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A
Relíquia: dinheiro
e religião
Como já foi observado, A Relíquia é uma obra neopicaresca,
pois possui todas as características da picaresca clássica. Com isso, torna-se
interessante material de estudo para tratar da moral e da culpa, ou melhor, da
sua ausência, visto que todas as peripécias de seu personagem principal giram
em torno desse assunto.
O romance
também é válido para analisar o tema porque contém as “bengaladas” de Eça de
Queirós para uma sociedade hipócrita em relação à religião e aos seus próprios
atos.
Pertencente ao grupo de obras publicadas na década de 70, A Relíquia traz
em si a “culpabilização do mundo e da consciência” tão presentes nos romances
do autor . Ao tratar da manipulação que Teodoro faz da religião da Titi, Eça
parece estar criando uma tese — anterior à criação das religiões, a Consciência
deve nortear o homem para que ele não se perca no vício e nas mentiras, como
fez Teodorico. Apenas a Consciência é capaz de moralizar, já que, apesar de ter
sido criado sob bases religiosas, foi exatamente isso o que, aparentemente,
causou o desvirtuamento do protagonista.
Antes de observarmos
o desenvolvimento da obra, é importante a
reflexão sobre o destinatário dessa tese queirosiana. Os recentes estudos sobre
o masculino apontam o século XIX como um período de efervescência da
demonstração do “ser homem”7. É certo que a maioria das obras do século
vitoriano estava destinada às mulheres, apesar da variedade de temas e da
abrangência que possuíam na sociedade burguesa. No entanto, é possível observar
um claro diálogo entre o escritor e seu público-alvo n’ A Relíquia, de
Eça de Queirós. Vários críticos já apontaram o caráter epistolográfico da obra (REIS
& LOPES, 1987: 35). Fica evidente ainda no prólogo que se trata de romance
com destinatários certos, uma vez que o objetivo parece ser dar uma “lição
lúcida e forte” (QUEIRÓS, 1997: 845).
Acreditando
ter atingido a maturidade plena, Raposão explica porque escreve suas memórias e
as apresenta como um meio de aplicar uma lição de moral. É sabido que boa parte
da obra de Eça constitui-se sobre a base de “culpabilização do mundo e da consciência”,
todavia, é importante ressaltar qual é a relação entre o autor e o destinatário
dessas “bengaladas”. Tratando-se A Relíquia da história de um legítimo
trapaceiro que faz de tudo para ascender socialmente, inclusive ludibriar uma
tia fanaticamente religiosa, fica óbvio que o romance não estava destinado a
senhoras leitoras do século XIX.
Salientando
a filosofia da sobrevivência do pícaro Raposão, chegamos à conclusão de que sua
falta de moral e sua ausência de arrependimento diante dos fatos é conseqüência
incontestável de sua personalidade desviada (em relação ao que a sociedade
esperava de um homem médio burguês do século XIX); desvio este plenamente
justificável pela mesma lógica maquiavélica de sobrevivência. Enquanto o
esperado de um burguês é que ele seja um homem provedor, forte e persuasivo
diante da mulher, Raposão é dependente do dinheiro de d. Patrocínio (aquela que
literalmente “patrocina”), fraco e dominado por mulheres.
Torna-se
claro, portanto, que Eça, ao criticar a sociedade que legitima o surgimento e o
crescimento de um Raposão, buscava atingir
em primeira instância um tipo de homem burguês que visse as ações e as relações
do protagonista com algo astucioso, sim, mas perfeitamente condizente com a postura
de um ambicioso qualquer nascido no século vitoriano.
Para falarmos
das ações da Consciência na vida de Teodoro, é preciso pensar o protagonista d’
A Relíquia em dois momentos distintos. O Teodorico da infância traz, é
certo, dentro de si o germe da
imoralidade, porém ainda não é o Raposão adulto, que busca o gozo pleno através
de inúmeros ardis.
Logo no Prólogo, o narrador explica o porquê
de suas memórias:
Decidi compor, nos vagares deste verão, na
minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes de Lindoso), as memórias da
minha Vida — que neste século, tão consumindo pelas incertezas da Inteligência e
tão angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra, penso eu e pensa meu
cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte (QUEIRÓS, 1997: 845).
