05/01/2014

Os Sertões, de Euclides da Cunha

 Os Sertões de Euclides da Cunha
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Os sertões: Fato e Fábula


Em continuidade, tomam-se as ideias elaboradas em Fato e Fábula (1999), de Lourival Holanda. Não é a intenção dissecar todo o texto no qual se vê o senso aguçado para a crítica que expressa seu autor. Trata-se na verdade de selecionar alguns pontos postulados e que se fizeram importantes para que fique melhor delineado o debate sobre a reescritura como ressignificação, além de promover a formação que aqui se desenha da concepção do gênero da obra euclidiana.

Pode-se dizer que o eixo da crítica elaborada por Lourival Holanda sustenta a ideia de que antes como palavras destinadas a meras anotações para um diário de guerra, o desejo da escrita, conjugado ao distanciamento dos fatos históricos, transfigura o real para o domínio da fabulação. Existiu o fato no registro de testemunho, mas é pelo movimento de criação literária, trabalho incessante com a linguagem, que o que se passou diante dos olhos do jornalista assumirá diverso significado: a reviravolta que o narrador constrói, depois de ver fracassadas as esperanças do novo governo, só encontra espaço para sua inscrição nas páginas do livro porque agora é concebida pela via fabulística. O autor postula que a fábula permite a ficção do fato, e este foi o meio possível para arrefecer a complexidade do real. O que são considerados como fantástico, imaginoso, fantasmal, sobrenatural a partir da totalidade discursiva de Os sertões entram em cena para dar conta de acontecimentos diante dos quais a linguagem objetiva e realista se mostrou insuficiente para fazêl-lo Aliada a tudo isso está a combinação de formas históricas, psíquicas e literárias, “variante da poética della maraviglia, de rasgo tão tipicamente barroco” (1999, p. 15).

É com bastante rigor crítico discutido que o que era antes “inteireza ideológica” Desconstruiu-se com o investimento lingüístico e com arranjo de imagens, caros ao modo literário de se apresentar discursivamente. Todo leitor é capaz de apontar no ato de leitura elementos recorrentes da aliteração, de construções verbais equiparadas a inteiros conceitos ─ como exemplifica o crítico a partir do trecho “a caça caçava o caçador”─, de anamorfose, quando a cena ou o objeto que se coloca à sua frente expõe sua imagem distorcida, tornando-se compreendida apenas se vista de outro ângulo. Aspectos estes capazes de conduzir à constatação de que o texto habita indubitavelmente a dimensão do literário. No entanto, deve-se ater diante da questão da não separação no estudo de Lourival Holanda entre a literatura e a ficção.

Ainda se vê como prática entre os trabalhos críticos atuais a indistinção entre história e ficção fomentada pelas belasletras por estas ainda serem coordenadas pelos direcionamentos da retórica desde o Renascimento até o éculo XVIII. O que Luiz Costa Lima discute em História.Ficção.Literatura é que o termo literatura alastra-se por cima dos gêneros ficcionais, “sem se conceber que a história neles caiba ─ o que implica simplesmente reativar a distinção feita pelos antigos romanos entre res ficta e res facta” (2006, p. 382). Isto não faz com que sejam excluídos do seu domínio textos não ficcionais, como as autobiografias e as crônicas. Mas é imprescindível o esclarecimento de que a literatura torna-se desobrigada de associação, principalmente, a três vias: a primeira configurada na atualização do imaginário, a segunda seria o cuidado com a linguagem e, por fim, o reconhecimento do ficcional (LIMA, 2006). O ponto frágil em Fato e Fábula está em limitar os aspectos analisados, fazendo com que restritamente apareçam as figuras e os recursos recorrentes em textos literários e ficcionais, como ironia, vazios súbitos executados em seguida aos cortes narrativos, entre outros já citados no parágrafo anterior. Sua análise prioriza majoritariamente os aspectos formais do discurso de Os sertões, simplificando uma questão que estava muito mais próxima da complexidade, porque envolvida por um panorama social e político regido pela crença no progresso por meio da ciência. É importante estar como ponto basilar das discussões acerca do livro de Euclides da Cunha o fato de que a legitimidade do discurso se fazia por razão de estar conformada com a doutrina científica. Os sertões se constituíram como símbolo, vale dizer, muito bem aceito pela comunidade de sentido formada no início do século XX, porque condizia moral e eticamente com a superioridade científica, mais até do que com o regime republicano, uma vez que a política estaria definida como parte dentro do processo coordenado pelas leis da evolução: a forma republicana era vista como naturalmente superior à monarquia.

