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O corpo feminino: tentação e transgressão em Os Maias
A mulher sempre foi assunto um
tanto polêmico na história da humanidade, oscilando entre sentimentos opostos,
ora exaltada, como na idade da pedra – em que as representações eram na maioria
figuras femininas –, ora depreciada, como Eva, a mulher judaica que não resistiu
à tentação nos jardins do Éden. A visão negativa em relação à mulher, sobretudo
nas sociedades de estruturas patriarcais, é oriunda do medo que ela inspirou devido
aos mistérios que sua própria natureza carrega, como considera Delumeau:
Para o homem, a maternidade permanecerá provavelmente sempre um mistério
profundo, e Karen Horney sugeriu com verossimilhança que o medo que a mulher
inspira ao outro sexo prende-se especialmente a esse mistério, fonte de tantos tabus,
terrores e ritos, que a religa, muito mais estreitamente que seu companheiro, à
grande obra da natureza e faz dela “o santuário do estranho”. Daí os destinos
diferentes e no entanto solidários dos dois parceiros da aventura humana: o
elemento materno representa a natureza e o elemento paterno a história. [...] Porque
mais próxima da natureza e mais bem informada de seus segredos, a mulher sempre
foi creditada, nas civilizações tradicionais, do poder não só de profetizar,
mas também de curar ou de prejudicar por meio de misteriosas receitas. Em contrapartida,
e de alguma maneira para valorizar-se, o homem definiu-se como apolíneo e
racional por oposição à mulher dionisíaca e instintiva, mais invadida que ele
pela obscuridade, pelo inconsciente e pelo sonho.
Além da maternidade, alguns fatores
fisiológicos também contribuíram para a depreciação da mulher ao longo dos tempos.
Os líquidos e secreções por ela expelidos foram motivo de várias interdições. A
menstruação, por exemplo, fazia da mulher um ser perigoso, impuro e ligado ao
mal. Assim sendo, ela ficava longe das funções sacerdotais e não lhe era
permitido pegar em armas. Essa condição menor da mulher chegou então aos temas
cristãos.
Apesar de o comportamento misógino
ter origem na Antiguidade Clássica, é no período medieval que ele será mais bem
incorporado na sociedade de forma a elevar a inferioridade
feminina, tão relacionada ao sexo. À época mediévica, a mulher devia ser
completamente subordinada ao marido – mentalidade desenvolvida pelos doutos da
Igreja – pois que herdeira de Eva, estava na origem do pecado e sempre passível
de ser ludibriada pelo demônio, inicialmente representado pela serpente. Por conta
disso, a cultura judaico-cristã teve a mulher como símbolo do pecado sexual,
ligada à sensualidade e à voluptuosidade. Relacionada aos desejos libidinosos,
a mulher era tida como irracional e perigosa, a responsável por conduzir o
homem ao pecado da carne. Essa mentalidade da mulher sedutora sobreviveu ao tempo,
e a todas as épocas, manifestando-se também na literatura. No enredo de Os Maias, as personagens femininas são responsáveis por provocar desejos libidinosos.
Assim, elas são sempre assunto entre os homens. Entre as qualidades por eles
exaltadas estão sempre os corpos femininos a despertar os seus desejos lascivos,
como podemos verificar no trecho subseqüente, quando Ega fala de Raquel Cohen
aos amigos:
e logo Ega, com o cálice de cognac ao lado, recomeçou as confidências, contou a volta a Lisboa,
a “Vila Balzac”, as manhãs deliciosas passadas lá com ela no calor dum ninho de
amor...
[...]
– Se vocês soubessem que corpo de mulher! – gritou ele de repente.
– Oh! meninos, que corpo de mulher... Imaginem vocês um peito...
Não há nenhum pudor nos comentários
feitos por João da Ega. Nem mesmo o amor que ele devota a Raquel, notável no
decorrer de toda a narrativa, o faz ser mais comedido entre os amigos.
Secundária do ponto de vista
eclesial, a mulher, inclinada ao pecado, se deu aos prazeres da carne. De
acordo com Macedo,
A inferioridade feminina provinha da fragilidade do sexo, da sua
fraqueza ante os perigos da carne. No centro da moral cristã existia uma aguda
desconfiança em relação ao prazer. Ele, segundo os moralistas, mantinha o espírito
prisioneiro do corpo, impedindo-o de se elevar em relação a Deus.
Dessa forma, sensualidade, voluptuosidade,
lascívia, prazer, desejo são termos que inevitavelmente retomam a mentalidade cristã
medieval quando o assunto é o sexo feminino.
