baudelaire que
mais se aproxima desses elementos. Benjamin saúda o poeta pela capacidade de
descontruir a idéia de herói
instalada pela modernidade. Ao invés de buscar figuras medalhões e oficiais
para seu texto, ele vai
buscar heroísmo na vida comum, nas ruas e nos ambientes privados.
A vida
comum e ordinária é, por excelência, a matéria prima para os romances, mas mesmo assim, muitos ainda
tomam a questão do heroísmo e da dualidade como um elemento significativo para
a condução do enredo. Seconsiderarmos a história de A Afilhada como
exemplo, percebemos que se constitui de uma narração construída a partir de
personagens secundárias dentro da lógica administrativa da cidade. São cidadãos
comuns, negros, escravos, mendigo, mulheres, cientistas e comerciantes. As
únicas personagens que revelam poderes econômicos e políticos, respectivamente,
são o visconde Afrodísio e o desembargador Osório. Este chegou a administrar a
província, mas, no momento em que a trama acontece, está em fase de decadência,
ao ponto de desistir da vida política e não ter coragem de enfrentar uma
candidatura ao Senado.
Já
Afrodísio é português, um bon vivant, dado às mulheres, com muitos
escravos e um empregado leal, João Batista. Bom partido, Fabiana, esposa do
desembargador, tenta casar a filha com ele, mas não consegue. O visconde cai
mesmo nas graças de Antônia, a afilhada de Fabiana, mas com ela, ele não tem a
intenção de estabelecer nenhum relacionamento. Chega até a oferecer-lhe uma
casa, para poderem ficar juntos, mas nunca casar-se. As intenções do visconde
deixam Antônia confusa em aceitar ou não a sua proposta:
Era
possível que um visconde a desposasse? Ele tinha dado a entender que não. E
depois, contavam que ele e os outros, a gente endinheirada, costumava proceder
assim. É verdade que lhe ofereceu uma boa casa no Beco do Rosário, alta e
espaçosa, reformada pela marca da Câmara, com mobília, prontinha de tudo. Mas
diz que é assim que eles fazem mesmo.
Aboletam
uma rapariga inocente, freqüentam-na por uns tempos, e vão negaceando, com esse
desamor, a gente, que não é de pedra vai gostando de outro, e de mais outro.
Cai no vício. E vai se queixar ao sem jeito (Paiva, 1993: 253 – grifo meu).
Há,
portanto, na Fortaleza de Oliveira Paiva, uma mistura constituída entre as
classes de uma forma não romântica, mas perversa. Não é um mocinho que se
apaixona por uma rapariga pobre, mas sim um homem rico e mulherengo que tem
desejos por uma jovem mulher suburbana e pretende aproveitar-se de sua condição
da melhor forma possível. Por outro lado, Oliveira Paiva é um misto de
referências literárias, ora apresentando elementos do romantismo, embora sejam
minoria, ora transitando pelo
experimento do naturalismo. O núcleo narrativo constituído por Das Dores representa muito bem a mistura de
gêneros.
Diante
disso, ele ainda concebe, mesmo trabalhando com cidadãos ordinários, a lógica
do heroísmo. Esse sentimento não aparece na narração do escritor, mas no
pensamento de sua personagem Vicente, também denominado, de Centu – nome
popular, como é chamado por amigos e parentes. No romance, logo no começo,
quando Centu chega a Fortaleza doente, ele fica pensando sobre sua contribuição
para aquela cidade e devaneia: “Deveria ser um herói para a humanidade, ou uma vítima, assim pensava ele na sua ingenuidade acadêmica”.
