16/12/2013

A Relíquia, Eça de Queirós

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A Relíquia: dinheiro e religião


Como já foi observado, A Relíquia é uma obra neopicaresca, pois possui todas as características da picaresca clássica. Com isso, torna-se interessante material de estudo para tratar da moral e da culpa, ou melhor, da sua ausência, visto que todas as peripécias de seu personagem principal giram em torno desse assunto.

O romance também é válido para analisar o tema porque contém as “bengaladas” de Eça de Queirós para uma sociedade hipócrita em relação à religião e aos seus próprios atos.

Pertencente ao grupo de obras publicadas na década de 70, A Relíquia traz em si a “culpabilização do mundo e da consciência” tão presentes nos romances do autor . Ao tratar da manipulação que Teodoro faz da religião da Titi, Eça parece estar criando uma tese — anterior à criação das religiões, a Consciência deve nortear o homem para que ele não se perca no vício e nas mentiras, como fez Teodorico. Apenas a Consciência é capaz de moralizar, já que, apesar de ter sido criado sob bases religiosas, foi exatamente isso o que, aparentemente, causou o desvirtuamento do protagonista.

Antes de observarmos o desenvolvimento da obra, é  importante a reflexão sobre o destinatário dessa tese queirosiana. Os recentes estudos sobre o masculino apontam o século XIX como um período de efervescência da demonstração do “ser homem”7. É certo que a maioria das obras do século vitoriano estava destinada às mulheres, apesar da variedade de temas e da abrangência que possuíam na sociedade burguesa. No entanto, é possível observar um claro diálogo entre o escritor e seu público-alvo n’ A Relíquia, de Eça de Queirós. Vários críticos já apontaram o caráter epistolográfico da obra (REIS & LOPES, 1987: 35). Fica evidente ainda no prólogo que se trata de romance com destinatários certos, uma vez que o objetivo parece ser dar uma “lição lúcida e forte” (QUEIRÓS, 1997: 845).

Acreditando ter atingido a maturidade plena, Raposão explica porque escreve suas memórias e as apresenta como um meio de aplicar uma lição de moral. É sabido que boa parte da obra de Eça constitui-se sobre a base de “culpabilização do mundo e da consciência”, todavia, é importante ressaltar qual é a relação entre o autor e o destinatário dessas “bengaladas”. Tratando-se A Relíquia da história de um legítimo trapaceiro que faz de tudo para ascender socialmente, inclusive ludibriar uma tia fanaticamente religiosa, fica óbvio que o romance não estava destinado a senhoras leitoras do século XIX.

Salientando a filosofia da sobrevivência do pícaro Raposão, chegamos à conclusão de que sua falta de moral e sua ausência de arrependimento diante dos fatos é conseqüência incontestável de sua personalidade desviada (em relação ao que a sociedade esperava de um homem médio burguês do século XIX); desvio este plenamente justificável pela mesma lógica maquiavélica de sobrevivência. Enquanto o esperado de um burguês é que ele seja um homem provedor, forte e persuasivo diante da mulher, Raposão é dependente do dinheiro de d. Patrocínio (aquela que literalmente “patrocina”), fraco e dominado por mulheres. 

Torna-se claro, portanto, que Eça, ao criticar a sociedade que legitima o surgimento e o crescimento de um Raposão,  buscava atingir em primeira instância um tipo de homem burguês que visse as ações e as relações do protagonista com algo astucioso, sim, mas perfeitamente condizente com a postura de um ambicioso qualquer nascido no século vitoriano.

Para falarmos das ações da Consciência na vida de Teodoro, é preciso pensar o protagonista d’ A Relíquia em dois momentos distintos. O Teodorico da infância traz, é certo,  dentro de si o germe da imoralidade, porém ainda não é o Raposão adulto, que busca o gozo pleno através de inúmeros ardis.

 Logo no Prólogo, o narrador explica o porquê de suas memórias: 

Decidi compor, nos vagares deste verão, na minha quinta do Mosteiro (antigo solar dos condes de Lindoso), as memórias da minha Vida — que neste século, tão consumindo pelas incertezas da Inteligência e tão angustiado pelos tormentos do Dinheiro, encerra, penso eu e pensa meu cunhado Crispim, uma lição lúcida e forte (QUEIRÓS, 1997: 845).