Independente
das ações que vai protagonizar na história que começa a contar, Teodoro
acredita-se uma lição de moral “lúcida e forte”. Ainda assim, prefere ser
chamado de profanador de túmulos a adorador de antepassados, e tudo isso para
agradar à Burguesia Liberal. Será a diluição entre as figuras do autor e do
personagem? Será que Teodorico realmente se moralizou? Antes de refletirmos
sobre isso, vale lembrar o final do Prólogo, onde há a reafirmação do objetivo
realista de moralização: “...nestas páginas de repouso e de férias, onde a Realidade
sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da História, ora
mais livre e saltando sob a carapaça vistosa da Farsa” (QUEIRÓS, 1997: 847).
Teodoro, o
menino que cresce sem o amor da mãe e logo perde o pai, chega à casa da Titi esperando
encontrar um amor substituto de mãe. Todavia, descobre na figura da tia Patrocínio
que o mundo não é tão bom quanto lhe parecia, na clássica cena em que recebe da
tia “um beijo vago, duma frialdade de pedra” (QUEIRÓS, 1997: 52).
Quando a tia
manda que passe pelo oratório e faça o sinal da cruz, Teodoro tem o primeiro
contato com os objetos de culto religioso. Os santos, a luz das velas e o
Cristo feito em ouro deixam Teodorico deslumbrado. Sua ambição já aparece
quando pensa que no Céu católico tudo será como a perfeição digna de um Céu
merece: anjos e santos recobertos de ouro e talvez de pedras preciosas.
Ainda sem
conhecer o poder do dinheiro, Teodoro conclui facilmente: “Que rica era a titi!
Era necessário ser bom, agradar sempre à titi!” (QUEIRÓS, 1997: 863). Só vai, entretanto,
começar a desfrutar os prazeres que o dinheiro da tia pode oferecer quando,
após anos de internato, passa a morar na hospedagem das Pimentas, onde conhece
sem moderação, todas as independências, e as
fortes delicias da vida. Nunca mais rosnei a delambida oração a S. Luís
Gonzaga, nem dobrei o meu joelho viril diante de imagem benta que usasse
auréola na nuca; embebedei-me com alarido nas Camelas; afirmei a minha robustez,
esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carme com
saborosos amores no Terreiro da Erva; vadiei ao luar, ganindo fados; usava moca;
e como a barba me vinha, basta e negra, aceitei com orgulho a alcunha de Raposão (QUEIRÓS, 1997: 857).
A maturidade
e a virilidade chegam para começar a transformação de Teodoro em Raposão.
MEDINA (1988:556), citando Larbaud, já atenta para a proximidade semântica de “Raposão”
e “raposa”, nome que está ligado à idéia de astúcia, ardil. As maiores astúcias começam quando, apesar da
relativa liberdade da qual goza longe de casa, Teodoro escreve à tia contando
sobre os falsos estudos, jejuns e novenas e sofre quando a rotina das práticas religiosas
torna-se realidade nas férias de verão, ao lado da tia. Mesmo tendo percebido
que seu caminho e sua salvação não estão na religião, Teodoro começa a entender
que apenas por meio dela conseguirá agradar a tia, que está presa a uma beatice
cega.
Ainda aqui
não é insensível. Teodoro conhece Xavier, um parente afastado, e fica emocionado
com a pobreza em que vivem este e a família, composta por uma espanhola, com quem
é amigado, e seus três filhos. Chega a pensar em pedir ajuda à tia, mas quando
d. Patrocínio critica Xavier por suas “relaxações”, vê-se, apesar de tudo,
obrigado a concordar, já que precisa garantir a sua própria sobrevivência.
A conduta hipócrita
de Teodoro agrada cada vez mais à Titi, que acredita no seu puritanismo.
Esconde dela seu interesse pelas mulheres, enquanto encontra-se escondido com Adélia.
E faz mais, chega a simular uma carta em que se mostra chateado com um colega
que o convida para “relaxações”. Em diversas situações, finge teatralmente o
encontro com as maravilhas da religião no oratório. Toda essa encenação do
protagonista deslumbra a tia que, como uma boa burguesa, deixa-se levar por
adornos de santos e arroubos de transe religioso:
em festas com órgão, e um Santíssimo
armado com luxo, e uma rica procissão na rua, e boas vozes, e respeito, e
imagens de dar gosto, ninguém bate cá os nossos portugueses!... (QUEIRÓS, 1997: 882).
