23/12/2013

O Mistério da Estrada de Sintra , de Eça de Queirós

 O Mistério da Estrada de Sintra, pdf
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O Mistério da Estrada de Sintra: a estreia folhetinesca de Eça de Queirós e Ramalho Ortigão

Após a análise dos elementos concernentes ao enredo e à instância narrativa dos romances de Eugène Sue e Camilo Castelo Branco, passaremos à análise do último romance que compõe a nossa tríade dos mistérios, que prolonga esse exploradíssimo filão folhetinesco e o faz chegar até a década de 70: trataremos do Mistério da Estrada de Sintra, primeiro romance de Eça de Queirós, escrito conjuntamente com Ramalho Ortigão e publicado em 1870 no Diário de Notícias.

Além da análise deste novo romance, bem como de sua contextualização histórico-literária, também trataremos brevemente a respeito de um derradeiro folhetim de “mistérios”, com o qual proporemos um breve diálogo: trata-se do romance Les Mystères de Marseille, de Èmile Zola, publicado em 1867, somente três anos antes, portanto, do Mistério da Estrada de Sintra, no jornal Messager de Province. Adiantamos o motivo desse acréscimo no já tão vasto campo dos mistérios europeus, ressaltando, no entanto, que não apresentaremos uma extensiva análise do romance em virtude da falta de material a respeito da obra e também devido aos limites de nossa pesquisa, que se restringe à análise mais aprofundada dos romances de Eugène Sue e dos escritores portugueses. Contudo, a menção ao romance e sua breve abordagem justificam-se pelos interessantes paratextos que circundam as obras, especialmente o romance de Zola, por conterem informações a respeito do contexto de criação e publicação do romance. Os prefácios dos romances Les Mystères de Marseille e O Mistério da Estrada de Sintra são bastante semelhantes e apresentam importantes elementos para a análise do romance português no panorama literário da época; os prefácios às diferentes edições do romance de Zola, especificamente, constituem valiosos documentos das tendências literárias da época, bem como da relação entre o escritor e tais “exigências” do público e dos periódicos; ademais, nesses prefácios, o escritor apresenta interessantes características dos folhetins da época, explicando o modo de composição desse seu primeiro romance, de modo que se constituem importantes objetos de pesquisa para o período sobre o qual nos debruçamos; e, por fim, além do fato de Eça ser um grande admirador e leitor da obra de Zola, as datas de publicação dos folhetins são bastante próximas, o que nos pode sugerir aspectos interessantes de comparação entre o folhetim francês e o português, objeto central de nossa pesquisa.

Voltando-nos ao romance português, ressaltamos que apesar de inserir-se na voga dos mistérios popularizada por Eugène Sue com Os Mistérios de Paris e Os Mistérios do Povo, O Mistério da Estrada de Sintra deve ser analisado separadamente dos romances de Sue e Camilo contemplados nos capítulos precedentes, já que possui características muito diferenciadas e particularidades intrínsecas ao seu modo de composição, evidenciando uma nova etapa do romance-folhetim e da Imprensa francesa, bem como todas as modificações advindas dessa evolução. No entanto, assim como Camilo Castelo Branco, Eça também inicia sua produção literária de maneira a observar o desenvolvimento da forma do romance e do jornalismo franceses, com os quais dialoga explicitamente em seu primeiro romance.

À época em que Eça e Ramalho estreiam na cena literária com a publicação de seu primeiro folhetim “literário”, mudanças significativas haviam ocorrido na Imprensa francesa, e, por conseguinte, na portuguesa: como esclarece Catherine Bertho, o divórcio entre escritura jornalística e escritura literária passa a ser mais acentuado, pelo que o jornalismo de reportagem passa a substituir a crônica. Segundo Bertho, lê-se no jornal dos irmãos Goncourt da data de 22 de julho de 1867 o seguinte trecho: “Ce-temps si c’est le commencement de l’écrasement du livre par le journal, de l’homme de lettres par le journalisme des lettrés » (1986 apud BELLET, 1972, t.V, p.42).22É então que se pode perceber um interesse mais avivado pela reportagem “dramatizada”, que contava, muitas vezes, eventos eletrizantes e que faziam as vezes do suspense e das peripécias de numerosos folhetins. Como mostra a autora, ainda, Jules Vallès e Émile Zola são exemplos que ilustram que a carreira de jornalista, muitas vezes, servia de elevação e ponte à carreira de escritor: “Dans un tout autre registre, les très grands auteurs populaires de la fin du siècle sont aussi journalistes” (BERTHO, 1986, p.400).