Em se tratando de mulher e de sensualidade,
Maria Monforte é a primeira personagem de Os Maias a se enquadrar neste perfil. O seu comportamento é avesso ao
ideal de mulher “correta” da época. A própria forma de se vestir e de se portar
deixava a sensualidade transparente aos olhos de quem a observava. A beleza de
Monforte, descrita pela voz do narrador, explica o encantamento causado por ela
em Pedro da Maia:
Nunca Maria Monforte aparecera mais bela: tinha uma dessas toilettes excessivas e teatrais que
ofendiam Lisboa, e faziam dizer às senhoras que ela se vestia “como uma cômica”.
Estava de seda cor de trigo, com duas rosas amarelas e uma espiga nas tranças, opalas
sobre o colo e nos braços; e estes tons de seara madura batida do sol,
fundindo-se com o ouro dos cabelos, iluminando-lhe a carnação ebúrnea, banhando
as suas formas de estátua, davam-lhe o esplendor de uma Ceres. Ao fundo
entreviam-se os grandes bigodes loiros do Melo, que conversava de pé com o papá
Monforte – escondido como sempre no canto negro da frisa.
Diante do olhar fixo de Pedro, Maria
Monforte toma uma atitude que não seria a de uma mulher recatada, a de encarar o
rapaz, a exemplo da mulher tentadora, “acusada pelo outro sexo de ter
introduzido na terra o pecado, a desgraça e a morte.” O caráter de Maria é
questionado por Afondo da Maia, pai de Pedro, confirmando a ideia de que ela não
se encaixava no perfil de mulher ideal preservado pela sociedade lisboeta no
romance:
Uma noite que o coronel Sequeira, à mesa do whist, contava que
vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavalo, ambos muito bem e muito distingués,
Afonso, depois de um silêncio, disse com um ar enfastiado : – Enfim, todos os
rapazes têm as suas amantes... Os costumes são assim, a vida é assim, e seria
absurdo querer reprimir tais coisas. Mas essa mulher com um pai desses, mesmo
para amante acho má. O Vilaça suspendeu o baralhar das cartas, e ajeitando os
óculos de oiro exclamou com espanto: – Amante ! Mas a rapariga é solteira, meu
senhor, é uma menina honesta!... Afonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos
começaram a tremer−lhe; e voltando−se para o administrador, numa voz que tremia
um pouco também: – O Vilaça decerto não supõe que meu filho queira casar com
essa
criatura...
Afonso da Maia é o patriarca da
família Maia, um homem correto e defensor dos bons costumes. A desaprovação do
namoro entre Pedro e Maria por parte de Afonso causou nela indignação. Diante disso,
Maria faz questão de mostrar ao patriarca que de nada vale a reprovação do avô
diante dos prazeres carnais que ela daria a Pedro. O seu corpo era mais importante
que os valores sociais porque através dele Maria conseguia persuadir Pedro de
forma a tê-lo para si, tornando-se insignificante a reprovação do avô: “Odiou o
velho; e tinha apressado o casamento, aquela partida triunfante para a Itália, para
lhe mostrar bem que nada valiam genealogias, avós godos, brios de família –
diante dos seus braços nus...” E era com o seu corpo que Maria Eduarda
consolava Pedro da Maia, diante do qual este se entregava extasiadamente, como
podemos constatar na seguinte passagem:
- Que tens tu, amor? Estás amuado?
- Não, não estou amuado...
- Olha então para mim!...
Colava o seu belo seio contra o peito dele; as mãos corriam-lhe os
braços numa carícia lenta e quente, dos pulsos aos ombros; depois, com um lindo
olhar, estendia-lhe os lábios. Pedro colhia neles um longo beijo, e ficava consolado
de tudo.
De acordo com o imaginário cristão,
Maria age como autêntica representação de Succubus e usa seu corpo para atrair Pedro,
fazendo-o cair em tentação. Da mesma forma como ocorreu no Paraíso bíblico, a
mulher aqui também foi responsável por persuadir o companheiro; “como filhas de
Eva, tinham o podem de seduzir o homem e o deixar a mercê do Diabo.” Diante disso,
lembramos George Duby, que ao estudar as damas do século XII afirma que os clérigos
apontam na natureza feminina três pecados principais: “elas desviam o curso das
coisas” através da vaidade, são “hostis à tutela masculina” e possuem o maior
dos vícios em sua natureza: a luxúria, desejo que as queima por dentro, e as
faz “correr atrás dos amantes”. Segundo Me Namara apud Bloch, a figura feminina
absolve o peso daquilo que é “inferior, depreciado, escandaloso e perverso”. No
mesmo sentido, Delumeau afirma: “O homem procurou um responsável para o sofrimento,
para o malogro, para o desaparecimento do paraíso terrestre, e encontrou a mulher.”