As
personagens Vicente, Osório e Boticário Fernandes são as únicas preocupadas com
o futuro da cidade. Havia um movimento comum entre os cidadãos modernos e, em
especial, no romance, para a superestimação das reformas como sinônimo de
progresso e avanço. Esse movimento, aqui no Brasil, aflorava em conjunto com o
sentimento de nação. Pois embora a independência tenha sido estabelecida na
primeira metade do século XIX, apenas no final, com a Abolição dos escravos e a
Proclamação da República, as idéias de nação brasileira e caráter nacional
puderam ser melhores visualizadas e expostas. Havia nos moradores,
principalmente no Rio de Janeiro, a sensação de viver em uma metrópole,
inspirada, principalmente no modelo arquitetônico parisiense, a partir da
reforma de Barão de Haussmann. A reurbanização parisiense20 consistia, grosso modo, na abertura de
grandes avenidas, acabando com o perfil medieval de ruas estreitas. Assim,
permitia o controle e a repressão policiais para as inquietações e sublevações
populares do período. Este processo de urbanização serviu de modelo de
exportação, como símbolo do capitalismo, da modernidade e da ilustração.
A
historiadora Sandra Pesavento (2003) argumenta que toda a elite brasileira
almejava ser Paris. No Brasil, exemplos próximos desse modelo foram fortemente
estabelecidos nas cidades do Rio de Janeiro, Belém e Fortaleza. O historiador
argentino José Luís Romero adverte que esse fenômeno de importação de um modelo
arquitetônico europeu não se deu apenas nas capitais brasileiras, mas em quase
toda a América Latina.
O exemplo do barão de Haussmann e de seu impulso
demolidor alimentou a decisão das novas burguesias que queriam apagar o passado,
e algumas cidades começaram a transformar a sua fisionomia: uma suntuosa avenida,
um parque, um passeio de coches, um luxuoso teatro, uma arquitetura moderna, revelaram
essa resolução mesmo quando não conseguiram com freqüência extinguir o fantasma
da velha cidade (Romero,
2004: 285).
Durante o
período da segunda metade do século XIX, Romero afirma que quase todas as
cidades latino-americanas com anseios de modernidade duplicaram ou triplicaram
a população e multiplicaram suas atividades em uma determinada proporção.
Fortaleza não será diferente nesse aspecto. Como vimos rapidamente no primeiro
capítulo, a cidade se expande, principalmente com a influência de do mercado
externo com a Inglaterra, com a venda de algodão. O crescimento se deu em
proporções tão rápidas que, algumas vezes, dá a sensação de ela ter se tornado
um ser autônomo, com vontade própria, capaz de caminhar individualmente e
crescer sozinha, sem ações coletivas.
Fortaleza cresceu muito com a experiência do algodão, mas logo decaiu também, deixando por aqui personagens
gringos e ingleses, que durante muito tempo controlaram os comércios das
grandes empresas e, ao mesmo tempo, deram um tom caricatural e cômico à cidade.
Sobre
Fortaleza após a experiência da exportação de algodão, o romance Mississipi,
de Gustavo Barroso, traça um belo retrato da cidade e do vazio deixado com o
fim do prolífero comércio. Nesse romance, há um destaque especial para o Mister
Heid que, segundo o narrador,
“não parecia um simples gerente de companhia de iluminação, mas o símbolo humano da própria Grã-Bretanha
que passava vitoriosa, evocando Nelson em Trafalgar, Wellington em Waterloo,
Roberts em Candaar, Kitchner em Cartum” (Barroso, 1996: 32).
Fortaleza,
mesmo com essa dominação estrangeira a exemplo da Companhia de Iluminação,
citado por Gustavo Barroso, buscava o status de cidade grande, de
metrópole. Essa condição não vinha apenas por meio de mudanças arquitetônicas.
Sandra Pesavento apresenta o conceito de cidade grande como aquela “que irradia
a cultura, a civilização, a novidade e a informação, onde se cruzam e
entrecruzam toda sorte de gente e atividades e onde seu povo se caracteriza
pelo que se chamaria a 'urbanidade' das atitudes” (Pesavento, 2002: 59). É o
local onde o sentimento de anonimato vem, portanto, acompanhado da expansão
urbana, com o aumento populacional e a formação de multidões amorfas nos
grandes centros urbanos. “A experiência da multidão traz consigo o sentimento
da solidão. Os opostos parecem confluir ou conviver numa só personagem: o ator
urbano. É no meio da multidão, da massa de indivíduos, que o indivíduo se
refugia, mas, por outro lado, não há lugar onde possa se sentir tão só”
(Pesavento, 2002: 100).
