11/01/2014

Correspondência de Euclides da Cunha

 Correspondência de Euclides da Cunha
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Euclides da Cunha na Amazônia

Em 1905, Euclides da Cunha, provavelmente lido por Ferreira de Castro, viaja para a região amazônica em uma situação duplamente favorável. É o chefe da seção brasileira da Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus e, como representante do governo, viaja precedido de todas as recomendações oficiais. Como autor de Os sertões, viaja precedido pela crescente fama e dotado de um método de observação e descrição já experimentado. É, portanto, esperado e acolhido pela estrutura governamental, política e social da região.

A correspondência do autor nos mostra uma rede de relacionamentos que inclui Coelho Neto, Machado de Assis, José Veríssimo, Afonso Arinos e o Barão do Rio Branco. Ao Euclides viajante não faltaria recepção calorosa em qualquer parte do território nacional.

Euclides, como se vê, não é um viajante qualquer, e sua missão amazônica não é das mais comuns, pois cabe a ele efetuar um reconhecimento do território, estabelecer marcos, limites, conferir mapas, confirmar nomes de rios, registrar topografia e desenhar uma fronteira. Ciente da tarefa, reconhecendo a magnitude da região e criticando os escribas que o antecederam, Euclides vai dizer que:

É de toda a América a paragem mais perlustrada dos sábios e é a menos conhecida. De Humboldt a Emílio Goeldi - do alvorar do século passado aos nossos dias, perquirem-na, ansiosos, todos os eleitos. Pois bem, lede-os. Vereis que nenhum deixou a calha principal do grande vale; e que ali mesmo cada um se acolheu, deslumbrado, no recanto de uma especialidade. Wallace, Mawe. W. Edward, d’Orbigny, Martius, Bates, Agassiz, para citar os que me acodem na primeira linha, reduzirem-se a geniais escrevedores de monografias.
[...]
É que o grande rio, malgrado a sua monotonia soberana, evoca em tanta maneira o maravilhoso, que empolga por igual o cronista ingênuo, o aventureiro romântico e o sábio precavido.

No plano literário, Euclides tinha a intenção de produzir outra obra de “revelação do Brasil”: Um paraíso perdido. As questões familiares, no entanto, impediram a realização plena do projeto (Euclides foi assassinado pelo amante de sua esposa, crime que gerou comoção nacional). Ainda no plano literário, deve-se destacar sua preocupação em conhecer os registros dos vários escribas que o precederam na incursão por terras e rios amazônicos.

Como enuncia o autor de Os sertões, é volumosa e variada a produção de textos sobre a região. Parece que o mistério do desconhecido atraiu e fecundou imaginações com todo tipo de imagens e fantasias. Ninguém desconhece o par inferno/paraíso, que se alternou e fixou na memória cultural dos relatos, ensaios e ficções sobre o “Novo mundo”. Feitos por viajantes de diversas categorias - até por aqueles que na floresta não estiveram, mas dela ouviram contar histórias e viajaram nos depoimentos alheios - os relatos que têm como tema a Amazônia envolveram o espaço da Região Norte do Brasil em véu de lendas, mitos e misteriosos acontecimentos.

No entanto, e aí tomamos emprestada uma afirmação de Humberto de Campos, faltava sempre quem se dedicasse a escrever sobre o homem que vivia naquelas terras. Em sua opinião, nem Euclides da Cunha fora capaz de nos apresentar os habitantes humanos da floresta misteriosa. Segundo Campos, Ferreira de Castro foi o iniciador do desvelamento daquele homem, especificamente do homem seringueiro. A opinião de Campos tem uma relevância especial em função de um elemento de sua biografia, pois antes do êxito literário Humberto de Campos foi gerente de seringal no rio Mapuá. O crítico lança mão de sua experiência seringueira ao analisar a obra de Castro:

Nenhum de nós escreveu, porém a obra reclamada e necessária. O que interessa, na Amazônia, à literatura, é o homem, e, particularmente, o seringueiro e a sua tragédia. Para conhecer um e outra fazia-se mister viver no seringal, estudar-lhe o mecanismo, entrar, enfim, na peça, como personagem e não apenas espectador.
Daí, outrossim, termos hoje, até certo ponto, no Sr. Ferreira de Castro, isto é, num escritor estrangeiro, o mais perfeito romancista das nossas tragédias obscuras, e o revelador literário do caudal de sofrimento que rola, soturno e misterioso, por baixo da camada de ouro fluido, pela qual se afere a nossa prosperidade econômica.