Dentro desse contexto, resgatamos em
Os Maias a situação em que a mulher é que procura o homem, e não o contrário,
como deveria acontecer de acordo com os costumes da época, que valorizava a virilidade.
A Condessa de Gouvarinho, mulher casada, vai ao consultório de Carlos com a
desculpa de que seu filho está adoentado, apenas para se expor ao rapaz, e este
aprecia sua ousadia. A narração desta cena não deixa dúvidas quanto à intenção
luxuriante da Gouvarinho:
Realmente gostava daquela
audácia dela – ter vindo assim ao consultório, toda escondida, quase mascarada numa
grande toil ete negra, inventando um caroço no pescocinho são de Charlie, para o
ver, para dar um nó brusco e mais apertado naquele leve fio de relações que ele
tão negligentemente deixara cair e quebrar...
O Ega dessa vez não fantasiara; aquele bonito corpo oferecia-se tão
claramente como se se despisse. Ah! Se ela fosse de sentimentos errantes e
fáceis – que bela flor a colher, a respirar, a deitar fora depois! Mas não; como
dizia o Batista, a senhora condessa nunca se tinha divertido.
Mais uma vez a mulher se porta como
o fez a serpente no Paraíso, tentadora e maliciosa. O comportamento da
condessa, nesse instante, nos reporta à Europa medieval, período em que as
mulheres eram consideradas mais libidinosas que os homens, necessitadas de mais
sexo que eles e passíveis de mais prazer. “Os homens eram tidos como criaturas racionais,
ativas e mais próximas do reino espiritual, enquanto as mulheres eram naturalmente
mais inclinadas à luxúria.”
Assim, podemos afirmar que o modo como
a Gouvarinho agiu caracteriza um resíduo medieval,
visto que tal comportamento é oriundo de um passado e retomado num tempo posterior
no qual viveu a sociedade de Lisboa. Assim como Maria Monforte, a Condessa de
Gouvarinho representa a mulher transgressora de acordo com a mentalidade cristã,
que sempre pregou a mulher comedida. Sempre submissa, a mulher “ideal” deveria ser
sempre recatada e nunca se dar à luxúria, mas a amante de Carlos sempre o
procura:
Por fim a condessa arrancara-lhe a promessa de a ir encontrar,
justamente nessa segunda-feira de manhã, à casa da titi, que estava em Santarém
– porque tinha sempre o apetite perverso e requintado de o apertar nos braços
nus, em dias que o devesse receber na sua sala, mais tarde, e com cerimônia.
O comportamento da personagem reafirma
a cristalização da mentalidade medieval cristã em relação ao comportamento da mulher
e a sua figura fraca, luxuriante e ao mesmo tempo tentadora na obra eciana.
Além disso, o fato de Eça condenar o modo de agir da personagem só vem
confirmar a presença residual da mentalidade mediévica na obra.
O desejo de estar com Carlos era
tanto que chegou a mentir outra vez ao dizer que o filho se encontrava
adoentado para ficar por um momento a sós com o Maia na ocasião de um jantar na
casa dela:
E aí, bruscamente, ela parou, atirou os braços ao pescoço de Carlos,
os seus lábios prenderam-se aos dele num beijo sôfrego, penetrante, completo, findando
num soluço de desmaio... Ele sentia aquele corpo estremecer, escorregar-lhe
entre os braços, sobre os joelhos sem força.361
Perante o comportamento ativo da Gouvarinho,
reportamo-nos ao período em que a cópula era algo inerente ao casamento, levantando
“a antiga noção do ‘débito conjugal’” a fim de evitar o adultério e a fornicação.
No século XIII, sob instituição de Alberto Magno, só o homem deveria manifestar
a vontade de ter relações com sua mulher; o desejo dela deveria permanecer implícito:
“O homem poderia manifestar-se claramente quando desejasse a sua mulher; esta, porém,
deveria eximir-se de tal solicitação, ficando o marido obrigado a decifrar no semblante
ou na sutileza gestual de sua esposa a vontade do ato carnal.”