Independente das ações que vai protagonizar na história que começa a contar, Teodoro acredita-se uma lição de moral “lúcida e forte”. Ainda assim, prefere ser chamado de profanador de túmulos a adorador de antepassados, e tudo isso para agradar à Burguesia Liberal. Será a diluição entre as figuras do autor e do personagem? Será que Teodorico realmente se moralizou? Antes de refletirmos sobre isso, vale lembrar o final do Prólogo, onde há a reafirmação do objetivo realista de moralização: “...nestas páginas de repouso e de férias, onde a Realidade sempre vive, ora embaraçada e tropeçando nas pesadas roupagens da História, ora mais livre e saltando sob a carapaça vistosa da Farsa” (QUEIRÓS, 1997: 847).

Teodoro, o menino que cresce sem o amor da mãe e logo perde o pai, chega à casa da Titi esperando encontrar um amor substituto de mãe. Todavia, descobre na figura da tia Patrocínio que o mundo não é tão bom quanto lhe parecia, na clássica cena em que recebe da tia “um beijo vago, duma frialdade de pedra” (QUEIRÓS, 1997: 52).

Quando a tia manda que passe pelo oratório e faça o sinal da cruz, Teodoro tem o primeiro contato com os objetos de culto religioso. Os santos, a luz das velas e o Cristo feito em ouro deixam Teodorico deslumbrado. Sua ambição já aparece quando pensa que no Céu católico tudo será como a perfeição digna de um Céu merece: anjos e santos recobertos de ouro e talvez de pedras preciosas.

Ainda sem conhecer o poder do dinheiro, Teodoro conclui facilmente: “Que rica era a titi! Era necessário ser bom, agradar sempre à titi!” (QUEIRÓS, 1997: 863). Só vai, entretanto, começar a desfrutar os prazeres que o dinheiro da tia pode oferecer quando, após anos de internato, passa a morar na hospedagem das Pimentas, onde conhece

sem moderação, todas as independências, e as fortes delicias da vida. Nunca mais rosnei a delambida oração a S. Luís Gonzaga, nem dobrei o meu joelho viril diante de imagem benta que usasse auréola na nuca; embebedei-me com alarido nas Camelas; afirmei a minha robustez, esmurrando sanguinolentamente um marcador do Trony; fartei a carme com saborosos amores no Terreiro da Erva; vadiei ao luar, ganindo fados; usava moca; e como a barba me vinha, basta e negra, aceitei com orgulho a alcunha de Raposão (QUEIRÓS, 1997: 857).

A maturidade e a virilidade chegam para começar a transformação de Teodoro em Raposão. MEDINA (1988:556), citando Larbaud, já atenta para a proximidade semântica de “Raposão” e “raposa”, nome que está ligado à idéia de astúcia, ardil.  As maiores astúcias começam quando, apesar da relativa liberdade da qual goza longe de casa, Teodoro escreve à tia contando sobre os falsos estudos, jejuns e novenas e sofre quando a rotina das práticas religiosas torna-se realidade nas férias de verão, ao lado da tia. Mesmo tendo percebido que seu caminho e sua salvação não estão na religião, Teodoro começa a entender que apenas por meio dela conseguirá agradar a tia, que está presa a uma beatice cega.

Ainda aqui não é insensível. Teodoro conhece Xavier, um parente afastado, e fica emocionado com a pobreza em que vivem este e a família, composta por uma espanhola, com quem é amigado, e seus três filhos. Chega a pensar em pedir ajuda à tia, mas quando d. Patrocínio critica Xavier por suas “relaxações”, vê-se, apesar de tudo, obrigado a concordar, já que precisa garantir a sua própria sobrevivência.

A conduta hipócrita de Teodoro agrada cada vez mais à Titi, que acredita no seu puritanismo. Esconde dela seu interesse pelas mulheres, enquanto encontra-se escondido com Adélia. E faz mais, chega a simular uma carta em que se mostra chateado com um colega que o convida para “relaxações”. Em diversas situações, finge teatralmente o encontro com as maravilhas da religião no oratório. Toda essa encenação do protagonista deslumbra a tia que, como uma boa burguesa, deixa-se levar por adornos de santos e arroubos de transe religioso:

em festas com órgão, e um Santíssimo armado com luxo, e uma rica procissão na rua, e boas vozes, e respeito, e imagens de dar gosto, ninguém bate cá os nossos portugueses!... (QUEIRÓS, 1997: 882).


