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Erotismo: sensualidade
narrativa
O erotismo sempre esteve presente na literatura desde a
Antigüidade, transitando no contexto das obras literárias até nossos dias. Sua
manifestação se dá de acordo com determinado meio
social em cada época. Voltado, predominantemente, para sensualidade, o jogo
ficcional se dá obedecendo a fatores extra-textuais que influenciam a arte literária
no cerne da sociedade em que a obra está inserida.
Mesmo na chamada Idade Média Européia, período de grande
repressão da Igreja Católica, a literatura já se utilizava do jogo erótico,
visível, na literatura portuguesa, nas cantigas de escárnio e de maldizer,
usadas como formas de resistência e de transgressão aos valores religiosos e
morais daquela época.
Compreendemos o erotismo como transgressão alicerçada no
desejo de busca da satisfação. Na Literatura Brasileira, o erotismo seguiu os
preceitos literários e morais portugueses e
alicerçou-se na moral e nos costumes da época. O texto erótico transitou no
cenário literário desde a literatura de informação, com a Carta de Achamento do
Brasil, de Pero Vaz de Caminha, até o romantismo, no século XIX, com textos de
raríssimos atrevimentos eróticos, destacando-se, por este caminho, a figura de
Gregório de Matos Guerra, conhecido em nossa literatura como “Boca
do Inferno”.
O sensualismo de nossas obras
românticas, as grandes precursoras do jogo erótico no contexto de nossos
romances, nos enredos adocicados pela formação do triângulo amoroso, é que dá
um quê erótico na narrativa voltada para o amor idealizado, segundo o qual o
carnal fica na esfera do jogo ficcional que envolve o idílio
romanesco entre sensual/erótico até um final feliz.
A narrativa A viúva Simões está impregnada de um erotismo condizente com o realismo burguês,
expressão esta entendida por Lúcia Miguel Pereira (1988) como o estilo que
engloba os diversos movimentos do período realista: o realismo propriamente
dito, o naturalismo e o regionalismo, que têm como unidade a tentativa de “fugir
ao idealismo obedecendo em geral mais as idéias de seu tempo do que do seu
temperamento”. (PEREIRA, 1988, p. 30)
Esse Realismo, para, ser estudado,
implica, nas palavras de Lúcia Castello Branco (1985), a compreensão de que se
deve levar em conta a análise de diferentes discursos eróticos, produtos de uma
época em que imperava uma burguesia cada vez mais poderosa, portadora de uma
ideologia moralizadora, que buscava confiscar a sexualidade
através da família.
A família é o único espaço de sexualidade reconhecido,
utilitário e fecundo na intimidade da alcova. Os espaços fora do contexto
familiar não eram vistos com bons olhos pela sociedade. Logo “o sexo
regulamentado mantinha, no canto escuro do quarto dos pais, equilíbrio e
harmonia de toda uma sociedade” (BRANCO, 1985, p. 19).
Seria de se esperar, nesta época, em que o trabalho e a
mão-de-obra eram cada vez mais exigidos, que a moral burguesa e os mecanismos
de poder tentassem sufocar o erotismo, “regulamentar a sexualidade, varrer da
literatura os corpos nus, vestindo-os com palavras de bom tom e figurinos de
bom gosto” (BRANCO, 1985, p. 19). Uma vez que, segundo Branco, as pesquisas
sobre a sexualidade em uma perspectiva política já demonstraram que trabalho e
erotismo se opõem, que “renúncia e dilatação da satisfação constituem
pré-requisitos do progresso”. (MARCUSE, 1981, p. 27)
Percebe-se, entretanto, que o erotismo, mesmo no
realismo burguês brasileiro, não está ausente. O erotismo, como conjunto de
expressões culturais e artísticas humanas referentes ao sexo, pode aparecer
disfarçado, mascarado, sutilmente velado e está presente nas obras realistas.
