22/02/2014

A Falência, Júlia Lopes de Almeida

 A Falência, Júlia Lopes de Almeida
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A família em A falência – papéis sociais em jogo


O estudo sobre a família constitui-se como um tema complexo a ser analisado a partir de uma visão global. É preciso ter em mente as mudanças que caracterizaram as famílias ao longo dos séculos. Neste caso, deve ser considerado que a estrutura familiar se ajustava de acordo com a classe a qual pertencia, fato tal que diferenciava a absorção das regras sociais de modo a servirem às suas conveniências mais urgentes.

Assim, certas normas extremamente importantes em uma família burguesa, poderiam, por exemplo, não gozar de tanta consideração em uma família de camponeses.

O que realmente chama atenção é o fato de que a família constitui-se como um organismo vivo, constituindo-se como excelente fonte de pesquisa por representar um reflexo da vida em sociedade, seus costumes, suas mudanças.

Segundo Maria Lúcia Rocha-Coutinho em Tecendo por trás dos panos “a família humana é uma construção social, uma superação da família biológica (macho-fêmea-crias)” (1994, p. 27). Partindo dessa visão podem ser analisadas as relações que se constituem dentro desta instituição; faz-se necessário um entendimento sobre a construção ideológica fomentada no meio familiar, reservando espaços diversificados aos membros que dela pertencem. Além disso, as próprias leis sociais, que vão sendo gradualmente incorporadas pela sociedade são, na maioria das vezes, frutos de idéias que se cristalizaram dentro da família.

Assim, a família vai se constituindo como um espaço aberto pelo sexo e pelo poder, e o melhor exemplo desta afirmação reside nas relações existentes dentro da chamada família patriarcal que por tanto tempo, dominou o cenário social brasileiro.

De acordo com Elizabeth Badinter, “o patriarcado não designa somente uma forma de família baseada no parentesco masculino e no poder paterno. O termo designa também toda uma estrutura social que nasce de um poder do pai” (BADINTER, 1986, p. 95).

Como já foi ressaltado no segundo capítulo, o patriarcado reservou à mulher um papel secundário na sociedade. A viabilidade de uma vida fora do círculo familiar só era conquistada através da presença e da concordância do pai ou do marido. Assim percebe-se que a relação entre o homem e a mulher no patriarcado é marcada pela assimetria de poder, promovendo as desigualdades entre os sexos.

É importante notar que a distinção existente entre os membros da família, colocando o homem como centro dessa instituição, reside essencialmente no problema da herança e na necessidade de ser assegurada a transmissão dos bens aos filhos legítimos. Para tal, era preciso manter a mulher enclausurada na esfera do lar, “transformada em esposa tutelada e subordinada” (ENGELS, 1987, p. 59), a fim de evitar qualquer dúvida quanto à paternidade da prole.

De acordo com Rosaldo e Lamphere “o fenômeno do capitalismo não reside em regular as ordens econômicas e políticas, mas comportamentos relativos a homens e mulheres, delimitando valores diferentes para o masculino e o feminino” (LAMPHERE; ROSALDO, 1979, p. 75).

Confirma-se então a ideologia do gênero como sendo um produto cultural, impedindo o direcionamento dos membros da família a outros papéis que não sejam os pré-determinados pela sociedade.

Esta estrutura familiar, durante muito tempo, fez parte do cenário social brasileiro. O estilo de colonização difundida no Brasil, baseada na exploração dos recursos naturais da terra, originou uma economia de base latifundiária e escravocrata, que em muito contribuiu para a consolidação da autoridade paterna e, por conseguinte, a dependência dos outros membros da família de tal figura.

A principal característica desse tipo de família residia no tipo de organização familiar, centrada fundamentalmente no núcleo domiciliar para “onde convergia a vida econômica, social e política” (SAMARA, 1998, p. 11). O símbolo da casa grande passou a ser associado à estrutura da família patriarcal, visto que o pai, a fim de conservar seus vínculos políticos, procurava manter sob sua tutela um número infinitos de agregados e parentes, que se colocariam como seus aliados definindo uma rede vasta de interesses.

