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O Mandarim: a sociedade portuguesa do século XIX à luz da sátira menipéia
Dissemos, no decorrer do
nosso trabalho, que O Mandarim é um texto à parte no conjunto da obra
queirosiana devido ao seu caráter fantasista e cômico, e que, exatamente em
decorrência dessa característica, é considerado um texto “menor”, inferior,
quando comparado às demais obras do escritor português. Dissemos, também, que,
de um modo geral, a crítica tem apontado o texto como uma simples obra de fantasia,
na qual faltariam os componentes da crítica social mordaz de Eça de Queiroz, e que,
ao escrevê-lo, o escritor teria abandonado totalmente a estética
realista/naturalista, da qual seria adepto.
Todavia – e de acordo com
nossos estudos – dissemos acreditar que tal texto apresentaria o mesmo efeito
crítico de obras como O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio,
por exemplo, pois Eça não teria abandonado a denúncia e a crítica dos problemas
sócio-políticos de seu tempo, e que tentaríamos comprovar nossa hipótese interpretativa
analisando a obra em questão à luz da sátira menipéia.
Antes, porém, de passarmos
à referida análise, recordemos o singular enredo d’O Mandarim.
O texto, narrado em
primeira pessoa, conta a fantástica história de Teodoro, um resignado, mas
ambicioso amanuense do Ministério do Reino, que residia na “casa de hóspedes da
D. Augusta” – na Travessa da Conceição.
Certa noite, em seu quarto,
lendo, em um livro antigo, um capítulo intitulado Brecha das Almas, o
personagem-narrador se depara com estas linhas:
“No fundo da China existe um Mandarim mais rico de que todos
os reis de que a Fábula ou a História contam. Dele nada conheces, nem o nome,
nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus
cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre
um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então
um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição dum
avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?” (QUEIROZ, 1951, p. 25)
Surpreso e perturbado diante
daquela interrogação e daquele “sombrio infólio que parecia exalar magia”, a
personagem começa a ter alucinações: as letras e sinais gráficos se transformam
em “rabos de diabinhos” e “ganchos com que o Tentador vai fisgando as almas”.
Durante o delírio, tem duas visões: na primeira, um “Mandarim decrépito” deixa
a vida a um simples tilintar de campainha; na outra, ele, Teodoro, vê “uma
montanha de ouro” a seus pés.
Nesse momento, o amanuense
avista a campainha fatal diante de si, pousada sobre um dicionário francês, e
ouve uma voz dizendo-lhe para tocá-la. Ao voltar-se para a voz, vê, sentado, um
indivíduo vestido de negro. A primeira idéia, é a de que teria, diante de si, o
diabo; porém, as vestes e feições de homem comum que tal personagem apresenta
fazem com que esta impressão desapareça.
As duas personagens travam,
então, um diálogo, e o estranho indivíduo expõe a Teodoro os motivos pelos
quais este deveria tocar a campainha. Seduzido pelas palavras do inusitado
visitante, que lhe acena com as possibilidades de uma vida de privilégios, o amanuense acaba por tocá-la. Concretizado o
ato, a estranha personagem informa ao seu interlocutor que o Mandarim havia
expirado, e, levando-se da poltrona, retira-se.
Logo em seguida, Teodoro
ouve bater uma porta e, num sobressalto, sente-se como emergido de um pesadelo.
Caminha até o corredor, ouve uma voz e vê a cancela da escada se fechar.
Pergunta, então, à D. Augusta quem havia saído, ao que ela responde ter sido um
de seus hóspedes.
Voltando ao seu quarto,
Teodoro nota que tudo está tranqüilo, como se nada tivesse acontecido. Retoma o
seu livro, que agora lê sem sobressaltos, como um livro qualquer, e acaba por
adormecer.
Decorrido um mês após o
estranho episódio, o amanuense pensa que tudo não passara de um sonho, e, aos
poucos, vai esquecendo o ocorrido, até que, numa determinada manhã, recebe a
notícia de que herdara os milhões do Mandarim Ti-Chin-Fú. Assim, começa a vida
de milionário de Teodoro, que passa a ter tudo que sempre almejou: dinheiro,
posição social, prestígio, mulheres...