Observa-se, nas obras realistas, a instauração do
erotismo, palavra que etimologicamente vem do latim “eroticus” e este, do grego “erotikus”, que se referia ao amor sensual e
à poesia de amor, mesmo nos tempos em que o decoro controlava os discursos, já
que o erotismo “existe na base de qualquer trabalho de arte, como existe na
base da vida”. (BRANCO, 1985, p. 19)
A obra A Viúva
Simões (1897) se situa na perspectiva que engloba o realismo burguês, no
qual a escritora Júlia Lopes de Almeida, com um texto de densidade narrativa
complexa, já que mostra comportamentos e padrões impostos à condição feminina
na época, consegue transpor as amarras do modelo patriarcal estabelecido na
literatura e retratar os valores e as angústias a que as mulheres estavam condicionadas
na sociedade do século XIX.
O jogo erótico que se dá na narrativa em foco é guiado
por um narrador onisciente que pode, a
priori, dominar todo o saber, conhecer, apresentar e opinar, ou seja,
dizer tudo sobre as personagens, “conduzindo a trama narrativa como Deus no
tocante a sua criação”. (REUTER, 2002, p.76)
No texto almeidiano em estudo, o narrador sensualiza a
protagonista através das impressões naturalistas e, sob esta ótica descritiva,
o leitor conhecerá a viúva Simões:
O seu temperamento, aparentemente frio, dava-lhe por vezes, momentaneamente,
um ar de rija autoridade, muito em contradição com seu tipo moreno, de
brasileira. (...)
A viúva já não tinha a frescura da primeira mocidade, mas era
ainda uma mulher bonita. Era alta e esbelta e tinha um par de olhos pretos belíssimos
e uma pele morena delicadamente penujenta e macia.
A sua carne já não tinha a rijeza do pomo verde, que resiste à dentada,
e caía sobre ela toda um ar de moleza, de doce cansaço, que lhe quebrantava a
voz e o gesto. Vinha dela um encanto esquisito e delicado, que ninguém
afirmaria ser da pureza das suas linhas ou da maneira que tinha de andar, de
sorrir ou de dizer as coisas (ALMEIDA,
1999, p. 37).
O narrador trabalha com o elemento que envolve
miscigenação, uma vez que insere na descrição acima a oposição entre autoridade
e cor, caracterizando o meio social da época em que cor morena e o perfil da
mulher brasileira “eram” mais relacionados à sua sensualidade do que à sua classe
social.
Vemos que a descrição da viúva é composta por dualidades
estruturais, um discurso que joga com palavras que caracterizam um texto
sensorial: pele morena, penujenta, macia,
carne, rijeza, dentada. Esse estilo dá à narrativa um quê erótico/sensual
por meio do qual o leitor parece ver e tocar a personagem através do narrador.
A posição do narrador onisciente revela-se também nos
comentários que fez sobre o primeiro encontro de Luciano e a viúva. Suas
impressões em relação a ela são intermediadas pela voz narrativa que assim
procede:
(...) ele [Luciano] analisava a viúva. Achava-a com certeza muito menos fresca, mas talvez
mais encantadora. Agora tinha a graça consciente, um pouco amaneirada, em todo
caso cativante. As faces tinham decaído um pouco, mas o corpo era agora airoso
e ondeante. Se as olheiras se haviam acentuado e os cabelos negros estriado de um
ou outro fio branco, ao menos o sorriso tornara-se mais fino, mais inteligente
e perspicaz, e para ele, homem de sociedade, no saber sorrir estava toda a arte
e ciência da mulher de salão (ALMEIDA,
1999, p. 47).
Nesse fragmento, o narrador fornece informações a
respeito do próprio Luciano, num discurso permeado pela oposição,
caracterizando-se pelo desejo carnal, pelo tom erótico/sensual voltado para o
perfil físico. Cabe lembrar que o texto fornece informações a respeito da
educação da mulher burguesa, voltada para a questão das aparências, reforçada
na referência à mulher de salão.
