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O Mistério da Estrada de Sintra: a estreia
folhetinesca de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão
Após a análise
dos elementos concernentes ao enredo e à instância narrativa dos romances de
Eugène Sue e Camilo Castelo Branco, passaremos à análise do último romance que
compõe a nossa tríade dos mistérios, que prolonga esse exploradíssimo filão
folhetinesco e o faz chegar até a década de 70: trataremos do Mistério da
Estrada de Sintra, primeiro romance de Eça de Queirós, escrito
conjuntamente com Ramalho Ortigão e publicado em 1870 no Diário de Notícias.
Além da análise
deste novo romance, bem como de sua contextualização histórico-literária,
também trataremos brevemente a respeito de um derradeiro folhetim de “mistérios”,
com o qual proporemos um breve diálogo: trata-se do romance Les Mystères de
Marseille, de Èmile Zola, publicado em 1867, somente três anos antes,
portanto, do Mistério da Estrada de Sintra, no jornal Messager de
Province. Adiantamos o motivo desse acréscimo no já tão vasto campo dos mistérios
europeus, ressaltando, no entanto, que não apresentaremos uma extensiva análise
do romance em virtude da falta de material a respeito da obra e também devido
aos limites de nossa pesquisa, que se restringe à análise mais aprofundada dos romances
de Eugène Sue e dos escritores portugueses. Contudo, a menção ao romance e sua breve
abordagem justificam-se pelos interessantes paratextos que circundam as obras, especialmente
o romance de Zola, por conterem informações a respeito do contexto de criação e
publicação do romance. Os prefácios dos romances Les Mystères de Marseille e
O Mistério da Estrada de Sintra são bastante semelhantes e apresentam importantes
elementos para a análise do romance português no panorama literário da época; os
prefácios às diferentes edições do romance de Zola, especificamente, constituem
valiosos documentos das tendências literárias da época, bem como da relação
entre o escritor e tais “exigências” do público e dos periódicos; ademais,
nesses prefácios, o escritor apresenta interessantes características dos folhetins
da época, explicando o modo de composição desse seu primeiro romance, de modo que
se constituem importantes objetos de pesquisa para o período sobre o qual nos debruçamos;
e, por fim, além do fato de Eça ser um grande admirador e leitor da obra de Zola,
as datas de publicação dos folhetins são bastante próximas, o que nos pode sugerir
aspectos interessantes de comparação entre o folhetim francês e o português,
objeto central de nossa pesquisa.
Voltando-nos
ao romance português, ressaltamos que apesar de inserir-se na voga dos mistérios
popularizada por Eugène Sue com Os Mistérios de Paris e Os Mistérios
do Povo, O Mistério da Estrada de Sintra deve ser analisado
separadamente dos romances de Sue e Camilo contemplados nos capítulos precedentes,
já que possui características muito diferenciadas e particularidades intrínsecas
ao seu modo de composição, evidenciando uma nova etapa do romance-folhetim e da
Imprensa francesa, bem como todas as modificações advindas dessa evolução. No
entanto, assim como Camilo Castelo Branco, Eça também inicia sua produção
literária de maneira a observar o desenvolvimento da forma do romance e do jornalismo
franceses, com os quais dialoga explicitamente em seu primeiro romance.
À época em que
Eça e Ramalho estreiam na cena literária com a publicação de seu primeiro
folhetim “literário”, mudanças significativas haviam ocorrido na Imprensa
francesa, e, por conseguinte, na portuguesa: como esclarece Catherine Bertho, o
divórcio entre escritura jornalística e escritura literária passa a ser mais acentuado,
pelo que o jornalismo de reportagem passa a substituir a crônica. Segundo
Bertho, lê-se no jornal dos irmãos Goncourt da data de 22 de julho de 1867 o
seguinte trecho: “Ce-temps si c’est le commencement de l’écrasement du livre par
le journal, de l’homme de lettres par le journalisme des lettrés » (1986 apud
BELLET, 1972, t.V, p.42).22É então que se pode perceber um interesse mais
avivado pela reportagem “dramatizada”, que contava, muitas vezes, eventos
eletrizantes e que faziam as vezes do suspense e das peripécias de numerosos
folhetins. Como mostra a autora, ainda, Jules Vallès e Émile Zola são exemplos
que ilustram que a carreira de jornalista, muitas vezes, servia de elevação e
ponte à carreira de escritor: “Dans un tout autre registre, les très grands
auteurs populaires de la fin du siècle sont aussi journalistes” (BERTHO, 1986,
p.400).