Como
contraponto ao sentimento de modernização e metrópole, havia o estigma de
provincianismo, justamente para os locais que não conseguiram introduzir a
modernização em seu cotidiano. José Luís Romero acredita que as cidades
provincianas eram aquelas que não almejavam suas modificações imediatas.
Não
mudaram enquanto outras se transformavam e essa circunstância emprestou-lhes um
ar de cidades estagnadas. Várias delas conseguiram, no momento, manter o ritmo
de sua atividade mercantil pelo menos dentro de sua área de influência, mas
mantiveram também o seu estilo de vida tradicional sem que se acelerasse o seu
ritmo. As ruas e as praças conservaram a sua paz, a arquitetura, a sua modalidade
tradicional, a convivência, as suas normas e as suas regras de costume (Romero,
2002: 293).
Vale, no
entanto, apresentar uma ressalva diante desse fenômeno de transformações
urbanas. Da forma como venho apresentando até então, expondo mudanças que se
estabeleceram e, por ora, generalizadas a todo o ocidente capitalista, pode
haver uma interpretação errônea, de que entendo esses fenômenos e essas ações
de expansão urbanas como naturais e não históricas. Uma questão relevante é
tentar entender por que esse fenômeno se deu em todo ocidente. Minha hipótese é
de que isso só foi possível por causa da expansão das relações mercantis
européias. A exportação e a dominação tiveram a cultura como elemento chave nas
suas efetivações. Havia uma necessidade de consumo cultural, para tornar-se
ilustrado e moderno. Resumindo, importaram-se pensamento e bens simbólicos que
contribuíram para a dominação econômica.
Mais uma
vez lembro as idéias do argentino Luís Romero. As cidades latino-americanas,
embora dêem a sensação de esplendor do progresso, na verdade, são provincianas
e evocam o brilho, as luzes e o luxo ostensivo, todas cópias de Paris. E essa
aproximação com a realidade francesa, deu-se muito pelas leituras dos romances
desta nação difundidos em toda a América Latina. “Almejava-se também o gênero
de vida mundano que os romances e os jornais difundiam, e um certo tipo de
anonimato que caracterizava a existência da grande cidade, graças ao qual a
vida parecia mais livre e a possibilidade da aventura mais fácil” (Romero,
2002: 294).
Com a
diminuição da fronteira entre Europa e América Latina prevalece a dominação
cultural e econômica do mundo velho sobre o novo. A Europa dita os costumes que
deveriam ser estabelecidos pelo mundo. Nas províncias do lado de cá, vive-se um
dilema extremo. Por um lado, tenta-se livrar da sensação de provincianismo, no
entanto, o único mecanismo para tentar se livrar disso é por meio de cópia dos
costumes europeus. Paradoxalmente, na busca pela libertação, ratifica-se o
provincianismo. Havia o sentimento de renovação a partir da adoção de novos
costumes estabelecidos pelo velho mundo, exigindo uma transformação de seu habitat.
Inúmeras cidades latino-americanas tentaram renovar a sua aparência a partir
das últimas décadas do século XIX. Essas reformas se davam a partir da
destruição de qualquer elemento que lembrasse aspectos de colonização. Houve,
portanto,
demolição do velho para dar lugar a um novo
traçado urbano e a uma nova arquitetura foi um extremo ao qual não se recorreu naquela época a não ser em poucas cidades, porém transformou-se
em uma aspiração que parecia resumir o supremo triunfo do progresso (Romero, 2004: 310).
Quando se
pensa na cidade de Fortaleza, sob a ótica da modernidade e da expansão urbana,
a questão aparece ainda de forma mais complexa, pois ela não havia ainda
passado por nenhuma experiência arquitetônica significativa. Pouco havia de
novo ou de velho na cidade. Ela foi se construindo a partir dessa nova óptica
arquitetônica e abraça com todas as forças, com a pretensão de já nascer
moderna e civilizada. Fortaleza também, no fim do século XIX, por se localizar
fora do eixo comercial brasileiro, sofre ainda a represália de ser “menor” do
que o símbolo-mor da civilização brasileira: o Rio de Janeiro, capital do
Império, e posteriormente da República, onde se concentram os maiores
intelectuais da nação, as maiores riquezas, o maior glamour. Boa parte de nossa
prosa romântica e naturalista tem como cenário, principalmente, a Corte, basta
folhear os romances de José de Alencar, Machado de Assis, Aluísio Azevedo.