A mudança de foco do narrador para a personagem Luciano
não tira a função do narrador em terceira pessoa, a de onisciência. Dessa
maneira, o narrador de A Viúva Simões tece
comentários sobre os acontecimentos e as personagens. Ele tem um olhar do
contexto da obra e domínio de todas as personagens, vendo-as por dentro, seus
pensamentos, receios e desejos, e, por fora, vendo-as em seu aspecto físico e
comportamental, apresentando, muitas vezes, um discurso voltado para a sensualidade
da protagonista.
Sozinha naquele quarto, em que sua imagem se duplicava, Ernestina estudava
os seus movimentos, procurando ao mesmo tempo adivinhar qual seria, entre
tantos, o perfume preferido de Luciano. (...) Quem pudesse adivinhar! Ernestina
abria os diversos frascos, consecutivamente, chegava-os bem perto, às narinas
palpitantes; mas no fundo de todos encontrava o mesmo mistério, a mesma
vertigem, a mesma dúvida!
Isso exacerbava a voluptuosidade da moça, irritando-a ao mesmo tempo.
Desmanchava com as mãos nervosas, na água simples, as nuvens opalinas das
essências e quedava-se depois observando os seus ombros delicados e nus, os
seus formosos braços e a maciez do seu colo airoso.
Vestia-se devagar, demoradamente. A lã preta do luto repugnou-lhe;
aquele traje áspero e triste não era o que seu corpo desejava. A pele bem tratada
queria seda, um contacto macio que caísse sobre ela como uma carícia... (ALMEIDA, 1999, p. 81)
Como demonstra o
fragmento acima, no romance A Viúva Simões,
encontram-se aspectos narrativos cuja significação extrapola o texto,
tanto na imagem que se
duplicava, quanto no discurso naturalista no
qual a cena narrada apresenta-se carregada de uma sensualidade aflorada e
materializada em Ernestina.
O espaço doméstico é um dos eixos
desta narrativa, pois há nele uma distinção afetiva em relação ao
espaço público. Ele é o espaço conhecido da mulher, simbolizando o confinamento
do feminino; entretanto, no caso da viúva, é também o ambiente onde ela
materializa seus desejos, seus anseios e seus segredos mais íntimos. É no
ambiente da sala de visitas da casa que os amantes se encontram:
Conservaram-se por algum tempo afastados, mas as mãos uniram-se outra
vez, os olhos procuraram-se e ele beijou-a na fronte, na face, na boca.
Ernestina, meio oculta pela cortina de renda preta, deixava-se abraçar,
amolecida, tonta, sem forças para resistir; o busto vergado para Luciano, os
braços pendentes, o corpo trêmulo.
Nas paredes cinzentas da sala, os arabescos de ouro cintilavam, como
se os milhares de gafanhotos que estampavam no papel as suas asas agudas e suas
pernas finíssimas, se embaralhassem numa dança endiabrada!
O gás a toda força chamejava no cristal do espelho, amornando a atmosfera
e fazendo uma bulha de sopro surdo, como riso abafado! Toda a energia da viúva
tinha fugido. A luz? Que lhe importava a luz?
Ela não via, não pensava, resvalava sem pena nem cuidado,
sentindo-se feliz, mais nada! (ALMEIDA,
1999, p. 102-103)
A cena, repleta de imagens sensuais, descreve um jogo de
espelhos que mimetiza o cenário da sala. A descrição do ambiente vem
acompanhada pelas ações das personagens; os objetos ganham características
significativas que fogem à sua utilidade, servindo para explicitar o que se
passa no interior da protagonista.
Os objetos, como cortina
de renda preta, arabescos de ouro, o gás, funcionam
como elementos de erotização da cena descrita, e deixam de ser apenas objetos inanimados
para ganhar significados que extrapolam o desenvolvimento amoroso da cena. Há
uma sensualidade contida, ocultada nestes objetos que adquirem características
humanas e reforçam o aspecto sensual da viúva, inferindo possibilidades
interpretativas que representam o feminino dentro de um outro paradigma. Podemos dizer que estas alusões são marcas de resistência
na escritura de Júlia Lopes que culminam com a sensação de felicidade da protagonista.
