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O endereço de Os Lusíadas
“Empurrar a porta aberta", de uma certeza, que há três séculos e meio se discute..., quando a evidência nos está, desde muito, saltando aos olhos seria obra descuriosa, se tratar de novo o assunto não nos permitisse estudar as razões “artísticas" e "éticas", de duas ou três, das duas grandes injustiças de Os Lusíadas... São os casos de Vasco da Gama, de Bartolomeu Dias e de Fernão de Magalhães.
Começam os Portugueses sua vocação marítima. A fé levá-los-ia à terra de Infiéis, perseguidos até aí, depois de expelidos da Península:
E assi não tendo a quem vencer na terra
Vai cometer as ondas Oceano. (II 48.)
É D. João I:
Este é o primeiro rei que se desterra. (II 48).
Celta é tomada em 1415; o infante D. Henrique armado cavalheiro na Mesquita moura, transformada em Igreja cristã, recebe aí a iniciação das noticias e fábulas, de terras a descobrir, na costa da África, caminho talvez das Índias, e além dessa, da África ocidental, para as bandas da Etiópia, do lendário Preste João das índias, cuja piedade seria arrimo das pretensões possíveis dos Portugueses: a Fé de D. João I teria duas filhas heróicas, na Ambição e na Curiosidade do Infante de Sagres.
Porto Santo foi descoberto em 1418; a ilha da Madeira em 1419. Em 1432, completava-se a descoberta do arquipélago dos Açores. Em 1454, dobrava-se o Cabo Bojador. A malograda expedição de Tanger, em 1437, se arrefece o ardor militar de D. Henrique, não diminuiu em nada suas aspirações marítimas. Para diante!
Em 1443, é vingado o Cabo Branco. O Senegal alcançado em 45; em 47 o Rio Grande; em 48 a Serra Leoa. Em 56 é a vez das ilhas de Cabo Verde; em 62 é a Costa de Guiné. Quando, em 60. morre o infante, a impulsão para o ainda desconhecido seria irreprimível, pois 1.700 milhas geográficas, de Cabo Não, ao Cabo Mesurado, ficavam reveladas ao mundo. O sonho do caminho marítimo das índias realizava-se...
Em 71 é a Costa da Mina; em 84 é o Zaire ou Congo; em 1486, finalmente, Bartolomeu Dias, com duas pequenas caravelas, alcança o Oriente, sem o saber, em meio de uma tempestade, e, só tornado, descobre que passara a meta antártica do continente Africano que ele chamou o Cabo das Tormentas, e que Dom João II, que -via mais longe, na aspiração, mudou em Cabo da Boa Esperança...
Prosseguia o sonho Português e este era o seu momento capital.. Agora, achado o caminho, era só alcançar a índia.
Camões que não esquece D. João I, como vimos, rende a sua homenagem a D. Henrique: a fama nos mares o pubrique por seu descobridor" (VIII 39), tendo já falado das "novas ilhas", "e os novos ares que o generoso Henrique descobriu". (V. 4) De Bartolomeu Dias, porém, nem mesmo o nome, nem a façanha. Apenas "a meta austrina da esperança boa" (IX 16), uma metáfora para designar o limite sul da Boa Esperança, personificado anteriormente no Adamastor,
Eu sou aquele oculto e grande cabo
A quem chamais nós outros Tormentório (V. 50.)
"Vós outros", os Portugueses, como são eles a quem se refere, na ameaça:
Aqui. espero tomar se não me engano
De quem me descobriu suma vingança (V.44)
E ainda quando começam as novas terras descobertas pelo Gama, além das que ficariam atrás e foram o limite de Bartolomeu Dias, diz o Poeta, pelo navegador:
Aquele ilhéu deixamos onde veio
Outra armada primeira que buscava
O Tormentório Caba, e descoberto
Naquele ilhéu fez seu limite certo (V. 65.)
"Outra armada anterior"... nós teríamos dito: a de Bartolomeu Dias. Com tendência a individualizar o esforço coletivo, Camões não o fez, por um propósito não dissimulado em todo o seu poema, em que celebra aos Lusitanos ou Lusíadas, de preferência, a alguns deles, nominais heróis dos feitos de todo um povo. Mas, não o fez aqui, principalmente, pela mesma razão que tendo de cantar um grande feito marítimo, que havia de ser o episódio central de uma epopéia nacional, seria diminuir o interesse deste, comemorar individualmente os outros heróis marítimos, que o precederam e lhe preparar a glória.
