15/12/2013

O Mandarim, de Eça de Qieirós

 Eca de Queiros - O Mandarim - Iba Mendes
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O Mandarim: a sociedade portuguesa do século XIX à luz da sátira menipéia

Dissemos, no decorrer do nosso trabalho, que O Mandarim é um texto à parte no conjunto da obra queirosiana devido ao seu caráter fantasista e cômico, e que, exatamente em decorrência dessa característica, é considerado um texto “menor”, inferior, quando comparado às demais obras do escritor português. Dissemos, também, que, de um modo geral, a crítica tem apontado o texto como uma simples obra de fantasia, na qual faltariam os componentes da crítica social mordaz de Eça de Queiroz, e que, ao escrevê-lo, o escritor teria abandonado totalmente a estética realista/naturalista, da qual seria adepto.

Todavia – e de acordo com nossos estudos – dissemos acreditar que tal texto apresentaria o mesmo efeito crítico de obras como O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, por exemplo, pois Eça não teria abandonado a denúncia e a crítica dos problemas sócio-políticos de seu tempo, e que tentaríamos comprovar nossa hipótese interpretativa analisando a obra em questão à luz da sátira menipéia.

Antes, porém, de passarmos à referida análise, recordemos o singular enredo d’O Mandarim.

O texto, narrado em primeira pessoa, conta a fantástica história de Teodoro, um resignado, mas ambicioso amanuense do Ministério do Reino, que residia na “casa de hóspedes da D. Augusta” – na Travessa da Conceição.

Certa noite, em seu quarto, lendo, em um livro antigo, um capítulo intitulado Brecha das Almas, o personagem-narrador se depara com estas linhas:

“No fundo da China existe um Mandarim mais rico de que todos os reis de que a Fábula ou a História contam. Dele nada conheces, nem o nome, nem o semblante, nem a seda de que se veste. Para que tu herdes os seus cabedais infindáveis, basta que toques essa campainha, posta a teu lado, sobre um livro. Ele soltará apenas um suspiro, nesses confins da Mongólia. Será então um cadáver: e tu verás a teus pés mais ouro do que pode sonhar a ambição dum avaro. Tu, que me lês e és um homem mortal, tocarás tu a campainha?” (QUEIROZ, 1951, p. 25)

Surpreso e perturbado diante daquela interrogação e daquele “sombrio infólio que parecia exalar magia”, a personagem começa a ter alucinações: as letras e sinais gráficos se transformam em “rabos de diabinhos” e “ganchos com que o Tentador vai fisgando as almas”. Durante o delírio, tem duas visões: na primeira, um “Mandarim decrépito” deixa a vida a um simples tilintar de campainha; na outra, ele, Teodoro, vê “uma montanha de ouro” a seus pés.

Nesse momento, o amanuense avista a campainha fatal diante de si, pousada sobre um dicionário francês, e ouve uma voz dizendo-lhe para tocá-la. Ao voltar-se para a voz, vê, sentado, um indivíduo vestido de negro. A primeira idéia, é a de que teria, diante de si, o diabo; porém, as vestes e feições de homem comum que tal personagem apresenta fazem com que esta impressão desapareça.

As duas personagens travam, então, um diálogo, e o estranho indivíduo expõe a Teodoro os motivos pelos quais este deveria tocar a campainha. Seduzido pelas palavras do inusitado visitante, que lhe acena com as possibilidades de uma vida de privilégios, o  amanuense acaba por tocá-la. Concretizado o ato, a estranha personagem informa ao seu interlocutor que o Mandarim havia expirado, e, levando-se da poltrona, retira-se.

Logo em seguida, Teodoro ouve bater uma porta e, num sobressalto, sente-se como emergido de um pesadelo. Caminha até o corredor, ouve uma voz e vê a cancela da escada se fechar. Pergunta, então, à D. Augusta quem havia saído, ao que ela responde ter sido um de seus hóspedes.

Voltando ao seu quarto, Teodoro nota que tudo está tranqüilo, como se nada tivesse acontecido. Retoma o seu livro, que agora lê sem sobressaltos, como um livro qualquer, e acaba por adormecer.