A viúva transgride a dicotomia entre o bem e o mal e se apresenta como uma
mulher inteira, isto é, uma mulher cheia de demandas que rompem com a expectativa
oitocentista do “eterno feminino”.
O espaço do lar é o ambiente em que
se passam as cenas descritas. Elas envolvem sensações de foro íntimo de
Ernestina e de Luciano e recorrem a um discurso dissimulado nem sempre
percebido a leitores desatentos. A linguagem romanesca de A Viúva Simões traz consigo um pudor literário em
que “os preceitos do decoro e do bom tom trabalham a favor da ordem e da
preservação de uma sociedade moralmente digna” (BRANCO, 1985, p. 30),
características marcantes na escrita realista.
A personagem da viúva é apresentada como “tocada pela
afecção nervosa”. Ela é descrita por um temperamento frio em contraposição ao
seu tipo moreno de brasileira (mestiça), valorizando mais o corpo sensual de
mulher erotizada do que a condição de viúva enlutada.
A voz do narrador, de fora do espaço doméstico/familiar
de Ernestina, sofre alterações, principalmente, nas informações que dá ao
leitor acerca das possíveis intenções de Luciano para com a viúva. Entretanto,
fora do espaço privado de Ernestina, assim se coloca:
Como dissera ao Rosas, furtava-se ao casamento, procurando no amor
da viúva uma dessas páginas de paixão, freqüentes na vida dos homens. (...)
Não era positivamente como marido que ele queria beijar a boca pequena
e rubra da viúva Simões! O corpo esbelto e ondeante da moça, o negro azulado do
seu cabelo farto, a doçura dos seus olhos rasgados e úmidos, o moreno quente de
sua pele rosada, acendiam-lhe no coração, não amor puro e casto que o homem
deve dedicar à companheira eterna, mas o fogo sensual de uma paixão violenta e
transitória. (ALMEIDA, 1999, p. 117-118)
A forma como o narrador relata as
impressões de Luciano acerca da viúva é bem diferenciada do posicionamento do
próprio narrador quando descreve a protagonista, conforme fragmento acima. O
discurso narrativo é mais direcionado para a questão sensual, para o desejo
carnal, para a realização dos prazeres do corpo, sem a evocação do amor
romântico. O narrador constrói um discurso voltado para valores masculinizantes
em que a mulher representa o objeto de desejo, de prazer sexual, não levando em
conta outros valores que também eram apreciados, na época, como: o de mulher
honesta, honrada, de postura social ilibada e reconhecida pela
sociedade.
A forma narrativa do parecer de
Luciano em relação às personagens da mãe e filha é notoriamente modificada na
composição discursiva do narrador ao descrever o olhar da personagem masculina,
geradora do conflito que envolve a viúva e sua filha:
Luciano contemplava estático a órfã do seu velho rival. Ela tinha
os braços
nus, brancos e roliços, estendidos para frente, as mãos sobre as pedras esverdeadas do
muro, os olhos entrecerrados acompanhando as ondas, que iam e vinham
brandamente, queixosas.
Luciano contemplava-a assim, achando-a bizarra naquele traje quente
que envolvia, como uma injúria, o seu corpo delicado e virginal, sentindo-a ao
mesmo tempo mais cândida, mais ideal, mais doce do que nunca! Aquela cisma e
súbita melancolia da moça tornavam-na como uma imagem de santa milagrosa, que
ele tivesse visto surgir por encanto daquelas flores ou daquele mar. Ora
desejava vê-la sempre assim, imóvel e serena, ora sentia ímpetos de a beijar,
de a morder, de lhe dizer que a amava! (ALMEIDA,
1999, p148-149)
A cena acima apresenta uma descrição de Sara que prima
pela delicadeza e sutilidade trabalhadas pelo conjunto sensorial, na qual está
inserido na narrativa, numa descrição onde o gesto, o olhar e as palavras estão
empenhados em mostrar os aspectos voltados para os sentidos que envolvem a
personagem descrita na cena. O narrador revela um Luciano com impressões acerca
de Sara bem diferente das que ele tem pela mãe dela: há
um misto de santidade e de desejo reforçado pelos elementos característicos
da narrativa naturalista.
