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Sobre sua literatura
Humberto de Campos fez parte de uma geração de escritores
brasileiros que, nas primeiras décadas do século passado, empregaram-se em
jornais de grande circulação e desenvolveram sua literatura sob as injunções da
imprensa. Obrigado a muito escrever para cumprir suas obrigações de literato
assalariado, seus textos diários eram suas mercadorias. Ele lamentava não ter
podido produzir uma obra literária mais elaborada e de maior alcance artístico,
a qual não estivesse fadada ao esquecimento. A respeito dessa literatura para a
subsistência, eis um trecho da crônica “Uma voz na sombra”: “Como poderei
escrever um romance forte, um trabalho de meditação ou de observação, se tenho de
vender, a retalho, as idéias miúdas que me vêm, e se não há compradores na
praça para as outras de maior porte? Que aspiração pode alimentar, ainda, um
escritor, cujas ilusões caíram todas, e morreram, como pássaros, na gaiola da
realidade, e que tem de ralhar diariamente com o cérebro por ordem imperiosa do
estômago?” (Campos, 1960d, p. 24-25)
Para dimensionar sua produção, Humberto de Campos registra, em
anotação de 19 de março de 1928 do Diário secreto, que, num
período de dez anos, escrevera mais do que o prolífico Guy de Maupassant. E
comenta: “É verdade que o produto de um cérebro quase genial é diferente da
obra de um escritor como eu. Mas o trabalho cerebral é o mesmo.
Tanto cansa o tear que tece o fio de seda como o que trabalha
com o fio de algodão.” (Campos, 1954a, p. 159) Apesar de seus laços com a
imprensa, preferia se apresentar mais como literato do que como jornalista. Na
crônica “A defesa de Noé”, após mencionar algumas críticas que um grupo de
escritores da nova geração lhe dirigia, segundo as quais sua literatura caíra
no misticismo religioso e era contra-revolucionária, o escritor se justifica:
[...] acusar-me de misticismo religioso é
dar testemunho de que nada sabe nem da minha literatura nem da minha vida. Se
há um espírito livre de superstições na atualidade literária do Brasil, esse é
o meu. Apenas, por educação e por princípio, não tiro Deus ao coração de
ninguém. Porque tenho o meu vazio, não me considero modelo de prudência e sabedoria.
Sem um templo em que me prosterne, não me sinto no direito de incendiar os altares
dos que têm fé. E se não sou filósofo, aprendi, pelo menos, com os que têm esse
nome, a arte de suportar a vida e as dores que ela me trouxe, e de me não
supor, entre os homens ignorantes, o portador do facho de Minerva.
Não sou, evidentemente, um espírito
moderno, destinado a presidir à renovação do mundo. Sou antigo e
contra-revolucionário, porque não me ocupo senão da alma humana, cujas
aspirações instintivas não variaram através dos séculos. (Campos, 1960k, p.
104-105) Em anotação de 30 de julho de 1928, no Diário
secreto, Humberto fala do plano de obra que pretendia ter realizado,
que visava à poesia e à crítica, e das razões práticas que o levaram a explorar
outras formas de texto:
O meu grande sonho era realizar uma obra
poética uniforme e vasta, de que eram base, já, os dois volumes da “Poeira...”
Ao lado dessa obra poética, viria uma obra crítica, uma série de ensaios, como
os de Sainte-Beuve, Brunetière e Doumic. As obrigações de família, agravadas
pelo espólio humano do meu sogro – três senhoras idosas que vieram para a minha
casa desde que me casei, – fizeram-me dedicar inteiramente à imprensa, onde instituí
as crônicas miúdas e humorísticas, os contos ligeiros e cotidianos, que deram popularidade
ao meu nome [...] Esses livros [de contos humorísticos e os dois primeiros de crônicas]
deram-me dinheiro e nomeada. Essa nomeada fez-me deputado. Tivesse eu ficado a
rimar os meus versos e a escrever os meus ensaios, como era do meu programa
inicial, e teria chegado onde hoje me encontro?