Como já mencionado acima, o que foi antes registrado como acontecimento da realidade da batalha de Canudos, transcorrido seu tempo, se instaura agora como ficção por se guardar já longe do caráter imediato do desenvolvimento factual passado diante dos olhos de um correspondente de guerra. É certo que não se deve esquecer que o discurso registrado como mnemônico dispõe da pulsão criativa de seu autor, no entanto, tal pulsão em nada implica a caracterização do texto produzido como ficção.

A todo tempo no decorrer do estudo sobre Fato e Fábula percebe-e a referência aos termos “ficção” e “imaginário”. Tais referências se encontram apenas indiretamente discutidas. Indiretamente porque não há discussão dos conceitos possivelmente por inferir a compreensão, suscitando pontos de desacordo teórico em comparação ao que aqui será postulado.

As ideias a serem desenvolvidas ao longo do trabalho, estando em foco a reescritura como ressignificação, estão convencionadas com a distinção que Wolfgang Iser (2002) executa entre realidade, ficção e imaginário. Esta relação ternária isenta o leitor da admissão do “saber tácito” destinado ao reducionismo da evidência de que realidade é aquilo que não é ficção e viceversa. Ao invés, cabe primeiramente conceber que o discurso ficcional comporta sim realidade, como já dito antes. As realidades inseridas nos textos de ficção não se reproduzem igualmente ao seu funcionamento na vida. Transpostas aos textos são dasautomatizadas, deslocadas do estado de referência direta com o mundo, localizadas em seguida no imaginário da obra. Os atos de fingir de um texto ficcional, com seus processos de seleção de elementos do real, de combinação desses elementos e do desnudamento da ficção, implicam na fixação de um objetivo e isto faz com que o imaginário, por ter que abarcar agora as intenções do texto, se coloque como diverso das formas a que está sujeito dentro da experiência vivencial do indivíduo, em idealizações, projeção de ações, ou medo de uma dimensão fantasmal. Sendo própria do domínio do imaginário sua caracterização como algo amorfo e indefinível, posterior à transgressão de limites no ato de fingir, ele se desgarra de sua posição incapaz de ser nítido, para receber seu predicado de realidade e daí, obviamente, realizar-se. Tem-se agora a irrealização do real e a realização do imaginário.

Lourival Holanda aponta em Os sertões a recorrência de elaboração narrativa, concernente a determinados acontecimentos, carregada da eloqüência da língua de que fazia uso Euclides da Cunha. Em muitas dessas passagens o narrador carrega nos efeitos das palavras o que vai descrever sobre a atuação do jagunço no combate:

[...] à beira do fosso terrível e atirando, atirando, atirando sempre, despiedado, terrível, demoníaco, num duelo de morte contra mil homens!

No tangente a este trecho específico, o crítico explica:

Temor e atração do demoníaco: a profusão, o efeito de multiplicação e complexidade do real. Demoníaco é, nessa configuração, aquilo de que não se tem domínio, sob um nome ou um conceito. Daí porque Lope de Vega ou Barleus vão ver como demoníaco ou/e anômico o espaço novo da América. Aqui o fascínio pela alteridade vem no registro da estranheza.
O imprevisível alça o real à dimensão de ficção ─ porque escapa ao comum da convenção. Aos jagunços a queda final de Canudos “aparecialhes aos olhos como se fora uma ficção estupenda” (HOLANDA, 1999, p. 29).