A idéia
que se tem é que Teodoro não tem problemas com a Consciência. A Culpa é do
mundo, que o deixou sem amor de mãe, órfão, pobre, dependente de parentes. A
Culpa é da Titi, que não soube dar-lhe afeto de mãe, que ama apenas o Cristo de
ouro no oratório.
Entretanto,
as coisas começam a se modificar ao descobrir que a Titi pretende deixar a herança
para a Igreja e que seu rival é Jesus Cristo em pessoa. Ambiciosamente, Teodoro
deduz que é preciso aumentar sua “fé”:
Estugando o passo pela Rua Nova-da-Palma,
eu sentia agora bem claramente, bem amargamente, o erro da minha vida... Sim, o
erro! Porque até aí, essa minha devoção complicada, com que eu procurara
agradar à titi e ao seu ouro, fora sempre regular, mas nunca fora fervente.
(...) Até ai a Titi podia dizer com aprovação: "É exemplar". Era-me preciso,
para herdar, que ela exclamasse um dia, babada, de mãos postas: "E
santo!" Sim! Eu devia identificar-me tanto com as cousas eclesiásticas e
submergir-me nelas de tal sorte, que a titi, pouco a pouco, não pudesse
distinguir-me claramente desse conjunto rançoso de cruzes, imagens, ripanços,
opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era para ela a Religião e o
Céu; (...) Então, evidentemente, ela testaria em meu favor — certa que testava
em favor de Cristo e da sua doce Madre Igreja! (QUEIRÓS, 1997: 872).
É a partir
desse momento que os efeitos da Consciência de Teodoro decaem até a extinção
completa, pois passa a agir em nome da ambição. Não visa mais somente à sobrevivência.
Agora quer todo o ouro da titi, ouro que aprendeu a admirar desde a infância. Uma
vez que o Mundo o diminuiu, com sua origem baixa e sua infância triste, resolve
gozar com o que, supõe, sempre lhe faltou. Cada vez que engana a tia não é só
para garantir a casa e a comida que ela lhe dá, mas para ter o gozo antevisto e
suposto sem limite.
A Culpa por
seus atos não deixa de ser sempre do outro, já que não abandona a posição de
vítima quando passa a agir em benefício do gozo próprio. Nunca se pode esquecer
que Teodoro tem uma profissão, cultura e poderia iniciar sua própria vida, sem
depender da Titi. Mas é claro que Raposão sucumbe à tentação. Por que ele não “tocaria
a campainha”? Por que, como ele mesmo diz, não “fartaria o bandulho”? Já sob a
ótica de Eça, a sociedade não presta, precisa levar uma bengalada; ninguém
melhor do que Raposão para recebê-la.
Teodoro dá
então lições de humildade e devoção, pensando em ludibriar a tia até a sua morte,
quando herdaria tudo por ter sido admiravelmente exemplar. Isso ocorre até o momento
em que surge a oportunidade de ir para Jerusalém, representar a tia Patrocínio
na Terra Santa. Aí surge realmente a grande chance do pícaro Raposão — trazer a
relíquia tão ardentemente desejada e pedida pela titi.
Assim que
chega a Alexandria, tem um caso com Miss Mary, uma luveira inglesa de reputação
contestável, que lhe deixa de lembrança uma camisa de dormir, chamada por Teodorico
de “relíquia de amor”. Um leitor mais desatento pode não se dar conta, mas
desde já Eça inicia o paralelismo entre as duas relíquias, ambas profanas e
desejadas por Raposão, ambas causadoras de sua ruína. A relíquia de Mary traz a
seguinte dedicatória: "Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em
lembrança do muito que gozamos!" (QUEIRÓS, 1997: 897). Além da importância
óbvia que têm as palavras e os objetos na vida do pícaro, não é possível deixar
de relacionar o gozo antevisto de Teodoro com a relíquia da tia e o gozo com Mary,
que irá destruir futuramente o gozo supostamente sem limite sonhado desde a infância.
Na chegada
a Jerusalém inicia-se a desconstrução do ideal religioso burguês vitoriano. A idéia
de santuário sublime, Terra Santa e morada eterna do Cristo adorado pela titi é
demolida pela imagem de uma Jerusalém humana e cheia de “Teodoros” vendendo
ridículas relíquias.
