15/12/2013

Correspondência de Fradique Mendes, Eça de Queirós

 Eca de Queiros - Correspondencia de Fradique Mendes - Iba Mendes
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“Memórias e notas” – relato memorialístico ou biográfico? e a constituição de uma personagem

Ao estudar detidamente A Correspondência de Fradique Mendes nos deparamos com um narrador ficcional anônimo que se coloca como alguém que primeiro conheceu Carlos Fradique Mendes como um simples leitor que lera seus poemas publicados na Revolução de Setembro em 1867 e sobre eles guardara boa  impressão, sobretudo, no que diz respeito ao cuidado com a forma e à procura de uma nova maneira de se expressar, livre daquele sentimentalismo romântico que tanto marcava a poesia da época, impressão verificável segundo o relato do próprio narrador, que chega a chamar nosso protagonista de “o cinzelador das Lapidárias”.

Ou seja, um autor mais preocupado com a forma, que talvez se aproxime de princípios Parnasianos como o do “poeta ourives”, mas que como tal possa trilhar o vazio caminho do preciosismo formal, um dos possíveis fatores que talvez tenha lhe impossibilitado a construção de algum legado literário, uma vez que de Fradique só tenhamos, no final das contas, suas cartas.

Esse mesmo sujeito, que de início é apenas um leitor entusiasmado, torna-se a seguir, ainda segundo seu próprio relato, um amigo e, sobretudo, admirador íntimo e pessoal de Fradique, tendo, ambos, participado do Cenáculo, embora, claramente, nossa personagem estivesse em um patamar sempre de maior destaque:

 A minha intimidade com Fradique Mendes começou em 1880, em Paris, pela Paschoa, - justamente na semana em que elle regressára da sua viagem á Africa Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admiravel datava de Lisboa, do anno remoto de 1867. Foi no verão d´esse anno, uma tarde, no café Martinho, que encontrei, n´um número já amarrotado da Revolução de Setembro, este nome de C. Fradique Mendes, em letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam.

Os themas (“os motivos emocionaes”, como nós diziamos em 1867) d´essas cinco ou seis poesias reunidas e folhetim sobre o titulo de Lapidarias, tinham logo para mim uma originalidade captivante e bemvinda. Era o tempo em que eu e os meus camaradas de Cenáculo [...] decidíramos abominar e combater a rijos brados o Lyrismo Intimo, que, enclausurado nas duas pollegadas do coração, não comprehendendo d´entre todos os rumores do Universo senão o rumor das saias d´Elvira, tornava a poesia, sobretudo em Portugal, uma monótona e interminável confidencia de glorias e martyrios de amor. Ora Fradique Mendes pertencia evidentemente aos poetas novos [...] trabalhava um outro filão poético que me seduzia – o da Modernidade, ...

A apresentação instaura de imediato o caráter autônomo tão ressaltado da personagem agora exclusivamente eciana, já que se faz evidente a alusão ao tempo em que a ela foram atribuídos alguns poemas pelos ainda jovens Eça de Queirós, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis. A partir daí é como se estivéssemos todos livres e preparados para aceitar a verossimilhança do que nos será contado por esse narrador que tem papel fundamental na atitude lúdica de composição da personagem e seus escritos.

Afinal, dentro da narrativa abordada, é inegável que tal figura atue como espécie de “organizador”, cuja função nos parece ser a de selecionar as melhores perspectivas através das quais nos aproximamos da personagem e de outras características do relato como o ambiente que a rodeia e justifica muitas de suas ações. Atua, portanto, como espécie de “filtro” a apurar, através de sua voz e postura assumidas, aquilo que de Fradique devemos nos nutrir, aquilo que dele devemos entender e aceitar: é espécie clara de “regulador” da narração, fator determinante na orientação que se imprime ao material narrativo.

Dessa forma, nada que diz respeito a ele (narrador) nos parece ingênuo ou despretensioso, cada encontro, desencontro, jantar, diálogo travado, reunião ou observação parece ser um meio para que ele se situe no mundo como os demais personagens, nos fazendo sentir progredir o conhecimento dele sobre o ambiente em que vive, mas, em especial, sobre o ambiente em que Fradique vive, aumentando-lhe a autoridade, o conhecimento e a proximidade que quer nos transmitir em relação a personagem central, destacando-a como personalidade que vive num tempo e meio ideais para o tipo de atuação que desempenha.