A idéia que se tem é que Teodoro não tem problemas com a Consciência. A Culpa é do mundo, que o deixou sem amor de mãe, órfão, pobre, dependente de parentes. A Culpa é da Titi, que não soube dar-lhe afeto de mãe, que ama apenas o Cristo de ouro no oratório. 


Entretanto, as coisas começam a se modificar ao descobrir que a Titi pretende deixar a herança para a Igreja e que seu rival é Jesus Cristo em pessoa. Ambiciosamente, Teodoro deduz que é preciso aumentar sua “fé”: 

Estugando o passo pela Rua Nova-da-Palma, eu sentia agora bem claramente, bem amargamente, o erro da minha vida... Sim, o erro! Porque até aí, essa minha devoção complicada, com que eu procurara agradar à titi e ao seu ouro, fora sempre regular, mas nunca fora fervente. (...) Até ai a Titi podia dizer com aprovação: "É exemplar". Era-me preciso, para herdar, que ela exclamasse um dia, babada, de mãos postas: "E santo!" Sim! Eu devia identificar-me tanto com as cousas eclesiásticas e submergir-me nelas de tal sorte, que a titi, pouco a pouco, não pudesse distinguir-me claramente desse conjunto rançoso de cruzes, imagens, ripanços, opas, tochas, bentinhos, palmitos, andores, que era para ela a Religião e o Céu; (...) Então, evidentemente, ela testaria em meu favor — certa que testava em favor de Cristo e da sua doce Madre Igreja! (QUEIRÓS, 1997: 872).

É a partir desse momento que os efeitos da Consciência de Teodoro decaem até a extinção completa, pois passa a agir em nome da ambição. Não visa mais somente à sobrevivência. Agora quer todo o ouro da titi, ouro que aprendeu a admirar desde a infância. Uma vez que o Mundo o diminuiu, com sua origem baixa e sua infância triste, resolve gozar com o que, supõe, sempre lhe faltou. Cada vez que engana a tia não é só para garantir a casa e a comida que ela lhe dá, mas para ter o gozo antevisto e suposto sem limite.

A Culpa por seus atos não deixa de ser sempre do outro, já que não abandona a posição de vítima quando passa a agir em benefício do gozo próprio. Nunca se pode esquecer que Teodoro tem uma profissão, cultura e poderia iniciar sua própria vida, sem depender da Titi. Mas é claro que Raposão sucumbe à tentação. Por que ele não “tocaria a campainha”? Por que, como ele mesmo diz, não “fartaria o bandulho”? Já sob a ótica de Eça, a sociedade não presta, precisa levar uma bengalada; ninguém melhor do que Raposão para recebê-la.

Teodoro dá então lições de humildade e devoção, pensando em ludibriar a tia até a sua morte, quando herdaria tudo por ter sido admiravelmente exemplar. Isso ocorre até o momento em que surge a oportunidade de ir para Jerusalém, representar a tia Patrocínio na Terra Santa. Aí surge realmente a grande chance do pícaro Raposão — trazer a relíquia tão ardentemente desejada e pedida pela titi.

Assim que chega a Alexandria, tem um caso com Miss Mary, uma luveira inglesa de reputação contestável, que lhe deixa de lembrança uma camisa de dormir, chamada por Teodorico de “relíquia de amor”. Um leitor mais desatento pode não se dar conta, mas desde já Eça inicia o paralelismo entre as duas relíquias, ambas profanas e desejadas por Raposão, ambas causadoras de sua ruína. A relíquia de Mary traz a seguinte dedicatória: "Ao meu Teodorico, meu portuguesinho possante, em lembrança do muito que gozamos!" (QUEIRÓS, 1997: 897). Além da importância óbvia que têm as palavras e os objetos na vida do pícaro, não é possível deixar de relacionar o gozo antevisto de Teodoro com a relíquia da tia e o gozo com Mary, que irá destruir futuramente o gozo supostamente sem limite sonhado desde a infância.

Na chegada a Jerusalém inicia-se a desconstrução do ideal religioso burguês vitoriano. A idéia de santuário sublime, Terra Santa e morada eterna do Cristo adorado pela titi é demolida pela imagem de uma Jerusalém humana e cheia de “Teodoros” vendendo ridículas relíquias.