A citação de Euclides, sem dúvida, deve-se à lembrança do que ele fizera em Os sertões, destacando, descrevendo e analisando “A terra o homem e a luta”, no seu registro da Guerra de canudos. Como se sabe, o projeto d’Os ensaios comporiam o volume foram publicados na imprensa. E, diferentemente da missão em Canudos, a tarefa de Euclides na Amazônia não era a de escrevente, mas a de diplomata/demarcador . Ainda que o projeto literário tenha sido interrompido, parece lícito supor que os referidos ensaios tenham sido objeto de leitura ou conhecimento dos vários autores que escreveram posteriormente sobre a floresta amazônica. Como se verá adiante, pelo menos um deles, Carlos de Vasconcelos, refere-se especialmente à abordagem euclidiana do tema na introdução de seu romance. Afrânio Coutinho define Vasconcelos como um descendente literário de Euclides da Cunha e Alberto Rangel. Alfredo Bosi chama atenção para a linguagem de Vasconcelos em Deserdados, reconhecendo no romance a presença da prosa euclidiana, “para avaliar a força de sugestão de seu estilo."

Deve-se sempre ter cuidado com a idéia de “fonte e influência”, mas Euclides tem na historiografia brasileira uma dimensão singular, seja por sua linguagem única, seja pelo efeito de seus escritos e idéias. Tanto é assim, que se esperava que ele, não o Ferreira de Castro, nos desse a obra sobre a realidade humana do seringueiro. Esperava-se que das páginas do autor de Os sertões saísse pronta e acabada a imagem do sertanejo deserdado, expulso e engolido pela floresta. A favor do brasileiro pode-se dizer que Euclides se refere ao “homem” em várias passagens dos Ensaios, mas justifica a predominância das descrições referentes ao rio Purus e à geografia recordando-nos o motivo de sua viagem: “bem pouco tempo nos restou para nos dedicarmos a outros estudos além dos que constituíam a nossa tarefa principal". Mesmo que a tarefa principal lhe tenha absorvido o melhor dos esforços, deve-se reconhecer a argúcia do escritor ao descrever o sertanejo/seringueiro, figura e alma, ao preparar e agredir a figura do Judas no sábado de aleluia. O Judas Asverus sintetiza a angústia dos homens que abandonaram o sertão seco e se aventuraram na floresta.

Ainda que não se tenha consumado a expectativa de Humberto de Campos, é interessante notar pontos de contato entre A selva e os Ensaios amazônicos.

“A região e seus povoadores”; “Entre os seringais”; “O inferno verde”, títulos cunhados por Euclides para Um paraíso perdido, bem poderiam encabeçar capítulos d’A selva, sem o risco de parecerem inadequados, pois indiciam temas desenvolvidos no romance. Enquanto viaja em direção ao seringal, o personagem Alberto reconhece nomes de cidades cuja origem situa-se do outro lado do Atlântico, lembranças permanentes dos conquistadores portugueses que, em outros tempos, ocuparam-se do reconhecimento e preservação de um território disputado com franceses, holandeses e espanhóis. “Entre os seringais”, seria um título pertinente para a obra de Ferreira de Castro, ainda que sem as sugestões e significados do nome escolhido. Já o “Inferno verde” da solidão, dos perigos, das sombras e do medo do desconhecido, da violência e da miséria está perfeitamente constituído ao longo da narrativa.

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Fonte:
VANDER DA CONCEIÇÃO MADEIRA: “A selva: viagem de descobrimento”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da Motta de Oliveira). São Paulo, 2007.

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