Deus sabe, pois, mais do que nós, o que faz
a nosso respeito. E eu só tenho, por mim, que abençoar o dia em que ele,
tomando-me pela orelha, e utilizando as três sogras que me deu, me fez
humoristicamente mudar de caminho... (Campos, 1954a, p. 254-255)
Convém notar que o Diário secreto é o espaço
no qual o escritor se permite destoar, muitas vezes, de seu próprio discurso em
outros livros, numa atitude que realça as limitações do meio jornalístico e
literário em que se encontrava. O escritor imprimiu uma tendência mais “oficial”
nas crônicas e nas memórias, ao passo que, no Diário
secreto, ele procura livrar-se de amarras relacionadas às conveniências
de seu meio. No entanto, isso não impede que, também nesta obra, o autor
alimente determinadas imagens de si, com vistas a oferecer, ele mesmo, suas
possíveis representações para a posteridade. Em algumas crônicas posteriores a
1928, Humberto de Campos procura difundir certo distanciamento em relação aos
escritos do Conselheiro XX: “No tempo em que eu escrevia páginas mais ou menos
alegres, isto é, quando a vida ainda não havia posto a sua dose de centáurea
menor no meu copo [...]” (Campos, 1960j, p. 183). Outras vezes, embora com
desconforto, tenta qualificar essa literatura, não como licenciosa, mas como
galante:
Os dez volumes alegres que escrevi, e que
formam um acervo de 1.120 pequenos contos originais ou traduzidos, não são, sem
dúvida, dos mais edificantes e modelares, sob o ponto de vista moral ou, antes,
da moralidade. [...] Eu tenho uma bibliografia galante, confesso; mas não tenho
uma obra propositalmente imoral. Os meus miúdos contos maliciosos foram
escritos para fazer sorrir a uma sociedade que conhece o pecado; mas não ensinam,
eles mesmos, o pecado [...] Nas 3.690 páginas que formam esses dez volumes erradamente
classificados de fesceninos, não se encontra, em suma, um só termo brutal ou vocábulo
que não possa ser proferido em voz alta. O que poderia haver de inconveniente e
censurável está em subentendidos, no duplo sentido das expressões, no equívoco
das situações cômicas, nos atributos literários, enfim, que caracterizam a
literatura galante e a distinguem da literatura licenciosa. (Campos, 1960v, p.
309-310)
Encontram-se no Diário secreto informações
a respeito da história dos livros de Humberto de Campos – como surgiram, a
recepção que obtiveram etc. – e de seu trabalho em jornais. Quanto ao próprio Diário
secreto, o autor historia sua composição, no registro de 1º de janeiro
de 1928:
É a terceira vez que inicio um diário
íntimo, o registro fiel e cotidiano da minha vida e, em parte, da vida alheia.
A primeira tentativa nesse sentido foi em janeiro de 1915. A segunda, em 1917.
Ao encontrar, hoje, os restos de um e de outro, destroços das anotações que
então fazia, lamento não os ter continuado. A culpa não foi, entretanto, minha.
Tive, de então para cá, de lutar penosamente pela subsistência, mantendo-me, e
a uma família numerosa, exclusivamente com o trabalho da minha pena. Os meus
dias, as minhas horas, os meus minutos, passaram a ser convertidos em pão. Quem
tem fome não planta árvores de luxo, que só produzem ao fim de cinco anos;
planta leguminosas comuns, que frutificam em cinco semanas. Foi o que eu fiz.
(Campos, 1954a, p. 84)
A origem de seu livro de contos orientais é mencionada em
anotação de 28 de junho de 1934. Humberto fala da amizade que tinha com Malba
Tahan – pseudônimo de Júlio César de Melo e Sousa –, conhecido autor de
narrativas com temáticas orientais. E conta
que, a pedido de Assis Chateaubriand, começou, ele também, a
escrever contos orientais, que apareceram na imprensa. Depois, José Olympio
quis editar um livro com esses contos, e foi então que surgiu À
sombra das tamareiras. Com a publicação do livro, Malba Tahan teria
rompido a amizade com Humberto, que comenta: “Por que não me preveniu ele de
que havia tirado patente como produtor de contos orientais?” (Campos, 1954b, p.
453)
Em 1º de janeiro de 1933, anotou: “Publiquei um livro, O
monstro e outros contos, que a imprensa e os críticos, em
julgamento constante, consideraram a melhor das minhas obras até agora
publicadas [...]” (Campos, 1954b, p. 320). Porém, entre os seus livros, o mais
referido no Diário secreto é
provavelmente Memórias, sobre o
qual o autor reproduz muitas das opiniões elogiosas que circularam nos meses
seguintes ao lançamento do volume (1933).
Os livros Notas de um diarista, que têm
duas séries, remetem à coluna homônima à qual Humberto de Campos se refere em
anotação de 19 de outubro de 1930:
Inicio, sob o título geral “Notas de um
diarista”, a minha colaboração diária em “O Jornal”, de Assis Chauteaubriand.
Trato da Revolução, confessando que a combati, e que serei contra todo
movimento armado que se apresente para solução de problemas políticos. Telefonemas,
parabéns de amigos, que me saúdam pelo desassombro com que confesso a minha
solidariedade com os vencidos diante dos revolucionários vitoriosos. (Campos,
1954b, p. 108)
Por causa das críticas ao novo governo, expressas nas “Notas de
um diarista”, houve uma ordem de prisão contra o escritor, que não foi
executada, conforme consta da anotação de 19 de março de 1931. Após essa
ameaça, Assis Chauteaubriand teria pedido para Humberto de Campos não mais
tratar de política em suas crônicas. De fato, a oposição do escritor a Getúlio
Vargas não teve maiores conseqüências: o político gaúcho admirava a literatura
de Humberto, conhecia sua popularidade e fora informado de que ele, enfermo, estava
em dificuldades financeiras. No mesmo ano, o governo o nomeou inspetor federal
de ensino; e, no final de 1933, o escritor foi nomeado diretor da Casa de Rui
Barbosa.