Essa
relação entre Norte e Sul será um tanto quanto tensa. Tanto por trazer
referências nos romances, como também demonstrar um acirramento entre os
escritores ao defenderem suas terras. Há um episódio curioso sobre o assunto,
envolvendo Adolfo Caminha.
Quando o escritor Cruz e Souza lançou o seu livro Missal, de 1893, o
poeta catarinense propunha a divisão em dois brasis: entre o Norte e o Sul,
para melhor demarcar as literaturas de cada região. Adolfo Caminha não gostou
nada da idéia e escreveu um
artigo, na Gazeta de Notícias, com manifestação contrária. Ele chega a
afirmar que se fosse feito um estudo científico, provar-se-ia que os melhores
escritores brasileiros estão no Norte, “de lá é que vem toda a força, todo o
prestígio literário, toda a originalidade” (Caminha, 1999: 109). E cita como
exemplo Aluísio Azevedo, José de Alencar e Gonçalves Dias, como uma pequena
lista significativa das letras nacionais. Ele reconhece, no entanto, que o Rio
de Janeiro, é o local onde se lapida o talento bruto desses grandes nomes e,
mesmo sendo a cidade desprovida de nomes brilhantes, ela exerce função
importante na nação, pois
os filhos do Rio de Janeiro têm uma vantagem
sobre o provinciano: é que nascem no meio da civilização e logo, em idade precoce,
vão adquirindo conhecimentos e maneiras próprias das grandes capitais e vão se familiarizando,
portanto, mais depressa que aqueles, com os processos artísticos dominantes e com
as idéias gerais da época. (...) O filho da província, por mais talentoso que seja,
há de forçosamente completar a sua educação artística num círculo maior, onde as
suas faculdades possam triunfar em comunicação com as boas obras estrangeiras; o
talento, porém, esse conserva-se original e vigoroso, sem perder nenhum dos caracteres
que o distinguem da inteligência meridional. (...) O Rio de Janeiro é o nosso petit Paris, o centro da vida nacional,
por assim dizer a retorta em que se operam as dinamizações comuns em que se estabelece
a verdadeira luta pela existência e pela glória (ibid., 112).
A noção da superioridade carioca está presente
também no romance A Afilhada. O dilema se concentra na personagem
Vicente que, após longa estada no Rio de Janeiro, regressa à Fortaleza. A
personagem traz em si a representação da modernidade: é cientista e letrado.
Seria possível aqui, tentarmos estabelecer algumas conexões entre a vida de
Oliveira Paiva e de sua personagem Vicente. Nascidos em Fortaleza, ambos
tiveram uma longa vivência no Rio de Janeiro. Oliveira Paiva partiu para o Rio
de Janeiro, aos 16 anos, “onde passa a estudar na Escola Militar da Corte.
Seria apenas mais um jovem de uma mesma família a engrossar as fileiras de
filhos da classe média provinciana nos quadros do novo Exército Nacional” (Tinhorão,
1986: 10).
O retorno
à cidade, tanto de Oliveira Paiva quanto de Vicente, se deu por motivo de
saúde. “O Centu, porém, não era um rapaz influído para certas coisas. Chegado
de pouco à sua província, para convalescer de uma pneumonia, de volta da
conclusão de estudos” (Paiva, 1993: 187). As doenças são diferentes. Enquanto
Vicente vem tratar uma pneumonia, Oliveira Paiva tem tuberculose, que com o
agravamento provoca “seu regresso de Fortaleza, em inícios de 1882, até seu
desligamento definitivo da Escola em fevereiro de 1883, que se dá a iniciação
literária” (Tinhorão, 1986: 24). Em Fortaleza, Paiva se envolve com movimentos
políticos e literários, como discutirei com maior detalhe no próximo capítulo.