Dessa forma, podemos compreender que há diferenças estruturais importantíssimas entre os folhetins de Camilo e Eça e Ramalho, já que o primeiro se “baseia” ainda no formato dos romances-folhetins tradicionais à maneira de Sue e Dumas, e os segundos, já em desenvolvimento na carreira de jornalistas, têm uma visada mais direta (e crítica) da Imprensa e do jornalismo franceses e da ascensão de um novo modo de publicação que relaciona estreitamente literatura e jornalismo: o fait divers.

Mas não somente no jornalismo francês Eça e Ramalho fixaram seus horizontes: certamente, a publicação do romance e o anúncio de um grande mistério, envolvendo assassinatos, sequestros e a urdidura de complicados nós, visam a estremecer o adormecido e pacato público leitor português, já que os limites entre ficção e realidade ganham contornos muito fluidos e duvidosos, de maneira que qualquer leitor atento e crítico hesitaria diante da matéria romanesca que ganhava forma nas páginas do Diário de Notícias. É que a vida em Lisboa parecera a Eça, como relata João Gaspar Simões, uma grande mistificação, onde não havia de fato os famosos “mistérios”, além de revelar-se insípida em seu provincianismo e suas trivialidades: “Sim, Lisboa era como a província: mas em ponto grande. A trivialidade, porém, era a mesma. “Não há nada mais pacato, mais sereno, mais límpido, mais chato que esta vida de Lisboa”, escrevera ele, meses antes, quando falava da capital, sentado à sua mesa do redactor do “Distrito de Évora” (SIMÕES, 1945, p.150).

Em diversas crônicas das Prosas Bárbaras, Eça mostra-se profundamente desolado com a atual situação da capital portuguesa e da península, que se revelavam em sua estreiteza e insignificância, envolvidas em um completo marasmo, bem como o notaram outros escritores da época, como Sampaio Bruno e Antero de Quental. Tal sentimento, provavelmente compartilhado por Ramalho Ortigão, motiva a elaboração escandalosa do Mistério da Estrada de Sintra – de cuja trama Batalha Reis também tivera conhecimento, sendo inclusive convidado a participar do “jogo” com possíveis cartas que confirmassem a suposta veracidade dos fatos – e as ácidas provocações das Farpas. Na crônica A Península, confessa:

Ainda ontem eu pensava que nós outros, os peninsulares, nem sempre tínhamos sido uma nação estreita, de pequenas tendências, sonolenta, chata, fria, burguesa, cheia de espantos e de servilidades: e que este velho canto da terra, cheio de árvores e de sol, tinha sido Pátria forte, sã, viva, fecunda, formosa, aventureira, épica! (QUEIRÓS, 1986, p.604, v.II).

Em outra vergastada, crônica cujo alvo desta vez é a “serena, imperturbável e silenciosa” Lisboa, é lançado o axioma: “Lisboa nem cria, nem inicia; vai” (Ibid., p.625). E continua a voz que reclama:

Em Lisboa a vida é lenta. Tem as raras palpitações dum peito desmaiado. Não há ambições explosivas; não há ruas resplandecentes cheias de tropéis de cavalgadas, de tempestades de ouro, de veludos lascivos: não há amores melodramáticos; não há as luminosas eflorescências das almas namoradas da arte; não há as festas feéricas, e as convulsões dos cérebros industriais. Há escassez de vida; um frio senso prático; a preocupação exclusiva do útil; uma seriedade enfática [...] (Ibid., p.627, v.II).

Tal opinião a respeito de Lisboa é compartilhada, inclusive, por Camilo Castelo Branco, desde a publicação dos nossos já conhecidos Mistérios de Lisboa. Os escritores parecem estar a par dos sucessos europeus – franceses, sobretudo – em que a honra de um novo mistério não viria mal à fortuna dos periódicos e à alegria dos leitores, mas sabem, contudo, que Lisboa não tem as mesmas emoções comoventes da sociedade parisiense, e que só resta apelar aos “recursos da imaginação”. Ironicamente, como sempre, afirma o escritor:

Se eu me visse assaltado pela tentação de escrever a vida oculta de Lisboa, não era capaz de alinhavar dois capítulos com jeito. O que eu conheço de Lisboa são os relevos, que se destacam nos quadros de todas as populações, com foros de cidades e de vilas. Isso não vale a honra do romance. Recursos de imaginação, se eu os tivera, não viria consumi-los aqui numa tarefa inglória. E, sem esses recursos, pareceu-me sempre impossível escrever os mistérios de uma terra que não tem nenhuns, e, inventados, ninguém os crê (CASTELO BRANCO, 1981, p.9).