A narrativa sofre uma alteração na qual a sensualidade
vem suavizada pelas comparações de cunho religioso que não só modificam a
postura de Luciano como também o conduz por outras veredas do espírito, de
certa forma por ele desconhecidas, um amor angelical e inesperado: “o coração
abria-se lhe a um sentimento novo de simpatia e de piedade”. (ALMEIDA, 1999, p.
150)
A partir do capítulo XII, Luciano
modifica seu comportamento e aparece com mais destaque no contexto da
narrativa, pois esta parte do enredo dá os primeiros passos para o
desencadeamento do conflito, ou seja, o jogo de Luciano é o causador da
tragédia que se abaterá sobre as personagens: mãe e filha.
Luciano se descobre enamorado da filha da viúva, Sara,
pois “ele também a preferia para esposa, quereria ser ele a conduzi-la ao
altar, a chamá-la -- minha!” (ALMEIDA, 1999, p. 160). O que Luciano sentia pela
viúva mudou: “o vulto de Ernestina ia-se esfumando no seu espírito, e numa
irradiação de luz ele via Sara, dizendo-lhe na sua grande franqueza: -- Amo-a!”
(ALMEIDA, 1999, p.160)
A narrativa mostra que a paixão de Luciano por Sara foi
uma revelação da qual ele tinha consciência, mas não controle. Ele não tinha
experimentado um amor que fosse além de seu interesse quanto à posição social e
às paixões mundanas que envolvem o jogo da conquista e dos prazeres:
Em toda a sua vida era a primeira vez que essa palavra simples [amor]
assumia no seu pensamento proporções tão belas! E Sara haveria de sagrar essas
três sílabas divinas com as suas qualidades perfeitas, seria a esposa amorável
e honesta a quem a mentira repugnasse e o sacrifício aprouvesse! (ALMEIDA, 1999, p. 161)
No trecho acima, o discurso perde a erotização que havia
na fala do narrador. Há um retorno para o ideal de mulher direita estabelecido
pela sociedade patriarcal, no qual o modelo de
mulher honesta estava sujeita à subordinação do “poder do macho”,
restrita ao espaço do lar e à vontade do marido.
Há também um parecer de oposição
sentimental que se passa no espírito de Luciano, expressa no texto abaixo, pelo
jogo amoroso que envolve o idílio sentimental entre a viúva e sua
filha:
(...) Entretanto, percebia bem: se
Ernestina era para ele a mulher de fogo que lhe queimava
a carne, a filha era mulher de luz benéfica que lhe iluminava o futuro, e ele
amava a ambas, a uma com os sentidos, a outra com o coração (ALMEIDA, 1999, p.
161).
O clímax do dilema vem à tona quando o narrador
esclarece que esse parecer de Luciano se justifica num jogo dicotômico, ou
seja, se, por um lado, a viúva era a mulher de fogo que simbolizava o desejo carnal,
por outro, Sara representava o anjo, a mulher sensual e romântica:
Desde os tempos antigos, da sua primeira paixão, que ele fugira
por medo!...
A beleza de Ernestina era então de uma singularidade
atormentadora!
Vira sempre nela a tentação da carne, chamando-a por isso, de: --
virgem inconscientemente pecaminosa! Nunca lhe ocorrera dar-lhe uma flor. Se pensava
em presenteá-la, vinham-lhe á idéia pedrarias caras, engastadas em metais rijos
e vistosos.