Júlia Lopes de Almeida retrata muito bem as características dessa estrutura familiar em A família Medeiros. Nesta obra, encontra-se a figura do pai autoritário representado pelo comendador Medeiros, homem que não foge aos padrões tradicionais, procurando manter seus interesses políticos e econômicos junto a outros senhores de fazenda, entre os quais o Coronel Tavares, o fazendeiro Siqueira Franco, o Trigueirinhos, “homens capazes de intrigas, traições e assassinatos para manter suas posições e convicções” (SALOMONI, 2005, p. 178).

Na época em que tal romance foi escrito, a sociedade brasileira passava por uma série de transformações. Novas idéias vindas do exterior procuravam enaltecer valores relacionados à família, valorizando a vida conjugal e uma maior privacidade entre seus membros.

Na verdade, as próprias mudanças estruturais ocorridas a partir da chegada da Família Real no Brasil, contribuíram para a divulgação de informações que reafirmavam a necessidade de mudança em nossos costumes. Com a remodelação do Rio de Janeiro pelo Prefeito Pereira Passos, em meados do século XIX, a população vai sendo contagiada pela nova ordem urbana, que edificava pouco a pouco, um pensamento reformador, baseado sobretudo no desenvolvimento social do país.

Este panorama vai abrindo espaço para novas formas de socialização que acarretaram a solidificação da família nuclear burguesa.

De acordo com Érica Schlude Ribeiro, “a nova mentalidade reorganizou as vivências familiares, a forma de pensar e sentir o amor, valorizando o lar e a maternidade” (1999, p. 17). A família torna-se o espaço de valorização da intimidade e a casa vai ganhando características de lar, sendo o espaço familiar o local onde o homem encontra sossego e aconchego. A mulher, glorificada no papel de mãe, assume o controle do seu lar, procurando garantir a ordem e o conforto necessários à preservação da paz familiar. Na verdade, pode ser observado que a posição da mulher junto à família em nada muda seu status na sociedade – ela continua enclausurada no lar, dependente da figura do marido. Assim, pode-se dizer que "as mulheres continuavam sob o regime de dominação e submissão, na situação de serem protegidas e mantidas. Não gerenciavam suas vidas, os maridos cuidavam de seus bens" (PORCHAT, 1992, p. 110).

De qualquer forma, vale ressaltar que mesmo começando a realizar o sonho do casamento por amor, a mulher continua presa aos mesmos costumes de quando solteira, passando ao controle do marido, “o pai social” (CAVALCANTI, 1987, p. 144).

"Acostumada à sujeição e à obediência, a mulher, pupila eterna do homem, não muda de condição ao passar do poder do pai para o do marido... Vive enclausurada em meio das mucamas, sentada no seu estrado, a coser, a fazer renda e a rezar as orações: os bons costumes em que resume a sua educação" (MACHADO, 1930, p. 155).
  
Nessa época, o dote vigorou como um dos principais instrumentos de garantia de casamento para a mulher, servindo como uma espécie de auxilio nas despesas do matrimônio. Desta forma, homens se casavam com a moça que tivesse dote, e ela com o homem que provasse que poderia sustentá-la.

Aliás, é confiando na possibilidade de ser sustentada eternamente pelo marido, que muitas moças se resignaram em aceitar os acordos pré-nupciais que as levariam rumo a um casamento sem amor. A possibilidade de permanecer solteira aterrorizava as moças, pois de qualquer forma, amando ou não o marido, ao se casarem elas conseguiam um status diferente daquelas que permaneciam solteiras. Assim, a “identidade da mulher passa a ser definida a partir de sua condição civil. Não é a mulher que é valorizada e reconhecida como pessoa, mas é o papel de esposa que lhe dá uma imagem social ...” (CAVALCANTI,1987, p. 110).

É nessa fase de transição entre casamento-negócio, casamento-amor, que Júlia Lopes de Almeida constrói o cenário do romance em estudo A falência. Ela mostra uma incrível percepção do meio em que vive, ao apresentar em sua narrativa personagens tão envolvidas com os modelos pré-determinados pela sociedade.

Logo nas primeiras páginas tem-se o contato com o mundo público, espaço marcado pelo trabalho e restrito ao mundo masculino. Corria então o ano de 1891, e o comércio do café crescia em grandes proporções, tornando-se um dos negócios mais cobiçados por aqueles que desejavam constituir riqueza.