Recusado
por uma prostituta, Raposão sente saudades de Portugal,
onde não encontraria, nos corredores
adormecidos, uma bota severa e bestial! lá nenhum corpo bárbaro fugiria, com
lágrimas, à carícia dos meus dedos. Dourado pelo ouro da Titi, o meu amor não
seria jamais ultrajado, nem a minha concupiscência jamais repelida. Ah! meu
Deus! Assim eu lograsse, pela minha santidade, cativar a Titi!... (QUEIRÓS, 1997: 917)
Ligando
sempre o amor ou o sexo (ambos só obtidos através de prostitutas) ao dinheiro da
tia, resolve escrever para ela, dizendo que está à procura da “grande relíquia”,
aumentando ainda mais seu repertório de falsidades ao relatar visões de santos
e conversas com imagens, nas quais d. Patrocínio é sempre louvada.
Ainda não
estamos na passagem do sonho, mas Teodoro mostra-se dúbio, como é comum a todo
pícaro:
Obedecendo à recomendação da Titi,
despi-me, e banhei-me nas águas do Batista. Ao princípio, enleado de emoção
beata, pisei a areia reverentemente como se fosse o tapete de um altar-mor: e
de braços cruzados, nu, com a corrente lenta a bater-me os joelhos, pensei em
S. Joãozinho, sussurrei um Padre-Nosso. Depois ri, aproveitei aquela bucólica banheira
entre árvores; Pote atirou-me a minha esponja; e ensaboei-me nas águas sagradas,
trauteando o fado da Adélia.
(...)
Estremeci. E penetrado pelas emanações
divinas dessas águas, desses montes, sentia-me forte — e igual aos homens
fortes do Êxodo. Pareceu-me ser um deles, familiar de Jeová, e tendo chegado do
negro Egito com as minhas sandálias na mão
(...)
Não me contive, arranquei o capacete,
soltei por sobre Canaã este urro piedoso:
— Viva Nosso Senhor Jesus Cristo! Viva
toda a Corte do Céu!
(QUEIRÓS, 1997: 920)
Em
momentos como esse, não é possível saber se Raposão está envolvido no ambiente
religioso que Jerusalém lhe proporciona e deixa-se levar pelos arroubos
religiosos que são comuns a sua tia ou se seus vivas a Cristo são apenas em
função do gozo antevisto da felicidade da tia com a falsa relíquia.
Teodoro, “com
um brilho de visitação celeste”, encontra os galhos espinhosos que se tornarão
a futura relíquia. Teme que a falsa coroa de espinhos de Jesus Cristo tenha
alguma virtude verdadeira e d. Patrocínio fique boa dos seus inúmeros males.
Segundo Raposão, ele só “começaria a viver — quando ela começasse a morrer”.
Instaura-se o conflito interno (religioso ou filosófico?) de Teodorico — seriam
verdadeiros todos os “ensinamentos” da Titi? Imagens, relíquias, visões teriam
algum significado e poder de decisão sobre o seu destino? Eça coloca a Religião
ao lado da Ciência. É por meio de Tópsius que Teodoro tem a coragem necessária
para forjar a relíquia, uma vez que é o sábio quem lhe garante, com sua ciência,
ser capaz de
afiançar à senhora sua tia, da parte de um
homem que a Alemanha escuta em questões de crítica arqueológica, que o galho
que lhe levar daqui, arranjado em coroa, foi...
— Foi? — berrei ansioso.
— Foi o mesmo que ensangüentou a fronte do
Rabi Jeschoua Natzarieh, a quem os latinos chamam Jesus de Nazaré, e outros
também chamam o Cristo!...
(QUEIRÓS, 1997: 925)
Inicia-se então
o período do sonho, narrativa que abarca um terço do livro e vai mostrar a
Revelação tão refutada pela crítica. Jerusalém, a cidade da Revelação católica,
será também o templo da Revelação da Verdade, do cristianismo humano e da moral
anterior a qualquer religião.
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Fonte:
Ana Leticia Pereira Marques Ferreira: “A Relíquia — romance neopicaresco vitoriano” (Dissertação apresentada ao Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de Mestre em Literatura Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Maria do Amparo Tavares Maleval). Rio de Janeiro, 2005.
Fonte:
Ana Leticia Pereira Marques Ferreira: “A Relíquia — romance neopicaresco vitoriano” (Dissertação apresentada ao Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de Mestre em Literatura Portuguesa. Orientadora: Profª. Drª. Maria do Amparo Tavares Maleval). Rio de Janeiro, 2005.
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