Como grande organizador da narrativa, como aquele que parece “encarnar” os princípios pelos quais, nós mesmos, leitores, vamos, mais tarde, estabelecer nossos juízos de valores, este narrador testemunha em primeira pessoa, parece-nos claro, recorre a certa “máscara” que procura manter a salvo sua credibilidade e, em definitivo, a “verdade” (leia-se verossimilhança) da narrativa.

Talvez por isso passa-se por amigo de Fradique, pois dessa maneira ganha maior intimidade com a personagem, transmitindo-nos o relato de sua existência via tal perspectiva. No entanto, algo destoa, ele parece trair-se em relação à credibilidade que tanto procura. Afinal, acreditamos assim, inadvertidamente, em um amigo?

A verdade é que, por mais que esse narrador em primeira pessoa adquira efeito de  realidade, assumindo funda autoridade em seu testemunho pessoal e direto dos fatos, ele perde em credibilidade e perde em definitivo, primeiro porque um narrador em primeira pessoa conta tudo da sua perspectiva, aliás, a única à qual nós leitores, durante a maior parte da leitura temos acesso; depois, porque, participando do relato, assume postura às vezes problemática, ora glorificando e idealizando Fradique ao extremo, chegando a beirar o ridículo, o cômico:

Gastei a noite, preparando frases, cheias de profundidade e beleza, para lançar a Fradique Mendes! Tendiam todas à glorificação das Lapidárias. E lembro-me de ter, com amoroso cuidado, burilado e repolido esta: - “A forma de V. Ex.ª  um m rmore divino com estremecimentos humanos!”
De manhã apurei requintadamente a minha toilette como se em vez de Fradique, fosse encontrar Ana de Léon – com quem já nessa madrugada, num sonho repassado de erudição e sensibilidade, eu passeara na Via Sagrada que vai de Atenas a Elêusis, conversando, por entre os lírios que desfolhávamos, sobre o ensino de Platão e a versificação das Lapidárias. E às duas horas, dentro de uma tipóia, para que o macadame regado não maculasse o verniz dos sapatos, parava na Havanesa, pálido, perfumado,  comovido, com uma tremenda rosa de chá na lapela. Éramos assim em 1867!
Dizia estas coisas enormes numa voz lenta, penetrante – que ia recortando os termos com a certeza e a perfeição de um buril. E eu escutava, varado! Que um Boileau, um pedagogo, um lambão de corte, permanecesse nos cimos da Poesia Francesa, com a sua Ode à tomada de Namur, a sua cabeleira e a sua férula, quando o nome do poeta da Lenda  dos Séculos fosse como um suspiro do vento que passou – parecia-me uma dessas afirmações, de rebuscada originalidade, com que se procura assombrar os simples, e que eu mentalmente classificava de insolente.
Tinha mil coisas, abundantes e esmagadoras, a contestar; mas não ousava, por não poder apresentá-las naquela forma translúcida e geométrica do poeta das Lapidárias. Essa cobardia, porém, e o esforço para reter os protestos do meu entusiasmo pelos Mestres da minha mocidade, sufocava- me, enchia-me de mal-estar; e ansiava só por abalar daquela sala, onde, com tão bolorentas opiniões clássicas, tanta rosa nas jarras e todas as moles exalações de canela e manjerona – se respirava conjuntamente um ar abafadiço de Serralho e de Academia.

 Postura essa, ademais, que não é incomum a outros narradores queirosianos vide, por exemplo, Zé Fernandes que, em A Cidade e as Serras, faz o mesmo com Jacinto, apesar de finalidades outras, é verdade.

De qualquer modo, esse “eu” que por vezes ironiza Fradique o responsável por contar sua história e a grande verdade é que o tom geral dessa primeira parte da obra intitulada de “Memórias e Notas” não se fundamenta deveras na ironia, mas, sobremaneira, na observação e no relato exagerado, superlativo dos hábitos, gostos, pensamentos, atitudes, morte, enfim, da vida do protagonista, o biografado.


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Fonte:
Thaís Marassi Prado: “A correspondência, as memórias e as notas de Carlos Fradique Mendes – uma imagem de cosmopolita para o Portugal do século XIX?”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação    em       Literatura Portuguesa,        do  Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da  Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do  título de Doutor em Letras. Orientadora: Profa. Dra. Annie Gisele Fernandes). São Paulo, 2011.

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