Percebe-se que o mundo público descrito pela autora é essencialmente construído pela presença masculina. É nesse espaço que se encontra Francisco Teodoro, português bem sucedido que enriqueceu às custas do seu trabalho. É através da figura de tal personagem que Júlia Lopes irá apresentar o pensamento corrente entre os homens da época, limitado por um discurso tradicional que designava valores distintos para homens e mulheres, ajudando a reforçar a ideologia do gênero.

Assim, contrapondo-se a esse mundo público, encontra-se o espaço do lar, o mundo privado, marcado pela suntuosidade do palacete da família Teodoro. Chega-se então ao ponto chave do romance: a presença da família, um dos temas de maior referência na obra de Júlia Lopes.

É através da observação dos moldes familiares, que Júlia sutilmente se propõe a revisar certos valores que impediam o desenvolvimento da estrutura familiar. Em   A falência, encontramos alguns questionamentos sobre os papéis tradicionais que definiam as relações dentro da família, tais quais o casamento por conveniência, o ócio feminino dentro do lar, a ausência paterna.

Ao longo do romance, podem ser percebidas algumas nuances que levam a visualizar as imagens de uma típica família burguesa no final do século XIX: Francisco Teodoro, marido e pai da família, coloca-se como o ser soberano de sua casa.

Fartura e conforto eram os principais lemas de sua existência, baseada em uma ambição desmedida que será a causa de sua ruína financeira ao final do romance. Além disso, ao fundamentar sua vida na importância de sua fortuna, Teodoro torna-se um ser ausente, e sem perceber, acaba sendo o causador de problemas familiares, entre os quais a vaidade e adultério de sua esposa e a falta de caráter do filho.

Porém, importava ao homem da época a sua posição na sociedade e, Francisco Teodoro não fugia à regra. Sua reputação havia sido cristalizada principalmente pela riqueza produzida pelo seu trabalho. Esta obsessão em ser reconhecido socialmente será um dos motivos pelo qual ele se sentirá incentivado em contrair casamento. Junta-se a esse motivo, a preocupação em resguardar sua expressiva fortuna através de gerações que carregassem o seu nome: “Para o que lhe serviria o que juntara se o não compartilhasse com uma esposa dedicada e meia dúzia de filhos que lhe herdassem virtudes e haveres?” (ALMEIDA, 2003, p. 44).

Tal comportamento remonta a tese de Engels em A origem da família, da propriedade privada e do estado. Segundo o autor, “o poder que essa propriedade confere aos homens que a possuem, define o fato de que os homens querem transferir essa propriedade a seus filhos varões” (ENGELS, 1987, p. 53). Assim, levando em consideração as palavras de Engels, na qual o termo “propriedade privada” significava “propriedade de um indivíduo ou de uma família, onde os direitos de dirigi-la cabe a um dos proprietários” (1987, p. 51), nota-se que a ordem pela qual a família por muito tempo se viu constituída, baseou-se em uma estrutura capitalista que preocupava-se sobretudo com os bens e com a herança.

A aflição de Francisco Teodoro em relação à manutenção de seus bens pode ser explicada pela amargura de uma infância pobre, sem instrução e cheia de limitações: “A pátria esquecida não lhe acenava com o mínimo encanto: a mãe morrera, a sua única irmã tinha-se recolhido a um convento. Fechara-se uma porta sobre a sua meninice” (ALMEIDA, 2003, p. 43). O matrimônio, em A falência, em nenhum momento é associado à referência do amor, tanto que a idéia do casamento de Francisco Teodoro é sugerida por um médico para a “regularização de hábitos”. Vemos aqui mais uma função da família, além de assegurar a perpetuação da espécie e de garantir a herança: regularizar hábitos.

Além disso, existe o problema da solidão, que começa a ser sentida pela personagem ao perceber que em sua confortável casa na rua da Candelária “lhe faltava alguma coisa” (ALMEIDA, 2003, p. 44). Essa concepção é dirigida à falta da presença feminina, que também é abordada em outro romance de Júlia Lopes,     A intrusa, através das palavras da personagem Argemiro “uma casa sem mulher é um túmulo com janelas: toda vida está lá fora”. (ALMEIDA, 1994, p. 3)

O Positivismo, corrente filosófica largamente difundida na época da publicação do romance, condena de forma veemente o celibato. Segundo Marina Colasanti em seu livro A nova mulher, o solteiro para José de Alencar é uma espécie de aleijão social (1980, p. 177).