Quando o livro Memórias foi
lançado, Humberto enviou um exemplar ao presidente com a seguinte dedicatória:
Ao eminente sr. dr. Getúlio Vargas, esta
homenagem de profunda e comovida gratidão, pela generosidade carinhosa com que
acompanhou, na adversidade e na doença, um pobre escritor que foi seu
adversário político, e que, ao oferecer-lhe esta humilde lembrança das suas
letras, pode repetir, consolado, os dois famosos versos de Luis de Góngora:
“Por tu espada y por tu trato
Me has cautivado dos veces”. (Apud Leão, 1941, p.
350)
Nem tudo o que escrevia era assinado. No Diário, porém, o
escritor assume a autoria de alguns textos anônimos. Em nota de 14 de maio de
1931, revela: “Com o título A Mentira Comunista, foi
distribuído hoje, gratuitamente, um folheto de 40 páginas, anônimo, que escrevi
a pedido de Assis Chateaubriand.” (Campos, 1954b, p. 150)
Às vezes, um tema era registrado no Diário
e
tratado também em colunas jornalísticas. O primeiro estava destinado a ser
publicado vinte anos após a morte do escritor; o segundo, no dia ou na semana
seguinte. Em 19 de abril de 1929, Humberto de Campos anota em seu diário:
Recebo um novo livro de Coelho Neto: Bazar. É um punhado de
crônicas de jornal, em que se seguem os lugares-comuns, se sucedem as
expressões banais, os termos da gíria, as frases feitas, compondo página sem
relevo, sem interesse, sem beleza. Ao ler as primeiras, apossou-se de mim uma
grande tristeza, uma grande piedade, um grande dó. Lembrei-me de uma frase do
Abade Brémond, e exclamei, comigo mesmo:
– Meu pobre e grande Coelho Neto! A ti, que
dessedendaste de beleza tantas gerações, como custa, hoje, espremer o resto do
último limão para preparar uma limonada!... (Campos, 1954a, p. 330)
Sobre esse mesmo livro de Coelho Neto, há um artigo de Humberto
de Campos publicado no primeiro volume de sua Crítica,
intitulado “O sr. Coelho Neto e o seu estilo”. Com digressões, situa o lugar de
destaque que seu conterrâneo ocupava na literatura brasileira. No final dos
anos 20, era um dos escritores mais combatidos pelos modernistas. “Sou o último
heleno”, gritou Coelho Neto aos adversários. Em seu estudo, no qual subjaz a
idéia de que um livro menor não comprometeria a obra de seu amigo, Humberto de
Campos é muito mais delicado para aludir objeções a Bazar:
O novo livro do príncipe dos nossos
prosadores, sem ser, assim, um documento reafirmador do seu estilo suntuoso ou,
como querem outros, suntuário, difere dos demais pela vivacidade das idéias, e
pela coragem com que desce a discutir assuntos vulgares e transitórios. Bazar é, mesmo, um
livro quase político. Tem mais valor pela substância, pelas opiniões que
enuncia, pelas idéias pessoais que difunde, do que pela vestimenta que lhe dá. É
um retrato do sr. Coelho Neto, mas apanhando apenas meio corpo. O estilista
uniforme, esse está na sua obra de ficção – nos seus romances, nos seus contos,
nas suas fantasias fortes, nos cenários e acontecimentos, em suma, que se
desenrolam fora da vida comum. (Campos, 1960u, p. 298-299)
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Fonte:
Alexandre Caroli Rocha: “O caso Humberto de Campos: Autoria literária e mediunidade”. (Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para a obtenção do título de doutor em Teoria e História Literária. Área de concentração: Literatura e Outras Produções Culturais. Orientador: Professor Dr. Haquira Osakabe Co-orientadora: Professora Dra. Maria Betânia Amoroso). UNICAMP - Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas, 2008.
Fonte:
Alexandre Caroli Rocha: “O caso Humberto de Campos: Autoria literária e mediunidade”. (Tese apresentada ao Instituto de Estudos da Linguagem, da Universidade Estadual de Campinas, como requisito parcial para a obtenção do título de doutor em Teoria e História Literária. Área de concentração: Literatura e Outras Produções Culturais. Orientador: Professor Dr. Haquira Osakabe Co-orientadora: Professora Dra. Maria Betânia Amoroso). UNICAMP - Instituto de Estudos da Linguagem. Campinas, 2008.
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