09/02/2014

Lendas e Narrativas (Contos), de Alexandre Herculano

 Lendas e Narrativas, de Alexandre Herculano
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De fadas a demônios: um processo de conversão

À primeira vista, a narrativa parece se configurar como uma “história de bruxas” produzida ao sabor do interesse romântico pelo obscuro, maravilhoso ou insólito dos tempos medievais. Todavia, observando atentamente o contexto em que a narrativa está inserida e seus possíveis significados, percebemos tratar-se, na verdade, de obra significativa para a compreensão do processo de transformação de um mito em lenda, como também do processo de tradicionalização desse relato lendário, segundo as transformações da sociedade ao longo dos séculos, especialmente aquelas relativas à propagação do cristianismo e ascensão do poder da Igreja. Através da análise da história da Dama Pé de Cabra, inserida no contexto da época e de sua comparação com o mito literário de Melusine, conhecido em toda a Europa, o conto se mostra rico de significados não revelados pela interpretação tradicional. Tanto o conto de Herculano como a narrativa genealógica são tributários da tradição melusiana, cujo esquema narrativo foi trabalhado, primeiramente, por Dumézil que os denominou “contos melusianos”, em homenagem à personagem mais famosa.

Esses relatos possuem uma estrutura comum: há um encontro entre o ser divino de forma híbrida– fada ou deusa que é metade mulher, metade animal – e um ser humano que se apaixona (nas versões medievais, geralmente um cavaleiro durante uma caçada). A misteriosa mulher aceita casar-se com a condição de obediência a um interdito. A união traz prosperidade (riquezas, descendência). Quando o pacto é quebrado, ela desaparece revelando sua verdadeira forma (BRUNEL, 1988, p. 1001).

Amplamente atestados na cultura folclórica universal, tais contos aparecem registrados na literatura do Ocidente medieval nos séculos XII e XIII, quando passam a apresentar essas fabulosas jovens de duas formas: ora desempenham o papel de fadas madrinhas, frequentes na épica, que vaticinam os heróis para aventuras gloriosas e os auxiliam, ora surgem como fadas amantes, que oferecem prosperidade aos eleitos. Geralmente, aparecem acompanhadas por animais dotados de poderes mágicos, ou por velozes cavalos com que, por vezes, presenteiam seus amados. Embora Melusine seja o mito literário mais popularizado pela versão de Jean d´Arras, Le roman de Mélusine (1392), estes relatos foram introduzidos na cultura erudita do medievo com o aproveitamento do folclore e da tradição oral de variadas origens empreendido por autores e organizadores de recolhas de anedotas, contos e lendas (cf. LE GOFF e LADURIE, 1971).

Concomitantemente ao processo de variação e transformação das narrativas e das sociedades, ao longo dos séculos, ocorreu a propagação do cristianismo por toda a Europa e a perseguição aos cultos e às práticas pagãs anteriores a ele, ocasionando uma mescla entre imaginários e simbolismos em diferentes graus, dependendo da época e da sociedade. Nogueira explica que, nesse longo e complexo processo, “as superposições das práticas cristãs aos ritos pagãos se realizavam sempre que estes eram de natureza propícia a serem santificados” (NOGUEIRA, 2002, p. 36). Por outro lado, “tudo o que ele repeliu energicamente como demasiado pagão, como contrário a seus dogmas, como impuro e ímpio, refugiou-se no reino do Mal. Aos demônios foram emprestadas as imagens que os antigos atribuíam às divindades” (NOGUEIRA, 2002, p. 36), por exemplo, os chifres e os pés de bode do deus Pã que passam a ser atributos do diabo.

O processo de endemoniamento das damas da floresta ocorreu paralelamente ao de sua apropriação pelas linhagens nobres, em decorrência de uma grande variação de juramentos, desde a promessa de o cavaleiro não ver a bela tomando banho ou durante o sábado até os interditos claramente anticristãos, como deixar de se benzer, de ir à missa ou de aspergir água benta.

As antigas deusas da natureza, transformadas em fadas, são identificadas, então, a fadas-demônio (algumas vezes até caracterizadas como feiticeiras ou bruxas), aspecto responsável pela ocorrência de significativas variantes. Isto porque, para a concepção da época, as explicações fornecidas pelo cristianismo eram coerentes. Assim, a caracterização demoníaca explica, aos olhos dos clérigos medievais, a natureza e a história da misteriosa mulher. Como o mito é mais antigo que o cristianismo, Melusine está ligada, na verdade, a uma deusa da fecundidade celta, a um espírito fertilizador, ou a uma heroína indo-européia, que surge em versões diferentes como metade mulher, metade serpente, sereia ou dragão.

No caso da reinterpretação literária, Herculano privilegiou as temáticas da mitologia cristã já presentes no Livro de Linhagens português; por isso, a Dama é relacionada ao demônio, simbolizado pelos pés de cabra. As deusas-mãe foram introduzidas no cristianismo sob a forma de Maria. Segundo a Bíblia, ela, ao contrário de Eva, não dá ouvidos à serpente, mas lhe esmaga a cabeça com os pés. A serpente deixa, portanto, de simbolizar a sabedoria para ser a encarnação do espírito do mal. É a partir do mito de Adão e Eva que verificamos a ruptura da aliança do homem com a natureza característica das religiões pagãs. Por conseguinte, os seres híbridos e todas as suas variantes (deusas, fadas, damas da abundância) passam a ser identificadas com demônios femininos criados pelo maravilhoso cristão. Como a terra é considerada a divindade mãe-primordial em variadas culturas, devido à oposição céu, espaço divino, e baixo, espaço infernal, tudo o que se relaciona a ela passa a ser classificado como demoníaco. Corrobora a questão o fato de os cultos aos deuses agrários estarem diretamente relacionados à fertilidade e à sexualidade, aspectos humanos vistos como pecaminosos pela ortodoxia cristã.


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Fonte:
Ana Márcia Alves Siqueira e Felipe Hélio da Silva Dezidério (Universidade Federal do Ceará): A face negra de Alexandre Herculano: visões históricas do mal na construção do sobrenatural em “A Dama pé de Cabra”. ABRIL – Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 4, n° 8, Abril de 2012, disponível em: http://www.uff.br/revistaabril

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