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“Memórias e notas” – relato
memorialístico ou biográfico? e a constituição de uma personagem
Ao estudar detidamente
A Correspondência de Fradique Mendes nos deparamos com um narrador
ficcional anônimo que se coloca como alguém que primeiro conheceu Carlos
Fradique Mendes como um simples leitor que lera seus poemas publicados na Revolução
de Setembro em 1867 e sobre eles guardara boa impressão, sobretudo, no que diz respeito ao
cuidado com a forma e à procura de uma nova maneira de se expressar, livre daquele
sentimentalismo romântico que tanto marcava a poesia da época, impressão
verificável segundo o relato do próprio narrador, que chega a chamar nosso
protagonista de “o cinzelador das Lapidárias”.
Ou seja, um autor mais preocupado com a
forma, que talvez se aproxime de princípios Parnasianos como o do “poeta
ourives”, mas que como tal possa trilhar o vazio caminho do preciosismo formal,
um dos possíveis fatores que talvez tenha lhe impossibilitado a construção de algum
legado literário, uma vez que de Fradique só tenhamos, no final das contas,
suas cartas.
Esse mesmo sujeito, que de início é
apenas um leitor entusiasmado, torna-se a seguir, ainda segundo seu próprio
relato, um amigo e, sobretudo, admirador íntimo e pessoal de Fradique, tendo,
ambos, participado do Cenáculo, embora, claramente, nossa personagem estivesse
em um patamar sempre de maior destaque:
A minha intimidade com Fradique Mendes começou
em 1880, em Paris, pela Paschoa, - justamente na semana em que elle regressára
da sua viagem á Africa Austral. O meu conhecimento porém com esse homem admiravel
datava de Lisboa, do anno remoto de 1867. Foi no verão d´esse anno, uma tarde,
no café Martinho, que encontrei, n´um número já amarrotado da Revolução de Setembro, este nome de C. Fradique Mendes, em
letras enormes, por baixo de versos que me maravilharam.
Os themas (“os motivos emocionaes”,
como nós diziamos em 1867) d´essas cinco ou seis poesias reunidas e folhetim
sobre o titulo de Lapidarias, tinham logo para mim uma
originalidade captivante e bemvinda. Era o tempo em que eu e os meus camaradas
de Cenáculo [...] decidíramos abominar e combater a rijos brados o Lyrismo Intimo,
que, enclausurado nas duas pollegadas do coração, não comprehendendo d´entre
todos os rumores do Universo senão o rumor das saias d´Elvira, tornava a
poesia, sobretudo em Portugal, uma monótona e interminável confidencia de glorias
e martyrios de amor. Ora Fradique Mendes pertencia evidentemente aos poetas
novos [...] trabalhava um outro filão poético que me seduzia – o da
Modernidade, ...
A apresentação instaura de imediato o
caráter autônomo tão ressaltado da personagem agora exclusivamente eciana, já
que se faz evidente a alusão ao tempo em que a ela foram atribuídos alguns poemas
pelos ainda jovens Eça de Queirós, Antero de Quental e Jaime Batalha Reis. A
partir daí é como se estivéssemos todos livres e preparados para aceitar a verossimilhança
do que nos será contado por esse narrador que tem papel fundamental na atitude
lúdica de composição da personagem e seus escritos.
Afinal, dentro da narrativa abordada, é
inegável que tal figura atue como espécie de “organizador”, cuja função nos
parece ser a de selecionar as melhores perspectivas através das quais nos
aproximamos da personagem e de outras características do relato como o ambiente
que a rodeia e justifica muitas de suas ações. Atua, portanto, como espécie de “filtro”
a apurar, através de sua voz e postura assumidas, aquilo que de Fradique
devemos nos nutrir, aquilo que dele devemos entender e aceitar: é espécie clara
de “regulador” da narração, fator determinante na orientação que se imprime ao material
narrativo.
Dessa forma, nada que diz respeito a ele
(narrador) nos parece ingênuo ou despretensioso, cada encontro, desencontro,
jantar, diálogo travado, reunião ou observação parece ser um meio para que ele
se situe no mundo como os demais personagens, nos fazendo sentir progredir o
conhecimento dele sobre o ambiente em que vive, mas, em especial, sobre o
ambiente em que Fradique vive, aumentando-lhe a autoridade, o conhecimento e a proximidade
que quer nos transmitir em relação a personagem central, destacando-a como
personalidade que vive num tempo e meio ideais para o tipo de atuação que
desempenha.