Recusado por uma prostituta, Raposão sente saudades de Portugal,


onde não encontraria, nos corredores adormecidos, uma bota severa e bestial! lá nenhum corpo bárbaro fugiria, com lágrimas, à carícia dos meus dedos. Dourado pelo ouro da Titi, o meu amor não seria jamais ultrajado, nem a minha concupiscência jamais repelida. Ah! meu Deus! Assim eu lograsse, pela minha santidade, cativar a Titi!... (QUEIRÓS, 1997: 917)

Ligando sempre o amor ou o sexo (ambos só obtidos através de prostitutas) ao dinheiro da tia, resolve escrever para ela, dizendo que está à procura da “grande relíquia”, aumentando ainda mais seu repertório de falsidades ao relatar visões de santos e conversas com imagens, nas quais d. Patrocínio é sempre louvada.

Ainda não estamos na passagem do sonho, mas Teodoro mostra-se dúbio, como é comum a todo pícaro:

Obedecendo à recomendação da Titi, despi-me, e banhei-me nas águas do Batista. Ao princípio, enleado de emoção beata, pisei a areia reverentemente como se fosse o tapete de um altar-mor: e de braços cruzados, nu, com a corrente lenta a bater-me os joelhos, pensei em S. Joãozinho, sussurrei um Padre-Nosso. Depois ri, aproveitei aquela bucólica banheira entre árvores; Pote atirou-me a minha esponja; e ensaboei-me nas águas sagradas, trauteando o fado da Adélia.
(...)
Estremeci. E penetrado pelas emanações divinas dessas águas, desses montes, sentia-me forte — e igual aos homens fortes do Êxodo. Pareceu-me ser um deles, familiar de Jeová, e tendo chegado do negro Egito com as minhas sandálias na mão
(...)
Não me contive, arranquei o capacete, soltei por sobre Canaã este urro piedoso:
—                                 Viva Nosso Senhor Jesus Cristo! Viva toda a Corte do Céu! (QUEIRÓS, 1997: 920)

Em momentos como esse, não é possível saber se Raposão está envolvido no ambiente religioso que Jerusalém lhe proporciona e deixa-se levar pelos arroubos religiosos que são comuns a sua tia ou se seus vivas a Cristo são apenas em função do gozo antevisto da felicidade da tia com a falsa relíquia.

Teodoro, “com um brilho de visitação celeste”, encontra os galhos espinhosos que se tornarão a futura relíquia. Teme que a falsa coroa de espinhos de Jesus Cristo tenha alguma virtude verdadeira e d. Patrocínio fique boa dos seus inúmeros males. Segundo Raposão, ele só “começaria a viver — quando ela começasse a morrer”. Instaura-se o conflito interno (religioso ou filosófico?) de Teodorico — seriam verdadeiros todos os “ensinamentos” da Titi? Imagens, relíquias, visões teriam algum significado e poder de decisão sobre o seu destino? Eça coloca a Religião ao lado da Ciência. É por meio de Tópsius que Teodoro tem a coragem necessária para forjar a relíquia, uma vez que é o sábio quem lhe garante, com sua ciência, ser capaz de 

afiançar à senhora sua tia, da parte de um homem que a Alemanha escuta em questões de crítica arqueológica, que o galho que lhe levar daqui, arranjado em coroa, foi...
— Foi? — berrei ansioso.
— Foi o mesmo que ensangüentou a fronte do Rabi Jeschoua Natzarieh, a quem os latinos chamam Jesus de Nazaré, e outros também chamam o Cristo!... (QUEIRÓS, 1997:  925)

Inicia-se então o período do sonho, narrativa que abarca um terço do livro e vai mostrar a Revelação tão refutada pela crítica. Jerusalém, a cidade da Revelação católica, será também o templo da Revelação da Verdade, do cristianismo humano e da moral anterior a qualquer religião.

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Fonte:
Ana Leticia Pereira Marques Ferreira: “A Relíquia — romance neopicaresco vitoriano” (Dissertação apresentada ao Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro como  requisito para obtenção do título de Mestre em Literatura Portuguesa.  Orientadora: Profª. Drª. Maria do Amparo Tavares  Maleval). Rio de Janeiro, 2005.

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