24/12/2013

São Cristovão, de Eça de Queirós

 Eca de Queiros - São Cristovao - Iba Mendes
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"S. Cristóvão" de Eça de Queirós

A história de Cristóvão principia quando um lenhador, servo de um Senhor de Castelo, vê-se inesperadamente diante de um mensageiro celeste, que lhe anuncia o nascimento de um filho que seria santo. Cristóvão, contra todas as expectativas paternas, nasce anormal. O filho do lenhador era um monstro!

«Escuro, coberto de uma pele rugosa e áspera; com uma face vaga, informe, onde as feições faziam como vagas protuberâncias nodosas; as mãos enormes enclavinhadas sobre c ventre felpudo; torto das pernas, que findavam cm dois pés agudos, como os de um fauno, todo ele parecia uma raiz sombria, / . . . / . Era como o rudimento de um ser vegetal!»

Durante três dias e três noites não dá sinal de sobrevivência. Eis, porém, que a criança se move e principia seu extraordinário crescer, caminhando sua monstruosidade para formas de um corpo grosseiro, sim, mas humano. Maravilhados, os pais assistem ao invulgar desenvolver de força e de formas de Cristóvão. E no entanto, já crescido, o menino não falava. Então, todas as esperanças paternas diante da primeira robustez do filho esboroam-se e a alegria muda-se em dor, porque, além de disforme, o filho era imbecil... Até que uma noite, em que a mãe, ralada pelo desgosto da mudez da criança, estava para morrer, Cristóvão, subitamente falou:

«Ó mãezinha, mãezinha, não durmas!»

Soltas as primeiras palavras de sofrimento e amor, começa Cristóvão a espontaneamente auxiliar o pai nas mais rudes tarefas, órfão de mãe, Cristóvão breve fica órfão de pai, e livre dos sentimentos que o prendiam aos homens, regressa à Natureza. Durante todo um ano vive, solitário, na serra: « E pouco a pouco, naquela solidão, longe de toda a vida humana, ele quase perdeu a sua humanidade, e foi como um pedaço da montanha que o cercava.»

Um dia, ao avistar um grupo de homens Cristóvão sente o desejo de estar novamente com os outros homens, e tomado de uma ânsia imensa de ajudar a todos, desce a serra. Breve, passa a trabalhar num convento e sobre ele recaía todo o serviço da comunidade. Toma conhecimento, através de iluminuras que um jovem lhe explica, da vida e dos ensinamentos de Jesus, vertendo sentidas lágrimas diante da morte do Salvador. Lamentando-se de ter conhecido a Jesus tão tarde, chorava "por todos os que, morto Ele, perdiam o amigo melhor dos homens." Chorando sempre, Cristóvão põe-se a caminhar até chegar à aldeia. Ali torna-se o servo de todos. As portas do convento nunca mais as transpôs,

«porque lá habitam a paz, a abundância, o celeiro está cheio de trigo, a adega cheia de vinho, uma grande alegria e orgulho reinam nos corações, — e para lá não iriam decerto os passos de Jesus, nem os seus a seguir o seu Senhor.»

Mas fora do convento havia necessitados, infelizes, que precisavam da força de seus braços. E Cristóvão se torna omnipresente para que ninguém fique sem sua ajuda. O guaridão do convento, porém, não perdoava a Cristóvão o ter abandonado os serviços da Ordem, e os frades, sempre que pregavam, não deixavam de insinuar que os gigantes tinham pacto com o diabo. Tendo um temporal arrasado a aldeia, todo o mal foi atribuído à presença de Cristóvão, e a multidão liderada pelos frades clamou contra êle insultos. Tomado de aflição e espanto, viu o bom gigante virem contra êle aqueles mesmos a quem servira com mais carinho!

Cristóvão, vendo que ninguém mais o queria, deixa para sempre os lugares onde nascera, e caminhando longos dias, chega a uma cidade onde grassava a peste. Sua popularidade suscita os ciúmes do Senhor da cidade, que o manda prender com correntes de ferro. Livrando-se das mesmas, dirige o gigante os passos para caminhos diversos até chegar ao sopé de uma montanha, habitada por eremitas. Não tarda a ver que também ali Deus não estava porque havia orgulho e da imobilidade contempladora dos eremitas "não saía nenhum bem, nada que aquecesse o coração." E Cristóvão, triste, sentia saudade de "outros homens mais humanos, e do riso das crianças." E numa tarde abandona para sempre a montanha, errando por terras desertas e por lugares assolados pela guerra. Numa aldeia, junto de um calvário, vê gente reunida em volta de um frade que, clamando pela justiça de Deus, acusava os barões de correrem as terras e tudo destruírem para adestrar os soldados. Depara depois uma multidão de cavadores a trabalhar duramente a terra. Compugido, Cristóvão procura aliviar o trabalho dos cavadores e o sofrimento das crianças, repartindo com elas o pão que lhe cabia. Assiste depois à missa negra oficiada na floresta, mas também ali não pára porque

«Aquela gente clamorosa não era amiga do Senhor. Perdidas estavam as suas almas.»