Desfrutando de todos os
prazeres que o dinheiro pode oferecer, o amanuense deixa seu antigo emprego na
repartição, seu quarto na pensão de D. Augusta, e vai morar num luxuoso
palacete, sendo admirado e respeitado pela sociedade lisboeta, que se roja a
seus pés.
Porém, pouco tempo depois,
começa a perceber o quão vil é o ser humano, pois compreende que toda a
consideração e respeito que a sociedade lhe devota provém, única e exclusivamente,
do interesse pelo dinheiro que possui. Sua indignação aumenta, e seu desprezo
por essa sociedade hipócrita e bajuladora fica patente. Da plebe à burguesia,
do Estado à Igreja, tudo enoja Teodoro.
Apesar de milionário, o
ex-amanuense não é feliz, pois passa a ter, constantemente, visões do fantasma
do Mandarim assassinado: é a sua consciência, que começa a lhe cobrar pelo ato
indigno. Então, para acalmá-la e aplacar a fúria de Ti-Chin-Fú, decide partir
para uma viagem à China. Sua intenção: descobrir a família do Mandarim e
casar-se com uma mulher dessa família para, desse modo, “legitimar” a sua herança.
Na China, nos são
apresentadas as aventuras e peripécias de Teodoro, sempre em tom cômico,
irônico ou mordaz. Nesta parte, que ocupa quatro dos oito capítulos de que a
obra se compõe, Eça de Queiroz segue lançando a sua crítica ferina sobre problemas
como a corrupção existente na esfera política de um país, o contraste entre a atual
decadência de Portugal e o seu passado de glórias, o oportunismo do homem que busca
tirar proveito próprio de todo tipo de situação, e toda uma sorte de mazelas humanas
como a ganância, a cobiça e o adultério.
Entretanto, o protagonista
não consegue o seu intento nessa sua viagem, e, então, retorna a Lisboa.
Incessantemente perseguido
pela figura do fantasma do Mandarim, Teodoro resolve “livrar-se” de sua
fortuna. Assim, volta a viver no seu antigo quarto, na pensão de D. Augusta,
aparentando pobreza, e retoma o seu ofício de amanuense. Porém, nem dessa forma
consegue afastar de si a imagem de Ti-Chin-Fú, pois, na realidade, ainda possuía
os milhões do velho Mandarim em sua conta bancária. Entretanto, vendo-o pobre,
toda a sociedade lisboeta, que o bajulara, volta-se contra ele, aviltando-o e insultando-o.
Dessa forma, irritado, decide voltar a viver em seu palacete, como um milionário,
e, novamente, Lisboa se roja a seus pés.
Atormentado e desiludido, o
ex-amanuense encontra, certa noite, na rua, “o senhor diabo”: aquele mesmo ser
que lhe fizera a proposta no quarto da pensão de D. Augusta. Desesperado, pede
a ele que ressuscite o Mandarim e lhe devolva os milhões, e que restitua a paz
de sua consciência. A tal pedido, a única resposta que obtém é que isso é
impossível.
Encerrando a sua narrativa,
Teodoro nos deixa, arrependido e amargurado, o seguinte ensinamento moral:
E a vós, homens, lego-vos
apenas, sem comentários, estas palavras:
“Só sabe bem o pão que
dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!”
E todavia, ao expirar,
consola-me prodigiosamente esta idéia: que do Norte ao Sul e do Oeste a Leste,
desde a Grande Muralha da Tartária até as ondas do Mar Amarelo, em todo o vasto
Império da China, nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o
pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por
Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão! (p. 161-162, grifo do
autor)
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Fonte:
Ana Paula Foloni Gambá: “O Mandarim (Eça de Queiroz): a sociedade portuguesa do século xix à luz da sátira menipéia”. (Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Concentração: Literatura e Vida Social). Orientador: Profa. Dra. Rosane Gazolla Alves Feitosa). Assis, 2005
Fonte:
Ana Paula Foloni Gambá: “O Mandarim (Eça de Queiroz): a sociedade portuguesa do século xix à luz da sátira menipéia”. (Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Concentração: Literatura e Vida Social). Orientador: Profa. Dra. Rosane Gazolla Alves Feitosa). Assis, 2005
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