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De
fadas a demônios: um processo de conversão
À
primeira vista, a narrativa parece se configurar como uma “história de bruxas”
produzida ao sabor do interesse romântico pelo obscuro, maravilhoso ou insólito
dos tempos medievais. Todavia, observando atentamente o contexto em que a
narrativa está inserida e seus possíveis significados, percebemos tratar-se, na
verdade, de obra significativa para a compreensão do processo de transformação
de um mito em lenda, como também do processo de tradicionalização desse relato
lendário, segundo as transformações da sociedade ao longo dos séculos,
especialmente aquelas relativas à propagação do cristianismo e ascensão do
poder da Igreja. Através da análise da história da Dama Pé de Cabra, inserida
no contexto da época e de sua comparação com o mito literário de Melusine, conhecido
em toda a Europa, o conto se mostra rico de significados não revelados pela
interpretação tradicional. Tanto o conto de Herculano como a narrativa
genealógica são tributários da tradição melusiana, cujo esquema narrativo foi
trabalhado, primeiramente, por Dumézil que os denominou “contos melusianos”, em
homenagem à personagem mais famosa.
Esses
relatos possuem uma estrutura comum: há um encontro entre o ser divino de forma
híbrida– fada ou deusa que é metade mulher, metade animal – e um ser humano que
se apaixona (nas versões medievais, geralmente um cavaleiro durante uma
caçada). A misteriosa mulher aceita casar-se com a condição de obediência a um
interdito. A união traz prosperidade (riquezas, descendência). Quando o pacto é
quebrado, ela desaparece revelando sua verdadeira forma (BRUNEL, 1988, p.
1001).
Amplamente
atestados na cultura folclórica universal, tais contos aparecem registrados na
literatura do Ocidente medieval nos séculos XII e XIII, quando passam a
apresentar essas fabulosas jovens de duas formas: ora desempenham o papel de
fadas madrinhas, frequentes na épica, que vaticinam os heróis para aventuras
gloriosas e os auxiliam, ora surgem como fadas amantes, que oferecem
prosperidade aos eleitos. Geralmente, aparecem acompanhadas por animais dotados
de poderes mágicos, ou por velozes cavalos com que, por vezes, presenteiam seus
amados. Embora Melusine seja o mito literário mais popularizado pela versão de
Jean d´Arras, Le roman de Mélusine (1392), estes relatos foram introduzidos na
cultura erudita do medievo com o aproveitamento do folclore e da tradição oral
de variadas origens empreendido por autores e organizadores de recolhas de anedotas,
contos e lendas (cf. LE GOFF e LADURIE, 1971).
Concomitantemente
ao processo de variação e transformação das narrativas e das sociedades, ao longo
dos séculos, ocorreu a propagação do cristianismo por toda a Europa e a
perseguição aos cultos e às práticas pagãs anteriores a ele, ocasionando uma
mescla entre imaginários e simbolismos em diferentes graus, dependendo da época
e da sociedade. Nogueira explica que, nesse longo e complexo processo, “as
superposições das práticas cristãs aos ritos pagãos se realizavam sempre que
estes eram de natureza propícia a serem santificados” (NOGUEIRA, 2002, p. 36).
Por outro lado, “tudo o que ele repeliu energicamente como demasiado pagão, como
contrário a seus dogmas, como impuro e ímpio, refugiou-se no reino do Mal. Aos
demônios foram emprestadas as imagens que os antigos atribuíam às divindades”
(NOGUEIRA, 2002, p. 36), por exemplo, os chifres e os pés de bode do deus Pã
que passam a ser atributos do diabo.
O
processo de endemoniamento das damas da floresta ocorreu paralelamente ao de
sua apropriação pelas linhagens nobres, em decorrência de uma grande variação
de juramentos, desde a promessa de o cavaleiro não ver a bela tomando banho ou
durante o sábado até os interditos claramente anticristãos, como deixar de se
benzer, de ir à missa ou de aspergir água benta.
As
antigas deusas da natureza, transformadas em fadas, são identificadas, então, a
fadas-demônio (algumas vezes até caracterizadas como feiticeiras ou bruxas),
aspecto responsável pela ocorrência de significativas variantes. Isto porque,
para a concepção da época, as explicações fornecidas pelo cristianismo eram
coerentes. Assim, a caracterização demoníaca explica, aos olhos dos clérigos
medievais, a natureza e a história da misteriosa mulher. Como o mito é mais
antigo que o cristianismo, Melusine está ligada, na verdade, a uma deusa da
fecundidade celta, a um espírito fertilizador, ou a uma heroína indo-européia,
que surge em versões diferentes como metade mulher, metade serpente, sereia ou
dragão.
No caso
da reinterpretação literária, Herculano privilegiou as temáticas da mitologia
cristã já presentes no Livro de Linhagens português; por isso, a Dama é
relacionada ao demônio, simbolizado pelos pés de cabra. As deusas-mãe foram
introduzidas no cristianismo sob a forma de Maria. Segundo a Bíblia, ela, ao
contrário de Eva, não dá ouvidos à serpente, mas lhe esmaga a cabeça com os
pés. A serpente deixa, portanto, de simbolizar a sabedoria para ser a
encarnação do espírito do mal. É a partir do mito de Adão e Eva que verificamos
a ruptura da aliança do homem com a natureza característica das religiões
pagãs. Por conseguinte, os seres híbridos e todas as suas variantes (deusas,
fadas, damas da abundância) passam a ser identificadas com demônios femininos
criados pelo maravilhoso cristão. Como a terra é considerada a divindade
mãe-primordial em variadas culturas, devido à oposição céu, espaço divino, e
baixo, espaço infernal, tudo o que se relaciona a ela passa a ser classificado
como demoníaco. Corrobora a questão o fato de os cultos aos deuses agrários
estarem diretamente relacionados à fertilidade e à sexualidade, aspectos
humanos vistos como pecaminosos pela ortodoxia cristã.
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Fonte:
Fonte:
Ana Márcia Alves Siqueira e Felipe Hélio da Silva
Dezidério (Universidade Federal do Ceará): A face negra de Alexandre Herculano:
visões históricas do mal na construção do sobrenatural em “A Dama pé de Cabra”.
ABRIL – Revista do Núcleo de
Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF, Vol. 4, n° 8, Abril de 2012,
disponível em: http://www.uff.br/revistaabril
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