E Cristóvão pôs-se novamente a caminho até chegar a um castelo feudal onde se torna o brinquedo, logo esquecido, ao sabor dos caprichos do pequeno Senhor, e passa a visitar as moradias dos servos, onde ouve os velhos contarem histórias de violências e crueldades. Recolhendo ao castelo, "todas aquelas torres, aquelas muralhas lhe pareciam de um aspecto cruel e hostil ao pobre." E acaba por unir-se aos Jacques, seguindo-os de castelo a castelo, sendo para eles como um pai a mendigar com os filhos pelos caminhos. Dia e noite ele mantinha a ordem na turba:

«Não permitia que despojassem as árvores dos frutos, que se tomasse o gado nas pastagens. Só era aceite o que a caridade dava. Se encontrava mendigos, histriões famintos, gritava com um grande gesto: «Vinde também.»

Assim vagueavam, quando uma tarde, junto a uma lagoa, os Jacques se defrontam com um grupo de cavaleiros, armas em riste. A batalha é árdua. Os cadáveres dos infelizes cobrem a planície. Finda

«a grande marcha, que levava aos castelos e abadias a visão estranha das grandes misérias da terra,»

Cristóvão passa outra vez a percorrer longas terras. Ora, um dia, ao sair de uma cidade encontra um  histrião, de cuja miséria se compadece e por proposta própria, a troco do pão e da metade do ganho, passa a mostrar-se numa feira, numa barraca, à curiosidade indiscreta da turba.

Finda a feira, de novo Cristóvão correu o mundo. Mas os anos tinham passado e ele era "mais velho que os mais velhos carvalhos." Contudo, ainda tinha forças para servir. Do S. Cristóvão salta-nos de imediato à vista a estreita relação entre a Natureza e a personagem central. Mais do que estreita relação: comunhão, irmanação. Cristóvão é a integração do homem à Natureza. Quando ele está para nascer, os pais acordam de manhã

«a um grande canto de pássaros, tão alegre e ruidoso como se todas as cotovias e melros da floresta estivessem celebrando uma festa sobre o colmo da sua cabana: e em torno ao catre flutuava estranhamente um fresco cheiro de verduras e flores novas»,

e tudo vibra, os sinos repicam festivamente, o céu ostenta desusada alegria e os pinheiros, movendo as altas ramas, parecem cantar na hora do nascimento de Cristóvão. O próprio lenhador toma, pela  primeira vez, consciência da beleza de tudo quanto cerca os caminhos dele tão familiares, beleza que antes nunca percebera. Mas começa a mover-se prefere Cristóvão a terra ao próprio leito. Era-lhe o elemento natural:

« . . . r o l a v a para fora do mantéu, procurando a terra quente e mole, onde se estendia, se dilatava com delícia, como num ele mento preferido, sorrindo quieto, num sorriso mudo, que deixava já transparecer o brilho de um dente.»

Ainda infante, acorda para o amor da Natureza, aproximando-se esta dele carinhosamente a fim de participar de sua existência. O correr do tempo não faz senão aumentar- lhe o afeto pela mesma, e campos e florestas tornam-se cada vez mais íntimos, neles passando os dias entre os retiros mais densos, "vegetando na doçura infinita de sentir os seus longos cabelos emaranhados nas folhas." A vida de Cristóvão é um enternecido e sempre mais vivo convívio com a Natureza. O coração cada dia se lhe enche de maior ternura para com os animais, as árvores, o firmamento, o universo todo. Vê-lo-emos nos últimos dias de sua existência compadecer-se de um ramo seco, desviar-se do caminho para não pisar a relva, e fazer com o seu corpo sombra às rochas para que o sol não as fira...

Essa viva irmanação com a Natureza constitui, ao lado da grande ternura de Cristóvão para com as crianças e a presença do Menino Jesus, um dos traços mais nítidos da filiação eciana com o Franciscanismo.


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Fonte:
Luiz Piva, publicado em: http://www.abralic.org.br (Associação Brasileira de Literatura Comparada)

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