A não ser como amante, lasciva e ardente, ele só podia conceber Ernestina
casar-se com um príncipe poderoso ou um desses homens fantásticos, das lendas,
que a vestisse de roupas suntuosíssimas e a fizesse servir em baixela de ouro. Era a mulher
destinada, pela sua formosura emocionadora, ao luxo, à grandeza e ao amor.
Não que seu rosto fosse de linhas puras, nem que suas palavras denunciassem
a volúpia; aquele ardor, aquele domínio, vinham da sua pele, do seu olhar, do
seu porte e do seu sorriso. (ALMEIDA, 1999, p. 180)
Nessa passagem, é importante destacar que os elementos
da prosa realista/naturalista, em oposição à prosa romântica, constituem uma
imagem feminina poderosa, marcada por seus elementos raciais e por uma sedução
quase ou até natural/espontânea. Ernestina não é caracterizada nem pela
leviandade lasciva da prostituta, nem pela idealização da beleza, da bondade e
do espírito magnânimo da mulher idealizada pelo patriarcado. Ela se constitui
como uma pessoa, ela
tem sua humanidade preservada através dos conflitos que vivencia e da resolução
destes em atendimento às demandas da sua condição de mulher burguesa,
de mãe e, sobretudo, de um ser responsável pelos que ama.
Ainda em relação ao excerto acima,
notamos que a personagem masculina recorre à sua memória discursiva e mostra
que seus sentimentos em relação à viúva não sofreram modificações, mesmo com o
passar dos anos: Luciano ainda a vê com grande erotização, mulher de fogo,
voluptuosa, lasciva “uma beleza de espantar maridos”.
A partir daí, o foco narrativo
passa para outra representação das personagens, pois, principalmente no que
tange a Luciano, há aparentemente uma modificação quanto à sua postura em
relação às mulheres até aquele momento. A personagem que anteriormente se
apresentara mais preocupada e decidida em atingir seus objetivos, caprichos e
desejos, agora mostra uma atitude distinta em relação ao seu envolvimento com a
viúva e sua filha: ”pobre mulher! Pensava Luciano com infinita tristeza. E
sentia uma dor incompreensível, que seria talvez o remorso, imaginando que no
fundo a causa de tudo aquilo... era ele!” (ALMEIDA, 1999, p. 182)
A provável redenção de Luciano, sugerida pelo narrador,
se dá através das doenças que recaem sobre as duas personagens, mãe e filha:
Luciano entrava [com] medo no quarto da viúva, esperando sempre uma
recriminação, temendo também exacerbar-lhe o mal. A sua consciência não o
deixava à vontade entre aquelas duas mulheres enfermas. Entretanto, não se
afastava dali, daquela casa. (ALMEIDA,
1999, p. 194)
Poderíamos, numa percepção ingênua, ser levados a pensar
que a culpa e o remorso sugeridos no enredo fazem com que Luciano fique transitando
no espaço doméstico da viúva, entre um quarto e outro, onde as personagens se
encontram acamadas. Porém a nossa análise
desta suposta redenção de Luciano apresenta-se mais como um traço de
resistência na escrita deste romance, pois entendemos que a volta de Luciano
para a Europa ratifica seu velho comportamento, ou seja, a fuga.
Ernestina fica sozinha para cuidar de si e de Sara.
O diálogo entre D. Candinha,
senhora que ajudava a cuidar das doentes, e Luciano retrata, de certa forma, a
opinião feminina em relação à postura dos homens e seus valores no plano da
continuidade da vida, quando algo trágico se abate sobre seus
destinos.
Concluindo uma série de reflexões quaisquer, Luciano murmurou a meia-voz, levantou-se:
-- Decididamente hei de morrer solteiro...
-- Está falando sozinho? Perguntou-lhe D. Candinha, que havia chegado
sem ser pressentida.