Assim é feito o casamento de Francisco Teodoro com Camila, por meio de Mattos, amigo de Teodoro, que propôs todos os arranjos necessários à união do futuro casal. Tais acertos colocavam em questão as vantagens financeiras que garantiriam definitivamente a realização do matrimônio.

Apesar de existirem outras meninas na família, Camila foi a escolhida por ser "a filha mais velha e a mais instruída" (ALMEIDA, 2003, p. 46). Nota-se que a autora deixa subentendido que a necessidade em casar Camila relacionava-se a sua condição civil, já que sendo a filha mais velha, não poderia permanecer solteira por muito tempo.

A mãe de Camila, com “ares de rainha destronada” (ALMEIDA, 2003: 47), cumpre seu papel, sabendo encaminhar Camila rumo a um casamento lucrativo, de modo que a filha tenha garantido seu futuro através da proteção masculina. Em alguns momentos da conversa entre D. Emília e Francisco Teodoro, pode ser percebida a nítida intenção da senhora em oferecer a filha tal qual uma mercadoria a ser apreciada: “E a mãe começou a falar com um ar de sinceridade muito demonstrativa. A cada instante o nome de Camila saia-lhe da boca como um elogio” (ALMEIDA, 2003, p. 46).

Esta idéia da mãe como uma negociadora do futuro da filha é encontrada de forma corrente na obra de Júlia Lopes de Almeida. Em A intrusa, temos a figura da personagem Pedrosa, empenhando todos os seus esforços em arranjar um casamento lucrativo para a filha. O mesmo fato ocorre em Memórias de Marta, como já citado anteriormente, porém, com uma maior preocupação quanto à reputação da filha. No romance A viúva Simões, a protagonista da narrativa, Ernestina, influenciada pelos apelos de Luciano, seu namorado, empenha-se em arranjar um casamento de valor para a filha Sara.

Percebe-se em Camila uma certa condescendência em relação à forma pela qual seu matrimônio fora arranjado. Ela mesma colocara-se diante do pretendente personificando o perfil de mulher da época: quieta e prendada.

Camila será, então, mais uma personagem na literatura brasileira do século XIX a contrair o chamado “casamento de conveniência”, tal qual Virgília, personagem de Machado de Assis em Memórias póstumas de Brás Cubas, que realiza um casamento de “maiores vantagens e menos amor” (MACHADO apud BERNARDES, 1998, p. 61). Porém, há de se notar a diferença de necessidade entre as personagens de Machado e Júlia Lopes, visto que Camila precisava casar para obter segurança para o futuro e, Virgília casa para continuar mantendo sua situação abastada.

 Apesar de haver certa empatia entre o casal, percebe-se que a união entre Camila e Francisco Teodoro encontra-se longe de designar uma relação baseada no amor. Nota-se, também, que embora haja a escolha por parte de um dos cônjuges (neste caso, o homem), o conhecimento pré-nupcial (sob constante vigilância dos pais e parentes) foi insuficiente para que fossem criados laços de amizade e intimidade.

Na verdade, mais do que o arranjo financeiro propriamente dito, a possibilidade do casamento resguarda expectativas diferentes para homens e mulheres. Os homens “desejam para esposa a mulher elegante, uma  lady, como um cartão de visitas que desempenhe profissionalmente o papel de esposa” (MURARO, 1996, p. 94).Observa-se tal fato na própria narração do romance; mesmo com o passar dos anos, Camila era apontada por todo o Rio de Janeiro como uma mulher formosa, fato tal que enchia Francisco Teodoro de orgulho e vaidade. Além disso, homens como Francisco Teodoro esperam ainda que a mulher dê a luz a um filho varão, dando continuidade ao nome da família.

Já as mulheres, segundo Simone de Beauvoir “procuram um homem que lhes pareça superior a todos os outros, pela posição, mérito, inteligência; querem-no mais velho que ela, tendo já conquistado um local de destaque na sociedade” (BEAUVOIR, 1980, p. 87). A tia de Camila, Itelvina, inveja a sorte da sobrinha ao admitir que “Mila deveria adorar o marido de joelhos! Nesse tempo já não é fácil uma moça pobre e sem proteção encontrar um marido assim!” (ALMEIDA, 2003, p. 63).