Vê-se que neste caso o imaginário em questão se mostra de outra forma: trata-se de uma construção que o sujeito executa comumente quando diante de um fenômeno diverso daqueles vivenciados ou testemunhados normalmente. O narrador não consegue conter o espanto frente aos esforços surpreendentes que o jagunço pratica contra mil homens armados. É antes aqui o medo do inesperado, do que a preparação de seleção e combinação de elementos para que no ato de fingir façam com que o imaginário se realize.

É certo que o artifício de burilar a linguagem está em todo texto, no entanto se  mostra mais exposto exatamente nos trechos em que o arcabouço científico não se coloca como suficiente para que sejam descritas as cenas da batalha. Ou seja, como justificar pelas leis deterministas biológicas, raciológicas, que aquele povo bárbaro, distante da moderna vida social de avanços técnicos, resistia fortemente, legitimando sua grandiosidade bélica nas três primeiras expedições e estendendo a teimosia à rendição na quarta e última investida dos militares? O que Euclides opera para descrever o imprevisível aos seus olhos está vestido de construção retórica, mas que não toca na construção ficcional. O discurso anteriormente fechado e inteiro, munido também para ir ao encontro da batalha contra os “bárbaros” sertanejos, agora pelo distanciamento se encontra minado de lapsos, de certezas decaídas. Não só o imprevisível exige que os espaços vazios deixados pela ciência sejam preenchidos com belos arroubos de linguagem, como também o que se apresenta como desconhecido. É mencionado que o espaço da América, por fugir dos domínios conceituais europeus, por se formar como outra realidade diante de suas observações era encarado como demoníaco.  Por conta do signo da ficção ter sofrido o veto discursivo porque não obedecia aos parâmetros de verdade, passível de ser verificável, as crônicas de viagem se encontravam dentro de um campo social complexo. Como estava demasiadamente distante do leitor aquele mundo representado nos relatos, tornava-se-lhe impossível atestar como verídica ou não uma realidade totalmente diversa da sua representada por meio dos signos lingüísticos. No entanto, isto não faz com que sejam denominados de ficcionais os documentos de viagem. Como fundamentou Luiz Costa Lima em seu artigo “O Transtorno da Viagem”, o excesso de linguagem para a caracterização das coisas dispostas nessa inédita realidade esteve proposto como um meio de despertar no leitor o interesse e o convencimento necessários para que do discurso se fizesse a defesa de uma verdade. Afinal, as coisas descritas de fato existiam. Com a ressalva de que foram carregadas de adjetivações para significar o deslumbramento diante da alteridade (1992).

A problemática se prolonga. O espaço reservado à ficção

surge como uma instância crítica que não pretende propor uma verdade outra, mais densa e mais abrangente que a verdade que entretanto questiona [...] a crítica processada pelo ficcional atua [...]
ressaltando os pontos fracos e insuficientes da verdade constituída (LIMA, 1992, p.545).

Sendo Os sertões uma estrutura discursiva simbólica que encenou o desvelar do novo sistema de poder, como já dito anteriormente, sua diferenciação de um discurso ficcional se fixa exatamente em outra questão: a organização em que é posto seu discurso apóia-se numa vontade de verdade, sempre salvaguardada por um saber instituído. Vontade de verdade, que como coloca Foucault, relacionada “ao modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído” (2006, p.17). Este saber era a ciência: cabia a esta área do conhecimento propagar a divisão de padrões sociais mediante as ações que obedeciam às teorias biológicas e de raça. Um texto propriamente de ficção escapa da prática de selar acordos com o poder estabelecido, principalmente se sua constituição estiver enredada na construção de um antidiscurso da ideologia. Mesmo pinçando aspectos que sinalizem a revisão inscrita no discurso euclidiano, estes ainda se viam envolvidos pela dimensão científica, reguladora da comprovação dos fatos. E assim foi caminhando a construção de um livro que passou a ser visto como obra fundante da identidade nacional.

