22/12/2013

As Minas de Salomão, de Rider Haggard

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Literatura e euroimperialismo: os romances de Rider Haggard na década de 1880 e 1890

Literatura e euroimperialismo: os romances de Rider Haggard na década de 1880 e 1890 Influenciado pelas recentes descobertas de Karl Mauch e pelo livro de Thomas Baines, o escritor britânico Henry Rider Haggard criou vários romances envolvendo a África, que não somente tornaram-se muito populares, como incentivadoras do próprio imaginário de civilizações brancas perdidas no continente negro. Em 1875, com 21 anos, trabalhou como secretário do governador de Natal, África do sul, onde permaneceu até 1880. Neste período, conheceu o interior da região, além de ter contato com os nativos Zulu. Segundo ..., teria visitado as ruínas do Grande Zimbabwe. A obra de Haggard é extensa e repleta de aventuras fantásticas, onde nos interessa particularmente quatro romances, escritos entre 1885 a 1900.

O primeiro romance é As minas do rei Salomão, 1885, o livro mais famoso do escritor, várias vezes filmado e tema de quadrinhos e obras artísticas.

A narrativa, basicamente, refere-se a aristocratas ingleses que buscam um parente perdido, auxiliados pelo caçador Allan Quatermain e um nativo chamado Umbopa. Estes partem em busca das míticas minas de ouro do rei Salomão, cujo trajeto é fornecido por um antigo mapa, feito no século XVI por um português chamado D. José Silveira. Aqui evidentemente Haggard utilizou-se da tradição lusitana na África Austral e seus conhecimentos sobre o reino de Monomotapa. Também foi influenciado pelo modelo narrativo típico de narrativas fantásticas oitocentistas, onde os aventureiros seguem uma rota baseada em um explorador desaparecido que os antecedeu (a exemplo de Júlio Verne em seu Viagem ao centro da Terra, 1864). Outra técnica foi a de separar Ofir das minas de Salomão, como se fossem duas regiões distintas, já antevendo outros romances futuros. Um caçador chamado Evans relata para Quatermain sua visita à cidade de Ofir na África Austral: E contou-me então que no interior, muito no interior, descobrira ele uma cidade antiquíssima, toda em ruínas, que tinha a certeza de ser Ofir, a famosa Ofir da Bíblia. Lembro-me bem a impressão e o assombro com que eu escutei a história dessa cidade fenícia perdida no sertão da África, com os seus restos de palácios, de piscinas, de templos, de colunas derrocadas!... (Haggard, s.d.: 24)

Em outra região, habitada pelos Zulu, seus guardiães centenários, existiria as minas de Salomão, chamada de “as minas de pedras brancas que reluzem”. Seguindo o mapa do português, os aventureiros encontram uma estrada milenar no topo de uma montanha, seguido de um aqueduto, arcos, túneis abandonados, relevos e esculturas de cenas de batalha. Os narradores logo associam estas descobertas com a arte egípcia, o grande referencial civilizatório para o imaginário ocidental – pertencente ao modelo cultural do Mediterrâneo, sinônimo de mistério, fascinação e temor, uma ótima combinação para o leitor europeu de fins do século XIX. Seguindo a narrativa, os protagonistas adentram uma galeria subterrânea, também repleta de maravilhas arquitetônicas, desta vez comparadas à Grécia antiga, outro marco para o referencial histórico de sofisticação para o público-leitor.

Em nenhum momento os nativos africanos são relacionados aos vestígios arqueológicos encontrados. São meros personagens de um cenário coadjuvante, secundário, subalterno, que perfaz todo o romance. A África é o continente da aventura – dentro dos parâmetros artísticos inaugurados com a era colonialista – sendo seus animais selvagens, intempéries (desertos, tempestades, florestas, etc) e nativos, os perigos que o homem branco deve enfrentar em sua jornada para atingir a glória. Seja ela a descoberta de algum acidente geográfico, enigma arqueológico ou simplesmente a riqueza material, os nativos figuram no máximo como auxiliares não muito capacitados e quase sempre de caráter exótico.

O desfecho do romance é o encontro das minas do rei, constituída por várias arcas de jóias e diamentes. Constituindo um dos protótipos mais famosos do caçador de tesouros, típico do século XIX e no posterior, mesclando-se no imaginário com a representação do arqueólogo.xix Aqui evidentemente Haggard inspirou-se nas próprias ruínas de Zimbabwe, devassadas pelos aventureiros ingleses em busca de riquezas. Outro modelo literário, também inspirado em escritores anteriores, foi utilizar a idéia de uma cidade perdida ainda habitada, realizada com o posterior romance She, 1887.

Neste livro o escritor britânico afasta-se de uma simples narrativa de aventuras, constituindo um dos exemplos de romances arqueológicos do Oitocentos. Com maior densidade, caracterização de personagens e maior maturidade literária, She pode ser considerada a obra prima do escritor.

