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Contexto histórico-cultural e simbologia de Calisto Elói
Críticos têm insistido na
semelhança do protagonista de A Queda dum Anjo, o Calisto Elói de Silos e
Benevides de Barbuda, com seu autor Camilo Castelo Branco.
Jacinto do Prado Coelho observa
que “Em Camilo havia, na verdade, um Calisto Elói devoto de prosas velhas e
genealogias, admirador duma simpleza clara e lapidar, rabugento ante
modernismos ‘civilizadores’”.
Óscar Lopes sublinha ainda “uma
certa proximidade paradigmática” entre o pré-nome do personagem e o do
romancista.
Ao lado desse lastro
autobiográfico na confecção da figura do morgado da Agra de Freimas, podemos
acrescentar um contexto que Camilo denuncia e ironiza na crônica “Tesouro de
Sábios”, publicada no jornal A Revolução de Setembro, a 11 de abril de 1861.
Trata-se de um disseminado gosto
por citações latinas no Portugal da época, – gosto compartilhado por Calisto
Elói e pelo próprio Camilo Castelo Branco. D. João de Castro, em célebre artigo
sobre A Queda dum Anjo, aponta um contemporâneo do escritor oitocentista como
inspiração para o herói desse romance. Nas palavras de Túlio Ramires Ferro, Segundo
D. João de Castro, o modelo, vivo, do herói camiliano foi um fidalgo muito
conhecido em Braga, Domingos de Barros Teixeira da Mota, que era senhor da casa
vincular da Cruz, situada no concelho de Celorico de Basto.
Homem austero, apreciador de
genealogias e cronicões, e adepto de D. Miguel, Domingos de Barros, que estava
casado com uma senhora muito feia e muito rica, mundanizou-se em contacto com a
vida elegante de Lisboa, onde se instalou quando o elegeram deputado.
De fato, os dados biográficos do
aristocrata português e a trajetória do personagem de A Queda dum Anjo
coincidem em muitos pontos, embora falte na vida do primeiro o registro de um
adultério, o que motiva no segundo as conhecidas transformações.
Cerca de três anos antes de A
Queda dum Anjo, Camilo publicou O Bem e o Mal, em que aparece um personagem com
características impressionantemente muito semelhantes às de Calisto Elói. Padre
Praxedes de Vila Cova, conta-nos o narrador, [...] sobre ser virtuoso, era
grande letrado; a sua ciência, porém, atrasara-se dous séculos na história do
espírito humano.
[...] sabia de cor Aristóteles e
Platão. Filosofia, Física, História Natural, Gramática, Lógica, Metafísica,
Poética, Meteorologia, Política, e mais um centenar de ciências todas lhas
ensinaram os dous sábios de Estagira e Atenas. Na opinião dele, a inteligência
do homem, depois de Platão e Aristóteles, envelhecera, ou fingira remoçar-se
com atavios de ouropel e pechisbeques, sem quilate na experimentada mão de um
sábio.
Era padre Praxedes copiosamente
lido em livros portugueses anteriores ao século XVII, e possuía os melhores nas
suas ponderosas estantes de castanho. Da época dos Senhores Reis D. João V e D.
José I já pouquíssimos volumes, e esses mesmos estremados do ouro puro dos clássicos,
se honravam de prender--lhe a atenção.
Além da leitura contumaz de
autores tão antigos, ao lado de um desrespeito senão indiferença pelo
conhecimento contemporâneo, outra coincidência entre padre Praxedes e Calisto
Elói se destaca. Se o morgado da Agra de Freimas terá uma parentela de “altas
dignidades da Igreja” e haverá em sua casa “onze retratos, que tinha de onze avós”,
o personagem de O Bem e o Mal tivera “ao certo que seus derradeiros anos, muitos
ou poucos, ali [na residência paroquial] seriam vividos ao pé da sepultura dos seus
onze antepassados” , todos os quais eclesiásticos. O detalhe da repetição do número
onze de um romance para o outro parece reforçar ainda mais a existência de um ‘parentesco’ entre os
personagens, ou ainda de um arquétipo camiliano.
Mas talvez o parentesco do
protagonista de A Queda dum Anjo que mais salte aos olhos seja o com Dom
Quixote. O próprio narrador do romance, a propósito das pretensões de Calisto
de salvaguardar a moral do casamento de D. Catarina, no primeiro parágrafo do
décimo segundo capítulo (“O anjo-custódio”), sugerirá a semelhança: “Santa
audácia! Bizarra índole de antigo cavaleiro, que abriga no peito a generosidade
com que os heróis dos Lobeiras, Cervantes, Barros e Morais se lançavam às aventurosas
lides, no intento de corrigir vícios e endireitar as tortuosidades da humana maldade!”
Acerca da proximidade entre
Calisto e D. Quixote, porém, no que concerne à suposta loucura desses
personagens, João Camilo dos Santos adverte:
[...] se a loucura de D. Quixote
é um facto em geral admitido pela crítica cervantina, no caso de Calisto não
parece que se possa falar de loucura. O contraste entre uma visão do mundo e um
comportamento que aparecem como originais (distinguindo como “diferente” aquele
que os encarna) e a visão do mundo e comportamento da maioria não implica
forçosamente que haja perda da razão.