Por isso Gilianes, Affonso Gonçalves, Nuno Tristão, Álvaro Fernandes, Pedro de Cintra, Sueiro da Costa, Azambuja, Diogo Cão, Aveiro, Bartolomeu Dias... e outra e outros, não são mencionados, sequer sem que a injustiça se faça, pois que estão incluídos nesses Lusíadas, que se cantam desde os primeiros versos da epopéia. Representando em Adamastor o maior perigo natural da travessia, aberta a porta do Oriente com a transposição desse cabo de Boa Esperança, ficaria ao Gama apenas o que ficou — acabar de realizar o sonho Português, de chegar, as Índias, partidos de Lisboa, os Lusíadas. Aliás, isso mesmo não dissimularia o Poeta, reduzindo o Gama às proporções justas da Historia.
A injustiça relativa a Bartolomeu Dias parece-me, pois, obrigada por um recurso de arte, o de não diminuir o feito central do poema, o pretexto mesmo da epopéia, que essa celebraria apenas, e tudo, os Lusíadas.
O caso de Fernão de Magalhães não parece apenas isto, mas o de uma severidade patriótica: por omissão, Bartolomeu Dias; por demasiado rigor
O Magalhães, no feito com verdade
Português, porem não na lealdade (X. 140.)
Camões compreendeu que à gloria Portuguesa não seria insensível dar a volta á terra, completando o período do mundo, ainda que não fosse mais que por este verso imortal:
E se mais mundo houvera lá chegara (IX 14.)
E compreendeu tanto, que não recuou diante de um anacronismo... Júpiter invocado por Vênus, durante a viagem do Gama, em 1497, refere-se ao estreito de Magalhães, só descoberto em 1520:
Que nunca se verá tão forte peito,
Do Gangético mar ao Gaditano,
Nem das Boreais ondas ao Estreito
Que mostrou o agravado Lusitano (11 55.)
Retenha-se esse "mostrou", passado, e esse "agravado Lusitano", que é a mesma linguagem de Tétis, quando, desta vez, profetisa:
Mas é também razão que, no Ponente,
Dum Lusitano um feito inda vejais,
Que, de seu Rei mostrando-se agravado,
Caminho há-de fazer nunca cuidado. (X 138)
Que a façanha era bem digna de Lusíadas está na insistência:
Ao longo desta costa que tereis
(isto é, desta costa do vossa do Brasil, que será, depois de 1500)
Irá buscando a parte mais remota
O Magalhães... (X 140)
E mais avante o Estreito que se arreia
Co nome dele agora, o qual caminha
Pera outro mar e terra que fica onde
Com suas frias asas o Austro a esconde. (X 141)
(este "agora" de Tétis, é anacrônico, como o "mostrou" de Júpiter)
Depois, outro sinal dessa importância, é que o Poeta não esquece nunca de nomear ao Magalhães, devidamente de "Lusitano", e até com a justificativa da pecha que lhe imputa: "agravado Lusitano", e por duas vezes (II 55 e XI 38)
É o epíteto de João de Barros. "agravado del-Rei (Décadas III, liv. C. cap. VIII) e virá a ser Gaspar Corrêa, nas Lendas da índia (t. II p. II). Resumindo os autos do processo.... "o qual Fernão de Magalhães indo ao reino alegando a el-rei seus serviços e pedindo em satisfação que lhe acrescentasse cem réis em sua moradia por mês, o que lhe el-rei denegou, por lhe não cair em graça, ou porque assim estava permitido que havia de ser; Fernão de Magalhães disto agravado, porque muito pediu a el-rei e ele o não quis fazer, lhe pediu licença para ir viver com quem lhe fizesse mercê, em que alcançasse mais dita que com ele. El-rei lhe disse que fizesse o que quisesse, pelo que lhe quis beijar a mão, que lhe El-rei não quis dar".
Injustiça e severidade que iriam dar a Castela a glória da circunavegação do globo. A Camões, tais deslizes do poder real não deviam ser estranhos para não falar das próprias injustiças que sofrera, aquelas que eram sorte geral:
Culpa de Reis, que às vezes a privados
Dão mais que a mil que esforço e saber tenham. (VIII. 41.)
Como, apesar disso, de reconhecer a qualidade de "agravado", exaltando a proeza, diz que o herói era, "no feito, com verdade Português", "porém, não na lealdade"?
Evidentemente, uma injustiça. É que, para Camões, acima dos agravos dos reis injustos, estava a Pátria, sem culpa, e que se deve servir sem reserva e sem infidelidade, ainda a provocada: o homem não terá nunca razões contra o patriota; a deslealdade contra Portugal, implícita num serviço, e glorioso, a Castela. Foi causa da severidade.
Injustiça oposta seria atribuir o Poeta a Vasco da Gama toda a glória portuguesa das navegações, por havê-las completado: o que evidentemente é sem razão. Como a Odisseia, a Eneida, o Orlando Furioso, a Messiada, á Henriada, o poema poderá ter um endereço pessoal; poderá ter o do fim a atingir, perdido ou recuperado, ou evocado, como a Ilíada, a Parsália, a Jerusalém libertada, a Divina Comedia, o Paraíso perdido, a Lenda dos séculos: o poema de Camões poderia chamar-se "Vasco da Gama", ou "As índias". Não, — chama-se, inconfundivelmente, — "Os Lusíadas".