Decorrido um mês após o estranho episódio, o amanuense pensa que tudo não passara de um sonho, e, aos poucos, vai esquecendo o ocorrido, até que, numa determinada manhã, recebe a notícia de que herdara os milhões do Mandarim Ti-Chin-Fú. Assim, começa a vida de milionário de Teodoro, que passa a ter tudo que sempre almejou: dinheiro, posição social, prestígio, mulheres...

Desfrutando de todos os prazeres que o dinheiro pode oferecer, o amanuense deixa seu antigo emprego na repartição, seu quarto na pensão de D. Augusta, e vai morar num luxuoso palacete, sendo admirado e respeitado pela sociedade lisboeta, que se roja a seus pés.

Porém, pouco tempo depois, começa a perceber o quão vil é o ser humano, pois compreende que toda a consideração e respeito que a sociedade lhe devota provém, única e exclusivamente, do interesse pelo dinheiro que possui. Sua indignação aumenta, e seu desprezo por essa sociedade hipócrita e bajuladora fica patente. Da plebe à burguesia, do Estado à Igreja, tudo enoja Teodoro.

Apesar de milionário, o ex-amanuense não é feliz, pois passa a ter, constantemente, visões do fantasma do Mandarim assassinado: é a sua consciência, que começa a lhe cobrar pelo ato indigno. Então, para acalmá-la e aplacar a fúria de Ti-Chin-Fú, decide partir para uma viagem à China. Sua intenção: descobrir a família do Mandarim e casar-se com uma mulher dessa família para, desse modo, “legitimar” a sua herança.

Na China, nos são apresentadas as aventuras e peripécias de Teodoro, sempre em tom cômico, irônico ou mordaz. Nesta parte, que ocupa quatro dos oito capítulos de que a obra se compõe, Eça de Queiroz segue lançando a sua crítica ferina sobre problemas como a corrupção existente na esfera política de um país, o contraste entre a atual decadência de Portugal e o seu passado de glórias, o oportunismo do homem que busca tirar proveito próprio de todo tipo de situação, e toda uma sorte de mazelas humanas como a ganância, a cobiça e o adultério.

Entretanto, o protagonista não consegue o seu intento nessa sua viagem, e, então, retorna a Lisboa.

Incessantemente perseguido pela figura do fantasma do Mandarim, Teodoro resolve “livrar-se” de sua fortuna. Assim, volta a viver no seu antigo quarto, na pensão de D. Augusta, aparentando pobreza, e retoma o seu ofício de amanuense. Porém, nem dessa forma consegue afastar de si a imagem de Ti-Chin-Fú, pois, na realidade, ainda possuía os milhões do velho Mandarim em sua conta bancária. Entretanto, vendo-o pobre, toda a sociedade lisboeta, que o bajulara, volta-se contra ele, aviltando-o e insultando-o. Dessa forma, irritado, decide voltar a viver em seu palacete, como um milionário, e, novamente, Lisboa se roja a seus pés.

Atormentado e desiludido, o ex-amanuense encontra, certa noite, na rua, “o senhor diabo”: aquele mesmo ser que lhe fizera a proposta no quarto da pensão de D. Augusta. Desesperado, pede a ele que ressuscite o Mandarim e lhe devolva os milhões, e que restitua a paz de sua consciência. A tal pedido, a única resposta que obtém é que isso é impossível.

Encerrando a sua narrativa, Teodoro nos deixa, arrependido e amargurado, o seguinte ensinamento moral:

E a vós, homens, lego-vos apenas, sem comentários, estas palavras:

“Só sabe bem o pão que dia a dia ganham as nossas mãos: nunca mates o Mandarim!”

E todavia, ao expirar, consola-me prodigiosamente esta idéia: que do Norte ao Sul e do Oeste a Leste, desde a Grande Muralha da Tartária até as ondas do Mar Amarelo, em todo o vasto Império da China, nenhum Mandarim ficaria vivo, se tu, tão facilmente como eu, o pudesses suprimir e herdar-lhe os milhões, ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão! (p. 161-162, grifo do autor)


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Fonte:
Ana Paula Foloni Gambá: “O Mandarim (Eça de Queiroz):  a sociedade portuguesa do século xix à luz da sátira menipéia”. (Dissertação de Mestrado  apresentada à Faculdade   de Ciências e Letras de Assis – UNESP – para a obtenção do título de Mestre em Letras (Área de Concentração: Literatura e Vida Social). Orientador: Profa. Dra. Rosane Gazolla Alves Feitosa). Assis, 2005

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