-- Falei alto? Não admira, estou meio maluco... respondeu ele sorrindo.
-- É preciso ter cuidado... as paredes têm ouvidos... e...
-- Está tudo acabado...
-- Para Ernestina e para Sara, com certeza.
-- E para mim.
-- Isso... duvido! Conheço os homens, as impressões neles não duram
como em nós... (ALMEIDA, 1999, p. 206)
O fragmento apresentado acima tem uma peculiaridade, uma
vez que o diálogo entre as personagens se dá sem a mediação do narrador. A
nosso ver, o discurso direto que aí se estabelece é proposital, pois, com esse
recurso, o autor se isenta de qualquer responsabilidade ao sugerir, na voz da
personagem D. Candinha, que os homens são levianos. Entendemos isso como uma
estratégia, na fala da personagem feminina, como uma forma de questionar os
valores vigentes.
A questão está, portanto, acabada para as personagens
femininas que, em uma narrativa circular, retornam ao espaço doméstico,
humilhadas e punidas por terem ousado transgredir o “status quo”: uma é punida pelo seu desejo e a
filha, vitima de sua própria inocência, de sua primeira paixão; a primeira por
ter desafiado as normas sociais vigentes; a
segunda por não ter conseguido suportar a quebra das normas
pré-estabelecidas.
Ao homem, no caso Luciano, as
impressões são transitórias e nada como o tempo para sará-las. Isso acontece
logo em seguida quando Ernestina acompanhava do terraço de sua casa o “paquete
transatlântico, que demandava a barra, levando Luciano para a
Europa”. (ALMEIDA, 1999, 209)
Finalizando, percebe-se que o narrador funciona no texto
da obra, A Viúva Simões, como
uma espécie de demiurgo. Ele sabe mais do que o leitor, sabe mais do que as
personagens e menos do que D. Candinha: “– Isso... duvido! Conheço os homens,
as impressões neles não duram como em nós ...” (ALMEIDA, 1999, p. 206).
É este narrador que opera uma distinção entre o
enunciado e a enunciação, entre significante e significado no contexto da obra
ficcional; é ele que repassa à obra a verossimilhança, os aspectos de análise e
de compreensão da obra literária.
No caso de A viúva Simões, é, principalmente, pela voz do
narrador que percebemos a sensualidade da viúva. É também através dessa voz
narrativa que a autora consegue transgredir alguns preceitos pejorativos que
acompanharam aescritura feminina fora do contexto do trivial, do doméstico.
Júlia Lopes de Almeida consegue construir um narrador que conduz a trama da
viúva de forma direta, sem subterfúgios, como seria esperado de um romance
realista/naturalista.
As personagens são conduzidas, guiadas pelo narrador
para representar a condição feminina no final do século XIX. Narrador criado
pela pena de uma escritora que, através da voz narrativa, insere um diferencial
de escrita na literatura brasileira oitocentista. No contexto da literatura de
autoria feminina, não havia surgido, até então, uma narrativa com a trama
inteiramente voltada para a composição da personagem feminina. A
Viúva Simões, romance escrito por uma mulher, com a composição de
personagens femininas densas, é dirigido para um público não somente feminino,
mas para um público que sabia o valor do bem escrever: Júlia Lopes colocava este romance da
literatura realista/naturalista ao lado das obras do renomado Aluísio de Avezedo.
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Fonte:
Romair Alves de Oliveira: “A escritura de resistência em Júlia Lopes de Almeida, A Viúva Simões.” (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Concentração: Literatura e Cultura). Orientadora: Profª Drª Nadilza Martins de Barros Moreira). João Pessoa, 2008.
Fonte:
Romair Alves de Oliveira: “A escritura de resistência em Júlia Lopes de Almeida, A Viúva Simões.” (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba, como requisito para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Concentração: Literatura e Cultura). Orientadora: Profª Drª Nadilza Martins de Barros Moreira). João Pessoa, 2008.
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