Formalizada a união, nota-se o afastamento dos cônjuges, com os anos de convivência. Ambos reproduzem socialmente uma relação de aparências, fingindo viver o casamento perfeito. Aos olhos da sociedade, este ideal familiar constituía-se mais pela presença da fortuna que pelo entendimento entre marido e esposa.

Teodoro, no início do casamento, vive relações extra-conjugais, assim como Camila, que após certo tempo de casada, acaba envolvendo-se com o médico da família, o doutor Gervásio.

A protagonista, apesar de levar uma vida humilde enquanto solteira, afeiçoa-se rapidamente ao conforto produzido pelo trabalho de Francisco Teodoro. Suas origens vão sendo gradativamente esquecidas, assim como suas visitas à casa das tias no morro do Castelo, local onde havia residido antes de casar-se com Teodoro.

A vaidade da protagonista é ainda enaltecida pela autora através de toaletes nobres, que favorecem sua graça e elegância. Por outro lado, Teodoro começa a contrastar com a figura da mulher, ao se deixar levar pelo vício do trabalho e pela ambição em constituir maiores fortunas, encarnando, segundo as palavras de Elódia Xavier, o “burguês do famoso poema de Mário de Andrade (“Ódio ao burguês”): ‘o burguês níquel, o burguês-burguês’, o que algarisma os amanhãs” (XAVIER, 1998, p. 18).

A riqueza passa a ter um duplo objetivo: além de fornecer conforto à família, também serve como uma espécie de exibição junto à sociedade. A casa da rua da Candelária, dos primeiros tempos de casados, é substituída por um suntuoso palacete em Botafogo. A casa está sempre aberta a grandes jantares, festas e recepções, onde Camila tem a oportunidade de exibir sua fina toalete e Francisco Teodoro, a fortuna, pela qual enchia sua mesa com variadas iguarias que encantavam as visitas

“Queria tudo à larga. Era uma casa a sua em que as roupas, as comidas e as bebidas atafulhavam os armários e a despensa até a brutalidade. Dizia-se que no palacete Teodoro os cozinheiros enriqueciam e que a vigilância trabalhosa de Nina não conseguia atenuar a impetuosidade do desperdício” (ALMEIDA, 2003, p. 209).

Assim, todas as terças-feiras, a conselho do Dr. Gervásio, era o dia destinado às reuniões de convidados no palacete dos Teodoro, mostrando que “o dinheiro à custa do trabalho gosta de impor-se à admiração alheia” (ALMEIDA, 2003, p. 53).

Tal procedimento era comum entre as famílias mais abastadas do século XIX, “as casas mais ricas abriam-se para uma espécie de apreciação pública por parte de um círculo restrito de familiares, parentes e amigos” (D’INCAO In: PRIORE, 2000, p. 228).

Esta também era a oportunidade da mulher em mostrar-se como boa anfitriã, e ainda por cima, demonstrar seus dotes femininos em relação à organização e o capricho com seu lar.

Segundo Maria Lucia Rocha-Coutinho, a mulher “teria um papel decisivo na elevação social do marido” (ROCHA-COUTINHO, 1994: 102).

Camila representa o modelo de mulher vaidosa. Sua conduta é alvo de recriminações de sua própria tia Joana, que a condena não só por viver uma relação adúltera, mas também pela sua falta de religiosidade: “Camila vai a missa só para se mostrar. Basta ver como ela se enfeita” (ALMEIDA, 2003, p. 66).

Francisco Teodoro prefere manter a distância necessária da família de Camila, a fim de manter não só a soberania sobre seu lar, mas também evitar maiores pedidos de favor que poderiam vir das tias, que ainda moravam no Rio. Ele já se contentava em ter que mandar grandes somas de dinheiro para Sergipe, visando o sustento da família de Mila: “Um sorvedouro, aquela família, sempre exalando lamúrias em todas as cartas, na sede insaciável de dinheiro” (ALMEIDA, 2003, p. 48).

Ainda em relação aos problemas familiares, por algum tempo Teodoro fora obrigado a conviver com o irmão de Mila, Joca, em sua opinião, um vadio, “causador de tantíssimas querelas!” (ALMEIDA, 2003, p. 49), entre ele e Camila, e perturbador da ordem familiar.