Dessa forma, a celeuma provocada na sociedade lisboeta, cuja mulher, como divertidamente descreve Eça, após o almoço indolente, “vai-se pentear e corre o Diário de Notícias” (QUEIRÓS, 1986, p.1204, v.III), viera em grande parte como resposta a essa sonolência exacerbada. Além disso, a verificação do contexto literário é bastante aguda na percepção de Eça; sabia o escritor que “o que se pede é a comoção, a sensação, o sobressalto. [...]. Toda a literatura, teatro, romance e versos educam neste sentido: vibrar, sentir fortemente. [...]. É que a nós só nos excita, nos exalta, o drama! O drama, eis o nosso ideal! Fazer drama, eis a nossa perdição” (Ibid., p.1213-1214, v.III, grifos do autor). Nesta mesma crônica pertencente às Farpas, datada de 1872, escrita, portanto, dois anos após a aparição do Mistério da Estrada de Sintra, o panorama literário e a crítica de Eça parecem ainda ser os mesmos: entre numerosas invectivas contra a literatura de Dumas e Ponson du Terrail, entre outros, o escritor mostra a tendência predominante de leitura do então público leitor e a decadência da literatura em meio a estas produções:

Entre nós nenhuma senhora se dá às sérias leituras de ciência. Não da profunda ciência (o seu cérebro não a suportaria), mas mesmo dos lados pitorescos da ciência, curiosidades da botânica, história natural dos animais, maravilhas dos mares e dos céus. Isso lembra-lhes a mestra, o dever, a monotonia do colégio. Depois acham vulgar, insípido. Querem ser impressionadas, abaladas – preferem o drama e o romance. [...]. Entre nós lêem Ponson du Terrail e Dumas Filho e o seu bando de analistas lascivos (Ibid., p.1211, v. III).

Ao analisarmos este contexto, bem como a evolução da escrita e do pensamento de Eça pela leitura de suas crônicas e produções jornalísticas, atividade em muito auxiliada pela leitura da obra de João Gaspar Simões, inteiramente dedicada à vida e obra do escritor português, fica evidente que a concepção e a produção do primeiro romance de Eça e Ramalho teriam sido acompanhadas por intenções eminentemente críticas e satíricas, aspecto evidenciado pelo crítico português e por Ofélia de Paiva Monteiro. A escritura de um romance-folhetim, composto de seus mais variados ingredientes – peripécias romanescas, lances sentimentais e passionais, mistérios e suas desencerrações – não significaria, portanto, uma mera adesão de Eça e Ramalho aos parâmetros da literatura francesa; para tanto, é necessário analisar a composição do romance, bem como suas estratégias paródicas, já que uma superficial leitura poderia indicar uma “imaturidade” da primeira fase dos escritores.

Ainda sem ter-se revelado grande escritor, contudo, Eça alternava a pena entre folhetins líricos, fruto das influências literárias de sua época, ainda sob forte influxo do Romantismo, e um princípio de estilo que começa a moldar-se pela observação da realidade e dos costumes portugueses, em que “o Eça de Queiroz das “Farpas” vai desabrochando do lírico” (SIMÕES, 1945, p.159). Nesta época, surgem os escritos de fundo irônico, satírico e chocarreiro, do futuro escritor das Farpas e de O Conde de Abranhos. A evolução literária do escritor, que começa a despontar em novos estilos, faz-nos observar que “tão grosseiramente trivial é a existência que o melhor, concluiu Eça de Queiroz, é a gargalhada” (Ibid., p.161). É diante deste cenário apático do meio lisboeta, tão bem traçado pelo escritor, e de sua ainda iniciante produção literária, mas já principiando a afirmar-se em seu estilo característico, voltado à observação do real e lançando mão da ironia e da sátira, que surgirá a concepção do Mistério da Estrada de Sintra, que apresenta diversos pontos de contato com as páginas do Distrito de Évora, com as Prosas Bárbaras, e com as crônicas posteriores d’ As Farpas. No prefácio à edição em romance, escrito em 1884, os autores parecem revelar as intenções com as quais engendram os rocambolescos lances da narrativa:

Há catorze anos, numa noite de Verão, no Passeio Público, em frente de duas chávenas de café, penetrados pela tristeza da grande cidade que em torno de nós cabeceava de sono ao som de um soluçante pot-pourri dos Dois Foscaris, deliberamos reagir sobre nós mesmos e acordar tudo aquilo a berros, num romance tremendo, buzinado à Baixa das alturas do Diário de Notícias (QUEIRÓS, ORTIGÃO, 1963, p.7).


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Fonte:
Andréa Trench de Castro: “O romance-folhetim de Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Paulo Fernando da Motta de Oliveira). São Paulo, 2012

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