Mas talvez
o elo mais forte entre autor e personagem esteja em crer na possibilidade de
transformações sociais por meio da ciência. Vicente, sendo engenheiro, dedica
boa parte de seu tempo à ciência, até ter seus sentimentos se alteram por causa
do amor de Mariinha. Sobre a vida amorosa de Oliveira Paiva, tem-se pouca
informação. Sabe-se apenas que ele foi casado e não deixou nenhum filho.
Vicente, no entanto, vive o conflito frequente entre amor e ciência. Chega a
escrever uma carta para a Mariinha, falando que a sensação do amor teria lhe
transformado profundamente e modificado sua relação com a ciência.
Desde que
resolvi-me entregar-me simplesmente às forças naturais, tirar à minha vontade o
direito de imiscuir-se em tudo que não seja o estudo e o trabalho, passo
melhor, leio, rio, faço caminhadas de recreio. É verdade que me dizem
melancólico, e me chamam filósofo; e eu me sinto muito sensível. Isto,
porém, é o amor que me gravaste, que me aguçou a percepção externa, me afinou
os nervos e os sentidos (Paiva, 1993: 208 – grifo meu).
Embora
seja um homem letrado, Vicente possui pouco conhecimento sobre arte, diferente
de Oliveira Paiva. A personagem sente, por exemplo, uma imensa vergonha de
nunca ter lido José de Alencar, o maior escritor das terras cearenses. Vicente,
não querendo passar vergonha diante da prima, mostra-se erudito e pede
emprestado a moça o livro de José de Alencar, considerado pela personagem como
“eminente escritor em conta de cavilosidades dos brasileiros”. Enquanto
conversava com a prima, o amigo Lucas solta a Vicente a seguinte frase e
ironiza com o “progresso” de Fortaleza:
- Ah, meu
caro amigo, você cuidava que isto aqui era o Rio de Janeiro? Há de topar
serviço! Isto está um país adiantadíssimo!... Além do calçamento, do
encanamento de água, da iluminação a gás, – contava nos dedos – do Palácio da
Assembléia, do novo sistema de carroças, das casas pela marca da Câmara, temos
pianos em todas as salas, e a instrução do belo sexo! Você pega uma dessas
flores do paraíso terrestre,
principalmente se tiver sido educado pelas irmãs de caridade, corta a língua que nem maracanã,
canta que nem sabiá, lê como doutor, e sabe que nem vigário! (ibid., 187).
Lucas
apresenta para Vicente uma cidade que vive seu momento de civilidade e exalta
os pianos, a instrução das mulheres, a presença do calçamento, chega até a
brincar dizendo que a cidade já se assemelha ao Rio de Janeiro, onde se vive a
glória de ser a melhor capital brasileira, mas ainda está longe de chegar
próximo de uma Paris, como denominou Adolfo Caminha. A partir do raciocínio,
tanto de Lucas, quanto de
Caminha, costumo brincar que há uma equação hierárquica entre essa três
cidades: Fortaleza quer ser o Rio de Janeiro e Paris ao mesmo tempo. Rio de
Janeiro quer ser Paris. Esta
última vive até hoje com o status de cidade da luz, berço da cultura.
A
historiadora Sandra Pesavento (2002) desenvolveu uma pesquisa interessantíssima na qual descortina os
textos literários produzidos no período entre os séculos XIX e XX sobre as cidades de Paris, Rio de Janeiro
e Porto Alegre, respectivamente. Entre as várias questões curiosas apresentadas
pela pesquisadora, ela destaca ser por meio da literatura que as cidades se
apresentam ao mundo. Acredita, por exemplo, que Paris se constituiu como o
paradigma de cidade moderna e metonímia da modernidade urbana muito mais pela
força das representações construídas sobre ela, feitas por meio de uma extensa produção literária e de
projeções urbanísticas, personificadas
no já comentado 'haussmannismo'.