Logo no seu início, Haggard utiliza uma tradicional técnica na literária fantástica, a de abrir o romance afirmando que se trata de uma narrativa verdadeira, seguindo os modelos de Bram Stoker, Edgar Alan Poe, Howard Lovecraft, entre outros. O protagista principal, Louis-Horace Holly, recebe o pedido de guardar documentos para o filho de um amigo, quando este completasse a maioridade. Quando este momento finalmente se sucede, o manuscrito é aberto e revela uma antiga fábula sobre um reino perdido na África, governado por uma misteriosa mulher, fornecendo (do mesmo modo que o mapa português nas Minas) uma indicação objetiva da sua localização. Seguindo a mesma técnica de seus romances anteriores, Haggard cria uma atmosfera inicial de mistério, onde a História surge como iluminadora e guia para o desenrolar da trama. Mas aqui percebemos uma maior sofisticação deste preâmbulo: junto ao manuscrito, foram anexados um camafeu de marfim, no qual percebiam-se certos hieróglifos (reproduzidos em ilustração no livro), juntamente com as versões do manuscrito em grego, latim medieval, anglo-saxão e gótico (todas também transcritas no romance).
Com o intuito de esclarecer o enigma, forma-se uma expedição para a África Meridional. Logo no que a equipe penetra pelo interior, percebem-se comentários de cunho racista: “todos estes horríveis negros com as suas caras de bandidos, já me fizeram perder! Só são bons para o lixo, de tal maneira cheiram mal!” (Haggard, 1976. Um dos indicadores do caminho é encontrado  rapidamente: um gigantesco rochedo com a forma de uma cabeça negra, de caráter “terrível, mesmo infernal”. Semelhante às montanhas denominadas de Seios de Sabá nas Minas, esse acidente geográfico serve além de principal elemento orientador da expedição, como ligação simbólica entre a natureza selvagem do espaço africano e a civilização perdida. Mais adiante, os expedicionários encontram diversos vestígios ruinísticos, como restos de cais, grandes blocos, muros, todos ao redor de um pântano. Para o leitor, todo o espaço selvagem do continente negro é elaborado como tendo portado uma rica e complexa história totalmente esquecida: “Uma região como a África abunda em ruínas de cidades há longo tempo mortas e olvidadas (...) É possível que uma outra das tribos judias tenha fundado colônias e portos nesta região”. Logo, os aventureiros acabam por serem capturados por nativos claros (os amahagger), portando lanças e equipamentos antigos, que os levam ao reino de A-que-deve-ser-obedecida, a rainha Ayesha. Sua cidade ficava situada em uma região montanhosa e bem elevada – uma representação bem tradicional no imaginário, se levarmos em conta as anteriores descrições do reino de Prestes João. O nome do local, Kôr, foi copiado por Haggard de uma cidade da Alta Núbia (Sudão), construída pela civilização nubita.

Elaborada como uma espécie de utopia, o reino de Ayesha constitui uma verdadeira cápsula do tempo, onde os costumes, sociedade e até as vestimentas e cotidiano são totalmente semelhantes aos verificados na Antiguidade. Isso remete a uma extrema idealização do passado, onde as grandes civilizações são o modelo de sociedades perfeitas, e todas as suas qualidade morais ainda sobrevivem nesta urbe perdida nos confins da África. Isto é bem evidente em uma série de diálogos filosóficos entre a rainha Ayesha e Holly. Dos egípcios, hebreus, persas até aos gregos, as sociedades desaparecidas são exaltadas em vários aspectos, e o monoteísmo, a religião instaurada pelos hebreus, é também adotada no reino de Kôr. O paganismo e a magia aparece de forma muito velada neste romance com a descrição de um fogo sagrado, que mantém a juventude da rainha, com muitos séculos de idade. A imagem de Ayesha fascinou além dos leitores vitorianos, muitos acadêmicos como Freud e Jung, sendo uma espécie de arquétipo da imagem feminina – sedutora, selvagem, mágica e inacessível.

O clímax do romance, dentro dos nossos referenciais, é a visita da parte abandonada do reino: “começamos a distinguir as ruínas da grande cidade. Mesmo à distância pareciam maravilhosas”. O fascínio das ruínas foi algo reforçado no Setecentos, especialmente após a descoberta das cidades de Pompéia e Herculanum. Lembranças de épocas passadas, reforçadoras da melancolia humana perante o tempo, a morte e a destruição. “(...) vimos rutilar milhares de ruínas: colunas, templos, santuários, palácios, tudo isso salpicado de sarças verdes.”. O fragmento arquitetônico funciona como uma espécie de reforçador da memória (perante a História) e sua junção a ervas ou arbustos é um símbolo do domínio da natureza sobre a obra humana.xxi Um dos momentos mais interessantes do romance, a visita ao templo numa noite de lua cheia, é uma das mais espetaculares descrições ruinísticas da literatura:

A Lua punha reflexos nos pilares, nos pátios, nas superfícies das paredes, ocultando-lhes as feridas e as imperfeições sob a brancura leitosa, revestindo-as da singular majestade da noite. O espetáculo era com efeito prodigioso, e prodigioso o pensamento destes milhares de anos em que o astro morto e a cidade morta se tinham contemplado, projectando de um para outro, na solidão absoluta do espaço, a narração imutável da sua vida perdida, da sua glória extinta (...) A luminosidade enfraquecida e a sombra apoderava-se de outros pátios cobertos de erva, deslizando como o espectro dos sacerdotes de outrora. E na nossa própria alma julgávamos ouvir os gritos de um exército, recordando a pompa e o esplendor que a tumba devorara e que a memória esquecera .

Como em várias outras obras, o desfecho do romance acontece com a fuga dos aventureiros da cidade perdida e a sua volta para a civilização contemporânea. Esse recurso sugere que os dois locais não podem ser compatíveis, como se o passado perdido não pudesse conviver com a realidade de que já está morto e encerrado. Isto pode ser vislumbrado tanto na imagem de Ayesha – uma jovem com centenas de anos – ou pelo fato de nenhum dos expedicionários ficar na cidade ao fim da aventura

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Fonte:
Johnni Langer (Doutor em História, Professor da UNICS, PR): “Civilizações Perdidas no Continente Negro: o imaginário arqueológico sobre a África”. Revista de Humanidades. ISSN 1518-3394 - V.7, n. 14, fev./mar.2005. Disponível em http://www.seol.com.br/

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