Não precisaria de mais, se não fosso próprio do caráter humano a contradição, até á verdade. Não é de um camoniano e dos maiores, de Epifânio Dias, isto que clama á razão: "Negar que Vasco da Gama é o herói dos Lusíadas e falar de um "herói coletivo" é fingir desconhecer o valor técnico do termo herói, e cerrar os olhos á evidencia"!
Entretanto, na página anterior, que o seu mau humor contrariante, até de si mesmo, inspiraria a este sábio, fugira, a esta evidencia, repetindo o que vinha sendo visto de longe: "Pondo em efeito o intento de cantar:
O peito ilustre Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram.
Felizmente, o que esse lusíada contraditório vê mal, outra grande autoridade, e de estrangeiro, não vacila: "O poema dos Lusíadas contém, de fato, diz D. Carolina Michaelis, a historia poetizada das obras gloriosas do povo inteiro, tanto por terra como por mar. A confirmar esta definição temos declarações formais do poeta. Logo no intróito: "As armas e os barões" (I, 1). Barões no plural. E não Arma virumque cano. Depois: "Que eu canto o peito ilustre lusitano (I 3).. Leitores discretos assim o entenderam em todas as idades. O censor da primeira impressão, Padre Bartolomeu Ferreira fala em dez cantos "dos valorosos feitos em armas que os Portugueses fizeram em Ásia e Europa!"
Cita a insigne camonista outros documentos. Para a unanimidade não precisaríamos mais que ver esse "herói coletivo". Os Lusíadas apontados como a razão do poema por um Souza Botelho, na monumental edição de 1817, e por um Whielm Storck, nesse outro monumento a "Vida de Camões", nos nossos dias...
Camões fez entretanto tudo para ser entendido. O endereço patriótico, tradicional, e o profético, nacional, antes que dinástico ou pessoal, mil e uma vezes está apontado no poema. Quando a Vasco da Gama, bem que seja imensa a honra que lhe confere, pessoalmente, há sombras no esboço de sua figura, como se o Poeta tivesse querido, e quis, marcar que ele ou outro lusíada, contanto que fosse lusíada, seria capaz de levar a cabo a empresa irresistível de conduzir os Portugueses ás Índias.
O final do Canto V no-lo revela, com meridiana clareza. 'Sim "estas navegações que o mundo canta", são inferiores, certo, a esta", "que o céu e a terra, espanta" (V 94); sim, mas ao invés, os outros tem tido reis e heróis, que sabem prezar "a quem os faz cantando gloriosos" (V. 82).. Os nossos não, duros e robustos apenas, não tem mais fama, porque não prezam as artes, e sem Virgílios e Homeros, não há Enéas e Aquiles (V. 98). Assim também seria, e o Gama seria esquecido, se não fora o amor da pátria que fez a Camões cantar:
Às Musas agradeça o nosso Gama
O muito amor da pátria, que as obriga
A dar aos seus, na lira, nome e fama
De toda a ilustre e bélica fadiga (V. 99.)
pois que ele, nem os seus o merecem tanto, incapazes de estimarem essa gloria:
Que ele, nem quem na estirpe seu se chama,
Calíope não tem por tão amiga
Nem as filhas do Tejo, que deixassem
As telas d'ouro fino e que o cantassem. (V 99)
Mas, não importa:
Porque o amor fraterno e puro gosto
De dar a todo o Lusitano feito
Seu louvor, é somente o prosuposto
Das Tágides gentis, e seu respeito. (V. 100.)
"É somente" e na boca dele próprio, o Gama, define o Poeta:
Que ele não era mais que um deligente
Descobridor das terras do Oriente. (VIII- 59.)
Injustiças, para menos ou para mais; a Bartolomeu Dias, a Fernão de Magalhães, a Vasco da Gama; é culpa somenos, pois se trata apenas da Pátria, que isto é tudo: "é somente" o que existe para um lusíada, tal qual Camões, ainda à revelia dela, com a ingratidão dela, não importa:
amor da pátria, não movido
De prêmio vil, mas alto e quase eterno (1.10.)
Essa nobreza do Poeta tem tal sublimidade, que se duvidarmos, blasfemamente, que o herói cantado nos Os Lusíadas como já o fizeram, com outra intenção, —, é o Povo Português, só um outro endereço condigno haveríamos de adotar, tomando o Poeta pelo Poema.. "Luisiada"... de Camões.
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Fonte:
Afrânio Peixoto: Revista “América Brasileira” : resenha da actividade nacional, anno 3, n. 34, out. 1924, disponível digitalmente no site da biblioteca: Brasiliana - USP
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