Ora, ao
penetrar nos romances, tanto de Oliveira Paiva, quanto de Adolfo Caminha,
percebemos um excesso de sentimento provinciano, de dependência e culto a uma
cultura e aos costumes estrangeiros. A cidade construída por ambos, mesmo que
por motivos diferentes, está fadada a não dar certo. Em Adolfo Caminha, a culpa
é principalmente de sua população mesquinha e incivilizada. Em Oliveira Paiva,
as intempéries naturais, a
mácula da escravidão e a influência forte do sertão são características incompatíveis com os
anseios de progresso e civilidade, alcançados apenas por alguns escritores,
intelectuais, raros nomes nobres daquela terra. A relação existente entre
cidade e seus signos representativos propicia uma longa reflexão. Até que ponto
um texto se apresenta como importante na construção de um tecido urbano? O
uruguaio Angel Rama esmiuçou essa questão em seu livro A Cidade das Letras (1986), no qual estabelece a
importância do universo letrado para a constituição de uma cidade. Para ele, os
textos mediam, muitas vezes, os sonhos e utopias de um povo sobre determinada região. Quem sabe também os
pesadelos? Esses sonhos – ou pesadelos – podem se materializar ou não. Ou seja,
não é só a cidade que é representada
literariamente, mas os anseios são apresentados em forma de literatura como
projeto para aquela cidade.
O sonho
de uma ordem servia para
perpetuar o poder garantido. E, além
disso, se impunha a qualquer discurso opositor desse poder obrigando-a a transitar, previamente, pelo
sonho de outra ordem (...) Antes de ser uma realidade de ruas, casa, e
praças, que só podem existir e ainda assim gradualmente, no transcurso do tempo
histórico, as cidades emergiam já completas por um parto da inteligência nas
normas que as teorizavam, nos atos fundacionais que as estatuíam, nos planos
que as desenhavam idealmente, com essa regularidade fatal que espreita aos
sonhos da razão (Rama, 1986: 32 – grifos do autor).
Sob este
aspecto, Paris é, para Pesavento, uma cidade em prosa por excelência. Vários
dos grandes cânones da literatura universal são de origem francesa: Victor
Hugo, Emílio Zola, Alexandre Dumas, Balzac. Esses escritores, mesmo
apresentando uma postura crítica diante da cidade onde habitaram, descreveram
as ruas, os monumentos, os prédios. Construíram, como reforça a historiadora,
“verdadeiros poemas arquiteturais”. A ilustração tornou-se responsável pela
visualização de uma cidade virtuosa, “centro da alta cultura, núcleo produtivo
por excelência, germe do progresso econômico e social, símbolo da civilização e
locus privilegiado de realização do pensamento racional em todas as suas
manifestações” (2002: 38). Paris, mais do que uma grande metrópole, passa a ser
um conceito que ganhou o mundo. É um imenso sistema onde se pode averiguar
ideias e imagens de representações que aos poucos se tornaram coletivas e
universais. “Paris é o centro de um imaginário social construído pela
modernidade. É a cidade cujo nome evoca paisagens, maneiras, hábitos, desejos e
personagens” (2002: 68).
Em paralelo
a toda essas atribuições literárias para Paris, houve o grande empreendimento urbanístico
proposto por Haussmann que fixou sonhos já existentes. O projeto, dada certa liberdade,
vem para consolidar essa cidade-poesia. A arquitetura materializa os estilos e modos
de vidas almejados. Mas ela não seria suficiente se não fizesse parte de um longo
processo. A prática de intervenção urbana de Haussmann teve a preocupação de conciliar
sensação de continuidade e renovação. Deixou marcas visíveis no traçado urbano,
cristalizando uma imagem visual de metrópole.
Essas mesmas
idéias foram exportadas para o mundo. No Brasil, como veremos a seguir, tanto houve
a importação do estilo de escrita por meio do romance, como os projetos arquitetônicos
foram fundamentais para a construção das cidades. Por diferentes justificativas,
as cidades, aos poucos, foram aderindo ao projeto europeu.
---
Fonte:
Tiago Coutinho Parente: “A Cidade em Letras: Uma análise da construção de Fortaleza no final do século XIX, no romance A Afilhada, de Oliveira Paiva”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes), Fortaleza, 2009.
Fonte:
Tiago Coutinho Parente: “A Cidade em Letras: Uma análise da construção de Fortaleza no final do século XIX, no romance A Afilhada, de Oliveira Paiva”. (Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre, pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Orientador: Prof. Dr. Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes), Fortaleza, 2009.
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