Dessa forma,
podemos compreender que há diferenças estruturais importantíssimas entre os
folhetins de Camilo e Eça e Ramalho, já que o primeiro se “baseia” ainda no
formato dos romances-folhetins tradicionais à maneira de Sue e Dumas, e os segundos,
já em desenvolvimento na carreira de jornalistas, têm uma visada mais direta (e
crítica) da Imprensa e do jornalismo franceses e da ascensão de um novo modo de
publicação que relaciona estreitamente literatura e jornalismo: o fait
divers.
Mas não
somente no jornalismo francês Eça e Ramalho fixaram seus horizontes: certamente,
a publicação do romance e o anúncio de um grande mistério, envolvendo assassinatos,
sequestros e a urdidura de complicados nós, visam a estremecer o adormecido e pacato
público leitor português, já que os limites entre ficção e realidade ganham contornos
muito fluidos e duvidosos, de maneira que qualquer leitor atento e crítico
hesitaria diante da matéria romanesca que ganhava forma nas páginas do Diário
de Notícias. É que a vida em Lisboa parecera a Eça, como relata João Gaspar
Simões, uma grande mistificação, onde não havia de fato os famosos “mistérios”,
além de revelar-se insípida em seu provincianismo e suas trivialidades: “Sim,
Lisboa era como a província: mas em ponto grande. A trivialidade, porém, era a mesma.
“Não há nada mais pacato, mais sereno, mais límpido, mais chato que esta vida
de Lisboa”, escrevera ele, meses antes, quando falava da capital, sentado à sua
mesa do redactor do “Distrito de Évora” (SIMÕES, 1945, p.150).
Em diversas crônicas das Prosas Bárbaras,
Eça mostra-se profundamente desolado com a atual situação da capital portuguesa
e da península, que se revelavam em sua estreiteza e insignificância, envolvidas
em um completo marasmo, bem como o notaram outros escritores da época, como
Sampaio Bruno e Antero de Quental. Tal sentimento, provavelmente compartilhado
por Ramalho Ortigão, motiva a elaboração escandalosa do Mistério da Estrada de
Sintra – de cuja trama Batalha Reis também tivera conhecimento, sendo
inclusive convidado a participar do “jogo” com possíveis cartas que confirmassem
a suposta veracidade dos fatos – e as ácidas provocações das Farpas. Na
crônica A Península, confessa:
Ainda ontem eu pensava que nós outros, os peninsulares,
nem sempre tínhamos sido uma nação estreita, de pequenas tendências, sonolenta,
chata, fria, burguesa, cheia de espantos e de servilidades: e que este velho
canto da terra, cheio de árvores e de sol, tinha sido Pátria forte, sã, viva,
fecunda, formosa, aventureira, épica! (QUEIRÓS, 1986, p.604, v.II).
Em outra vergastada,
crônica cujo alvo desta vez é a “serena, imperturbável e silenciosa” Lisboa, é
lançado o axioma: “Lisboa nem cria, nem inicia; vai” (Ibid., p.625). E continua
a voz que reclama:
Em Lisboa a vida é lenta. Tem as raras palpitações
dum peito desmaiado. Não há ambições explosivas; não há ruas resplandecentes cheias
de tropéis de cavalgadas, de tempestades de ouro, de veludos lascivos: não há
amores melodramáticos; não há as luminosas eflorescências das almas namoradas
da arte; não há as festas feéricas, e as convulsões dos cérebros industriais. Há
escassez de vida; um frio senso prático; a preocupação exclusiva do útil; uma
seriedade enfática [...]
(Ibid., p.627, v.II).
Tal opinião
a respeito de Lisboa é compartilhada, inclusive, por Camilo Castelo Branco,
desde a publicação dos nossos já conhecidos Mistérios de Lisboa. Os escritores
parecem estar a par dos sucessos europeus – franceses, sobretudo – em que a honra
de um novo mistério não viria mal à fortuna dos periódicos e à alegria dos leitores,
mas sabem, contudo, que Lisboa não tem as mesmas emoções comoventes da
sociedade parisiense, e que só resta apelar aos “recursos da imaginação”.
Ironicamente, como sempre, afirma o escritor:
Se eu me visse assaltado pela tentação de
escrever a vida oculta de Lisboa, não era capaz de alinhavar dois capítulos com
jeito. O que eu conheço de Lisboa são os relevos, que se destacam nos quadros
de todas as populações, com foros de cidades e de vilas. Isso não vale a honra
do romance. Recursos de imaginação, se eu os tivera, não viria consumi-los aqui
numa tarefa inglória. E, sem esses recursos, pareceu-me sempre impossível escrever
os mistérios de uma terra que não tem nenhuns, e, inventados, ninguém os crê (CASTELO BRANCO, 1981, p.9).