Observemos que a atitude da condessa
é completamente contrária ao comportamento ideal de uma mulher do século mencionado
no que concerne aos prazeres carnais segundo os preceitos componentes do imaginário
cristão que perfazem a mentalidade mediévica. Sua audácia é tanta que o narrador
chega a compará-la ao homem, que em geral é o agente da relação amorosa – “E
naquela insistência ela era o homem, o sedutor, com a sua veemência de paixão ativa,
tentando-o, soprando-lhe o desejo; enquanto ele parecia a mulher, hesitante e assustada.”
Tal comportamento nos reporta ao livro A Idade Média – a cavalaria e as cruzadas, de Ivan Lins, no qual consta que a mulher era um ser associado ao
diabo pois era a causadora da perdição do gênero humano. Nesse contexto, “chegaram
alguns teólogos a sustentar ser a mulher destituída de alma.”, pois o homem foi
gerado do sopro divino e ela não. Dessa forma, a mulher foi depreciada a tal ponto
que, segundo os monges, “o diabo era sempre mais temível quando revestia a fórma
[sic] feminina.” O medo que as mulheres provocavam nos homens operou ordens,
como o 3º cânon do 1º Concílio de Mâcon, reunido em fins do 6º século, que entre
outras proibições estava a não entrada de mulheres nos quartos dos bispos, mesmo
que essas fossem da família: “É proibido, aos bispos, deixar entrar, em seus quartos,
qualquer mulher, a não ser na presença de dois padres ou de dois diáconos...”. Ivan
Lins cita, nesse contexto, o artigo 72 da Regra dos Templários, redigida por
São Bernardo no século XII, em que diz:
“É mui perigoso e arriscado atender com curiosidade e cuidado ao
rosto das mulheres. E assim nenhum se atreva a dar óculo a viúva, nem donzela,
nem a mulher alguma, ainda mui chegada em parentesco, como mãe, irmã ou tia.
Fuja o Cavaleiro de Cristo dos afagos da mulher que põem [sic] o
homem no último risco; para que com pura vida, e segura consciência chegue a gozar
de Deus para sempre. Amen”.
Como podemos notar, a figura
feminina era tida como agente do Mal, tal qual se comporta a Condessa de
Gouvarinho, residualmente em relação ao período há pouco referido,
comportando-se como a tentadora, cometedora de adultério.
Algumas passagens da Bíblia Sagrada
se referem ao adultério. O sétimo mandamento, por exemplo, diz: “Não adulterarás”,
e quando se fala neste assunto, é o adultério por parte da mulher que vem em princípio
à mente, o que reforça a ideia de que as mulheres são mais suscetíveis ao pecado
da luxúria, feminino por excelência, conforme pensaram os representantes da
Igreja.
A mulher em Os Maias, além de adúltera, aparece prostituída, condição que também a
relaciona à luxúria. É o caso de Maria Eduarda. Num dado momento, o leitor,
assim como Carlos, descobre que Maria, então amante deste, fora prostituta. Castro
Gomes, suposto marido de Eduarda, chega ao Ramalhete a procura de Carlos da
Maia; este o recebe no salão grande. Gomes dizia ter um motivo urgente que
justificava sua chegada repentina. Castro Gomes mostra a carta anônima que recebera
no Rio de Janeiro contando que Eduarda – sua suposta mulher – e Carlos eram
amantes. Gomes então afirma que Maria não é sua mulher, e diz quem ela é realmente
num acréscimo de quem já quase terminara o assunto:
– Devo apenas acrescentar, para evitar
a V. Ex.ª suspeitas injustas, que aquela senhora não é uma menina que eu tivesse
seduzido, e a quem recuse uma reparação. A pequerruchinha que ali anda não é
minha filha... Eu conheço a mãe somente há três anos... Vinha dos braços dum
qualquer, passou para os meus... Posso pois dizer, sem injúria, que era uma
mulher
que eu pagava.
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Fonte:
Patrícia Elainny Lima Barros: “Os prazeres do corpo: gula e luxúria em Os Maias, de Eça de Queiroz”. (Dissertação submetida ao curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do ceará como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras com concentração na área de Literatura Comparada. Linha de Pesquisa: Estudos Comparados de Literaturas de Línguas Modernas Orientadora: Prof.ª Dr.ª Elizabeth Dias Martins). Fortaleza – CE, 2011
Fonte:
Patrícia Elainny Lima Barros: “Os prazeres do corpo: gula e luxúria em Os Maias, de Eça de Queiroz”. (Dissertação submetida ao curso de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do ceará como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Letras com concentração na área de Literatura Comparada. Linha de Pesquisa: Estudos Comparados de Literaturas de Línguas Modernas Orientadora: Prof.ª Dr.ª Elizabeth Dias Martins). Fortaleza – CE, 2011
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