De qualquer maneira quixotesco,
Calisto exemplifica a ampla ressonância cultural do livro de Miguel de
Cervantes no século XIX português. Para esse fato o estudo Garrett, Camilo,
Eça: entre Quixote e Sancho, de José Clécio Basílio Quesado, o de Maria
Fernanda Abreu, Cervantes no Romantismo Português: cavaleiros andantes, manuscritos
encontrados e gargalhadas moralíssimas, e outros chamam a atenção. Já em 24 de
agosto de 1848, na gazeta Nacional, Camilo publicara uma crônica à guisa de conto
intitulada “Cavalheiro Andante do Século 19” . Conforme Maria Fernanda Abreu noticia,
esta teria sido a primeira criação ficcional do escritor oitocentista com base
no personagem cervantino.
Igualmente a D. Quixote, o narrador-personagem
desse texto satírico, após leitura de narrativas sobre feitos épicos medievais,
resgata uma donzela raptada por um sargento de telégrafo.
Como se pode observar, aqui
também se chocam o antigo – representado pelas leituras de textos da Idade
Média – e o novo – representado pelo tempo em que vive o narrador-personagem, a
modernidade que o telégrafo emblema –.
Em Viagens na Minha Terra, de
1843, Almeida Garrett explicara a marcha da civilização, ou seja, “para nos
entenderem todos melhor, o Progresso”, lançando mão dos protagonistas das peripécias
narradas em D. Quixote:
[...] há dois princípios no mundo: o
espiritualista, que marcha sem atender à parte material e terrena desta vida,
com os olhos fitos em suas grandes e abstractas teorias, hirto, seco, duro,
inflexível, e que pode bem personalizar-se, simbolizar-se pelo famoso mito do
Cavaleiro da Mancha, D. Quixote, – o materialista, que, sem fazer caso nem
cabedal dessas teorias, em que não crê e cujas impossíveis aplicações declara
todas utopias, pode bem representar-se pela rotunda e anafada presença do nosso
amigo velho, Sancho Pança.
O trecho pertence ao segundo
capítulo da obra, onde o narrador esclarece: “[...] a minha obra é um
símbolo... é um mito, palavra grega, e de moda germânica, que se mete em tudo e
com que se explica tudo... quanto se não sabe explicar.”
Assim como se utiliza das figuras de Quixote e
Sancho para ilustrar o mecanismo dialético do progresso – o embate entre a
força espiritualista e materialista –, o próprio romance funciona como ‘explicação’
simbológica da “situação cultural, política e social de Portugal”, segundo a
excelente leitura de Helder Macedo.
Ao analisar a novela “A Menina dos Rouxinóis”,
inserida no romance, Macedo propõe: As duas personagens motrizes da sequência romanesca
são Frei Dinis e Carlos – um absolutista e o outro liberal. Cada um deles
representa D. Quixote e Sancho Pança em fases diferentes das suas vidas. Frei
Dinis, que começou por ser “materialista” porque presa das paixões,
espiritualizou-se através do remorso no frade austero em que veio a tornar-se;
Carlos, após ter lutado pelos ideais do liberalismo, corrompeu-se e cedeu à
matéria ao tornar-se barão.
Também o protagonista de A Queda
dum Anjo se enquadra nessa fórmula. Na primeira fase de sua vida, é
absolutista, defensor de rígida moral cristã-católica, mas depois – “presa de
paixões” – converte-se ao liberalismo e torna-se barão. O personagem camiliano
encarna, pois, num momento o espiritualista Quixote, e posteriormente o
materialista Sancho. João Camilo dos Santos opera noutros termos, mas o
resultado de sua leitura do romance corresponde ao exposto acima. Segundo o crítico,
“Calisto, evoluindo e adaptando-se enfim, permite a Camilo pôr em cena a transição
do Portugal antigo para o Portugal moderno”, e sendo assim, “A Queda dum Anjo é
a história dessa transição”.
José Clécio Basílio Quesado concilia os dois aspectos
da leitura:
Caído do “fragmento paradisíaco”
de Miranda na babilônica Lisboa de usos e costumes novos, Calisto Elói é [...]
a figuração de um povo que, no seu projeto de descaracterização
político-econômica e cultural, se descompassou entre o passado e o presente,
entre a sua tradição milenar e os influxos de uma modernidade mal urdida. [...]
É, enfim, mais uma reduplicação de ficção lusa do idealismo quixotesco lançado
nas vertigens abissais do materialismo de Sancho.
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Fonte:
Fonte:
Adriano Lima Drumond: “A imagem
da nação portuguesa em A Queda dum Anjo, de Camilo Castelo Branco” (Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Teoria da Literatura. Área de Concentração:
Teoria da Literatura Linha de Pesquisa: Literatura, História e Memória Cultural
Orientador: Prof. Dr. Marcus Vinicius de Freitas). Belo Horizonte, 2007.
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