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A desdêmona ambígua: Leonor
de Mendonça, de Gonçalves Dias
“A complexidade
patológica de D. Jaime, a doçura estática e trêmula de Leonor, a deliciosa cena
familiar na casa dos Alcoforado, a função de contraponto naturalístico de uma
Paula - são coisas de tragediógrafo nato. E o último ato (a batalha de Leonor
contra a morte) faz arder, em um fogo só, realidade e símbolo, psicologia e
abstração, como só as páginas deveras eternas do teatro conseguem.” Ruggero
Jacobbi
Enquanto Martins Pena (assim como, depois, Joaquim
Manuel de Macedo) se concentrou no potencial cômico de Otelo e na própria
representação deste por João Caetano, Gonçalves Dias afigura-se como um dos primeiros
leitores do Otelo shakespeariano no Brasil, e usa desta fonte para compor a melhor
de suas peças, quiçá de toda a literatura dramática brasileira do século XIX194, que
traz por título o nome da protagonista. O drama em três atos e cinco quadros de
1846 descende de Shakespeare em um período em que a versão de Ducis ainda era a
que corria no Brasil, por conta principalmente da marcante interpretação de João
Caetano – para quem, aliás, Leonor de Mendonça foi escrita,
e por quem foi rejeitada (a peça só estrearia no Rio de Janeiro com a encenação
do Teatro do Estudante do Brasil, dirigida por Esther Leão, e em São Paulo em
1954, com a montagem do Teatro Brasileiro de Comédia.
Gonçalves Dias foi buscar a inspiração para seu enredo
em um fato histórico português ocorrido em 1512, quando D. Jaime de Bragança
matou sua esposa Leonor sob pretexto de adultério, apesar do testemunho do
padre confessor da esposa, que defendeu sua inocência. O fato, narrado na História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Vida do Duque
D. Jaime, deixava margem à ambigüidade – teria sido Leonor
inocente ou culpada?
Na peça, tal enredo é desenvolvido da seguinte forma: no
primeiro ato, em uma conversa entre Leonor
e sua criada Paula, conhecemos o caráter terrível do duque e o interesse do
jovem Alcoforado pela duquesa. Descobrimos também que o moço roubara de Paula uma
fita de cetim pertencente a Leonor, que ordena à criada que a recupere.
Alcoforado vem pedir a proteção da duquesa, que promete
interceder junto ao marido para enviá-lo à África para lutar por Portugal. Tendo
tomado de volta sua fita do barrete do rapaz, acaba dando-lhe a mesma novamente
como uma memória. Alcoforado joga-se aos pés de Leonor no momento em que o
duque é anunciado. O jovem sai e Leonor comenta que fora imprudente. Mesmo assim,
fala ao marido sobre a partida do moço. D. Jaime fala de seus sofrimentos
anteriores, de cujas lembranças não consegue escapar. Aflito, resolve sair para
uma caçada, a fim de acalmar-se. Leonor concorda em acompanhá-lo.
O segundo quadro traz a cena após a caçada, na qual Alcoforado
salvara a vida de Leonor abatendo um javali. O duque insiste que a esposa
agradeça seu salvador remunerando-o como lhe aprouver. D. Jaime tem um acesso
de terror ao ver um copo d’água, atemorizando a duquesa. Ele insta Leonor a
partir para a corte antes que seus ataques culminem em desgraça. A seguir, Alcoforado
minimiza seu feito frente à duquesa, e fala de seu sofrimento por ela e de seus
maus pressentimentos. Mesmo assim, ousa pedir a ela uma entrevista a sós para
abrir seu coração. Leonor acaba concordando, e diz que mandará notícias pela
criada.
O segundo ato mostra a cena familiar, na qual
Alcoforado, em casa, conversa com o irmão, a irmã e o pai, preparando-se para
sair à noite mas negando-se a revelar aonde vai. O pai o questiona mas acaba
compreendendo, e o jovem sai levando a espada do irmão. Entretanto, no palácio,
o criado Fernão vem advertir o duque sobre uma carta de Leonor a Alcoforado marcando
um encontro. D. Jaime, em cólera, prepara uma armadilha e ameaça Fernão, caso
tudo não seja verdade.
No terceiro ato, Alcoforado chega ao quarto de Leonor e declara
seu amor, sabendo que vai partir e que deve morrer em combate. A duquesa expressa
um amor “de mãe”, desvelado, mas o diálogo é interrompido por Paula que avisa
que há homens armados pelos corredores. Leonor faz o jovem prometer que não lutará
contra o duque, que os descobre e os acusa. Alcoforado conforma-se em ser
punido mas tenta convencer D. Jaime da inocência de sua esposa. O duque
sumariamente o condena à morte pelas mãos de um escravo.
Na última cena, Leonor, presa em seu quarto, reflete sobre
a sua situação. Paula lhe traz os filhos, e logo depois o padre Lopo Garcia vem
confessá-la. Leonor conta todo o ocorrido e seus sentimentos para com o duque e
o Alcoforado. Quando D. Jaime chega, o padre afirma que Leonor é inocente antes
de sair. A duquesa tenta argumentar com o marido, em vão. Enfim, todos os
servos do castelo se recusam a matar Leonor, seguindo a recomendação de Lopo Garcia.
Por um momento Leonor crê na sua salvação, mas o duque decide ser ele mesmo o
executor, arrastando-a para fora da cena.
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Fonte:
Fonte:
Daniela Ferreira Elyseu Rhinow: “Visões
de Otelo na cena e na literatura dramática nacional do século XIX”.(Tese
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, da Universidade de São Paulo,
para a obtenção do título de Doutor em
Letras. Orientador: Prof. Dr. João
Roberto Gomes de Faria). São Paulo, 2007
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