Dessa forma,
a celeuma provocada na sociedade lisboeta, cuja mulher, como divertidamente descreve
Eça, após o almoço indolente, “vai-se pentear e corre o Diário de Notícias”
(QUEIRÓS, 1986, p.1204, v.III), viera em grande parte como resposta a essa sonolência
exacerbada. Além disso, a verificação do contexto literário é bastante aguda na
percepção de Eça; sabia o escritor que “o que se pede é a comoção, a sensação,
o sobressalto. [...]. Toda a literatura, teatro, romance e versos educam neste sentido:
vibrar, sentir fortemente. [...]. É que a nós só nos excita, nos exalta, o
drama! O drama, eis o nosso ideal! Fazer drama, eis a nossa
perdição” (Ibid., p.1213-1214, v.III, grifos do autor). Nesta mesma crônica
pertencente às Farpas, datada de 1872, escrita, portanto, dois anos após
a aparição do Mistério da Estrada de Sintra, o panorama literário e a crítica
de Eça parecem ainda ser os mesmos: entre numerosas invectivas contra a
literatura de Dumas e Ponson du Terrail, entre outros, o escritor mostra a tendência
predominante de leitura do então público leitor e a decadência da literatura em
meio a estas produções:
Entre nós nenhuma senhora se dá às sérias leituras
de ciência. Não da profunda ciência (o seu cérebro não a suportaria), mas mesmo
dos lados pitorescos da ciência, curiosidades da botânica, história natural dos
animais, maravilhas dos mares e dos céus. Isso lembra-lhes a mestra, o dever, a
monotonia do colégio. Depois acham vulgar, insípido. Querem ser impressionadas,
abaladas – preferem o drama e o romance. [...]. Entre nós lêem Ponson du
Terrail e Dumas Filho e o seu bando de analistas lascivos (Ibid., p.1211, v. III).
Ao
analisarmos este contexto, bem como a evolução da escrita e do pensamento de Eça
pela leitura de suas crônicas e produções jornalísticas, atividade em muito
auxiliada pela leitura da obra de João Gaspar Simões, inteiramente dedicada à vida
e obra do escritor português, fica evidente que a concepção e a produção do
primeiro romance de Eça e Ramalho teriam sido acompanhadas por intenções eminentemente
críticas e satíricas, aspecto evidenciado pelo crítico português e por Ofélia de
Paiva Monteiro. A escritura de um romance-folhetim, composto de seus mais variados
ingredientes – peripécias romanescas, lances sentimentais e passionais, mistérios
e suas desencerrações – não significaria, portanto, uma mera adesão de Eça e Ramalho
aos parâmetros da literatura francesa; para tanto, é necessário analisar a composição
do romance, bem como suas estratégias paródicas, já que uma superficial leitura
poderia indicar uma “imaturidade” da primeira fase dos escritores.
Ainda sem ter-se
revelado grande escritor, contudo, Eça alternava a pena entre folhetins líricos,
fruto das influências literárias de sua época, ainda sob forte influxo do Romantismo,
e um princípio de estilo que começa a moldar-se pela observação da realidade e dos
costumes portugueses, em que “o Eça de Queiroz das “Farpas” vai desabrochando
do lírico” (SIMÕES, 1945, p.159). Nesta época, surgem os escritos de fundo
irônico, satírico e chocarreiro, do futuro escritor das Farpas e de O
Conde de Abranhos. A evolução literária do escritor, que começa a despontar
em novos estilos, faz-nos observar que “tão grosseiramente trivial é a
existência que o melhor, concluiu Eça de Queiroz, é a gargalhada” (Ibid.,
p.161). É diante deste cenário apático do meio lisboeta, tão bem traçado pelo
escritor, e de sua ainda iniciante produção literária, mas já principiando a afirmar-se
em seu estilo característico, voltado à observação do real e lançando mão da
ironia e da sátira, que surgirá a concepção do Mistério da Estrada de Sintra,
que apresenta diversos pontos de contato com as páginas do Distrito de
Évora, com as Prosas Bárbaras, e com as crônicas posteriores d’ As
Farpas. No prefácio à edição em romance, escrito em 1884, os autores
parecem revelar as intenções com as quais engendram os rocambolescos lances da
narrativa:
Há catorze anos, numa noite de Verão, no
Passeio Público, em frente de duas chávenas de café, penetrados pela tristeza
da grande cidade que em torno de nós cabeceava de sono ao som de um soluçante pot-pourri
dos Dois Foscaris, deliberamos reagir
sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado
à Baixa das alturas do Diário de Notícias (QUEIRÓS, ORTIGÃO, 1963, p.7).
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Fonte:
Fonte:
Andréa
Trench de Castro: “O romance-folhetim de
Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós”. (Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de
Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para
obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da
Motta de Oliveira). São Paulo, 2012
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