A figura intratável de Joca marca não somente o desrespeito das regras familiares, como também a irresponsabilidade paterna. Ao arranjar uma filha com uma mulher de vida duvidosa, prefere abandoná-la aos cuidados dos tios, não se preocupando com o destino que essa poderia vir a ter.

Nina, filha de Joca, não é considerada da família, principalmente por ser fruto de um amor venal. Ela não passa de uma serva, cumpridora dos seus deveres domésticos, estando sempre disposta a cuidar, proteger e vigiar, principalmente as crianças.

Por ser considerada como uma bastarda aos olhos da sociedade, Nina permanece solteira. Aos vinte e cinco anos, apaixonada pelo primo Mário, e invisível dentro do lar, ela não vê saída para sua vida, a não ser continuar presa aos laços daquela família, que bem ou mal, a havia acolhido ao ser abandonada pelo pai.

O amor platônico pelo primo é apenas mais um dos motivos de sua amargura. Resignada, ela aceita o seu destino, sabendo que nunca teria condições financeiras ou morais de realizar o sonho do casamento por amor com alguém tão importante como Mário.

Teodoro chega a cogitar a possibilidade de casar Nina com Capitão Rino, visto que ambos eram humildes e possuíam um passado problemático. Se a sobrinha era uma mera bastarda, Rino era órfão e, em condições muito desfavoráveis, pois sua mãe havia sido assassinada por motivo de adultério.

O problema em ter uma filha solteira é também motivo de desgosto para o velho Motta. Ao ver a filha chegar aos trinta anos, ele chega a bajular um dos empregados da casa, Joaquim, com a intenção de casá-lo com sua filha, Emília.

Por outro lado, Júlia mostra-nos uma outra visão em relação a mulher celibatária, através da personagem Catarina, irmã do Capitão Rino. Considerada por Francisco Teodoro como portadora de idéias muito progressistas para uma mulher da época, ela decide se preservar solteira, muito em parte pela observação do fracasso que havia sido o casamento de seus pais.

A jovem mostra-se a favor da emancipação da mulher, fato que desagrada Francisco  Teodoro com seu pensamento extremamente positivista. Ao ser questionado por Catarina sobre a falta de instrução comum nas mulheres da época, Teodoro é enfático ao admitir que as mulheres  não conhecem o mundo. Começa assim, a proferir seu pensamento sexista, defendendo uma  posição subordinada para as mulheres:

“Minha senhora, eu sou da opinião que a mulher nasceu para ser mãe de família. Crie os seus filhos, seja fiel ao seu marido, dirija bem a sua casa, e terá cumprido a sua missão. Este foi sempre o meu juízo, e não me dei mal com ele, não quis casar com mulher sabichona” (ALMEIDA, 2003, p. 132).

O interessante nessa cena é que nem Mila ou Ruth contestam a visão de Francisco Teodoro. Em parte, podemos considerar o comportamento de ambas como parte do medo feminino em contrapor-se às opiniões do chefe da família. Por outro lado, percebemos a falta de instrução feminina, impedindo a mulher de questionar os conceitos masculinos e, conseqüentemente, de refletir sobre a sua posição na sociedade. Este comportamento padrão reflete o pensamento de Francisco Teodoro, segundo o qual “é nas medíocres que se encontram as esposas” (ALMEIDA, 2003, p.132).

É também por causa dessa concepção machista, que Catarina prefere manter o seu celibato. Apesar de viver com a madrasta, com quem mantém um sentimento não muito amistoso, ela continua a levar sua vida, prezando sua liberdade. Apesar de suas idéias avançadas, a irmã de Rino não foge muito ao padrão da mulher da época. Acaba, pois, cumprindo papéis femininos ao se afeiçoar a certas prendas domésticas como a jardinagem e a costura, pois “o que mais havia de fazer?” (ALMEIDA, 2003, p. 201).

 Por fim, existe um aspecto extremamente positivo no relacionamento de Catarina e Rino: ambos possuem a mesma ideologia e partilham das mesmas tristezas outrora sentidas na infância, com o assassinato da mãe pelo pai. Sentimos uma relação de profunda igualdade entre eles, apontando para uma mudança da visão padronizada que separava os sexos.


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Fonte:
Viviane Arena Figueiredo: Júlia Lopes de Almeida: O Adultério Feminino em A Falência. (Dissertação (Mestrado em Letras Vernáculas, sob orientação de: Profª. Drª. Elódia Xavier) — Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.

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