Bom proveito se encontra em continuidade na observação da disposição de vazios figurativos em alguns capítulos da obra. A análise rodeia um dos últimos momentos da narrativa, o que toma por título “Canudos não se rendeu”, com atenção maior para o uso das reticências. Assim está em Os sertões:

Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No alto, a par de uma perspectiva maior, a vertigem...(1995, p. 513).

Em Fato e Fábula está a reflexão:

O dissenso euclidiano ─ suas frustrações com o rumo da república ─ se diz no encarecimento da catástrofe de Canudos [...] É pois possível que as figuras do vácuo, das reticências reenergizando a ordem do discurso, do hiato, do parêntese, operem uma exteriorização de um processo interno. A ser assim, o que foi interditado a nível discursivo, volta refigurado aqui (1999, p.77).

Não há negação de que verdadeiramente as reticências e o silêncio por elas provocado que fica agora ressonante no leitor diante das últimas páginas fazem parte da frustração pelo recebimento de uma “herança inesperada”, para falar da república, como desabafa o narrador. No entanto, a privação discursiva pela qual passou o narrador quando ainda correspondente de guerra, antes do afastamento do quadro a ser contemplado, não pode ser encarada quando livre, para sua mais alta expressão no seu direito de retorno narrativo, como refigurada no sentido do nível ficcional. A refiguração como signo da ficção seria abarcada pelo imaginário quando se realiza no fingimento. O imaginário em Os sertões não encontra realização porque não foi determinado a partir da reciprocidade entre sua dimensão, o real e aquilo que é fictício.

As reticências no texto atuam como instrumento retórico para a pontuação de um
discurso que agora abrigava a sensibilidade e o estigma, vistos também pelo alargamento da perspectiva que de tão vertiginosa convida o leitor ao fechamento do livro, no intuito de livrálo da imagem retardada do crime.

“A complexidade estrutural de ‘Os sertões’ metonimiza uma dada insatisfação com a realidade social” (HOLANDA, 1999, p. 86). Com efeito, esta questão central parece assinalar o núcleo de acordo da crítica de onde, seguidamente, partem as diversidades teóricas. Mas é certo que a análise da obra conserva este argumento desde as primeiras recepções do texto até as mais atuais reflexões sobre sua estrutura narrativa. No entanto, não será endossado aqui o ponto em que se vê que a descrição da realidade factual com tratamento polido de linguagem demude para o ficcional na representação desviada da corrente discursiva oficial, quando em outro nível é a própria obra de Euclides que opera ideologicamente seu status de verdade, atuando, entre outras maneiras, como sistema de exclusão. Houve a outra visão do passado quando sinalizou o cumprimento do crime pelas mãos dos oficiais. Porém, essa visão estava sustentada pelos mesmos artifícios marginalizadores demarcados nas variações de tipos raciais e nas oscilações entre o bom senso e a loucura.

Sendo assim, Fato e Fábula constrói uma via interpretativa que sobreleva o revisionismo do narrador de Os sertões por meio do trabalho com a linguagem estendida por uma visão de mundo barroca. A ficção se mostra por conta do campo do depois, pela fabulação do acontecimento desprendido do documento e ecoado apenas pelo silêncio dado como resposta a um discurso devedor da compreensão de uma realidade social.  Pensar a reescritura como ressignificação proporcionará repensar o sentido desse revisionismo através da escrita ficcional de A casca da serpente. Cabe refletir até que ponto este aspecto de reviravolta se configura como um ponto engessado, porque inseparável da ideologia positivista de fim de século, e assim insuficiente para redimir o discurso do narrador, ou como traço estimulante, por onde justamente a releitura da obra se apóia para então se reerguer pela lógica da suplementação.


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Fonte:
Rebeca Santos de Amorim Guedes: “Os Sertões e a casca da serpente: a reescritura como ressignificação”. (Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco como requisito para a obtenção do titulo de Mestre em Letras/Teoria da Literatura. Orientador a : Sônia Lúcia Ramalho de Farias). Recife, 2010.

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