Como grande organizador da narrativa, como
aquele que parece “encarnar” os princípios pelos quais, nós mesmos, leitores,
vamos, mais tarde, estabelecer nossos juízos de valores, este narrador
testemunha em primeira pessoa, parece-nos claro, recorre a certa “máscara” que
procura manter a salvo sua credibilidade e, em definitivo, a “verdade” (leia-se
verossimilhança) da narrativa.
Talvez por isso passa-se por amigo de
Fradique, pois dessa maneira ganha maior intimidade com a personagem,
transmitindo-nos o relato de sua existência via tal perspectiva. No entanto,
algo destoa, ele parece trair-se em relação à credibilidade que tanto procura.
Afinal, acreditamos assim, inadvertidamente, em um amigo?
A verdade é que, por mais que esse
narrador em primeira pessoa adquira efeito de realidade, assumindo funda autoridade em seu
testemunho pessoal e direto dos fatos, ele perde em credibilidade e perde em
definitivo, primeiro porque um narrador em primeira pessoa conta tudo da sua
perspectiva, aliás, a única à qual nós leitores, durante a maior parte da
leitura temos acesso; depois, porque, participando do relato, assume postura às
vezes problemática, ora glorificando e idealizando Fradique ao extremo, chegando
a beirar o ridículo, o cômico:
Gastei a
noite, preparando frases, cheias de profundidade e beleza, para lançar a
Fradique Mendes! Tendiam todas à glorificação das Lapidárias. E
lembro-me de ter, com amoroso cuidado, burilado e repolido esta: - “A forma de V.
Ex.ª um m rmore divino com estremecimentos
humanos!”
De manhã apurei requintadamente a minha toilette como se em vez de Fradique, fosse encontrar Ana de Léon
– com quem já nessa madrugada, num sonho repassado de erudição e sensibilidade,
eu passeara na Via Sagrada que vai de Atenas a Elêusis, conversando, por entre
os lírios que desfolhávamos, sobre o ensino de Platão e a versificação das Lapidárias.
E às duas horas, dentro de uma tipóia, para que o macadame regado não maculasse
o verniz dos sapatos, parava na Havanesa, pálido, perfumado, comovido, com uma tremenda rosa de chá na
lapela. Éramos assim em 1867!
Dizia estas coisas enormes numa voz
lenta, penetrante – que ia recortando os termos com a certeza e a perfeição de um
buril. E eu escutava, varado! Que um Boileau, um pedagogo, um lambão de corte, permanecesse
nos cimos da Poesia Francesa, com a sua Ode à tomada
de Namur, a sua cabeleira e a sua férula, quando o nome do poeta da
Lenda dos Séculos fosse
como um suspiro do vento que passou – parecia-me uma dessas afirmações, de rebuscada
originalidade, com que se procura assombrar os simples, e que eu mentalmente
classificava de insolente.
Tinha mil coisas, abundantes e
esmagadoras, a contestar; mas não ousava, por não poder apresentá-las naquela
forma translúcida e geométrica do poeta das Lapidárias.
Essa cobardia, porém, e o esforço para reter os protestos do meu
entusiasmo pelos Mestres da minha mocidade, sufocava- me, enchia-me de mal-estar;
e ansiava só por abalar daquela sala, onde, com tão bolorentas opiniões
clássicas, tanta rosa nas jarras e todas as moles exalações de canela e
manjerona – se respirava conjuntamente um ar abafadiço de Serralho e de
Academia.
Postura
essa, ademais, que não é incomum a outros narradores queirosianos vide, por
exemplo, Zé Fernandes que, em A Cidade e as Serras, faz o mesmo com Jacinto,
apesar de finalidades outras, é verdade.
De qualquer modo, esse “eu” que por
vezes ironiza Fradique o responsável por contar sua história e a grande verdade
é que o tom geral dessa primeira parte da obra intitulada de “Memórias e Notas”
não se fundamenta deveras na ironia, mas, sobremaneira, na observação e no
relato exagerado, superlativo dos hábitos, gostos, pensamentos, atitudes,
morte, enfim, da vida do protagonista, o biografado.
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Fonte:
Fonte:
Thaís Marassi
Prado: “A correspondência, as memórias e as notas de Carlos Fradique Mendes – uma
imagem de cosmopolita para o Portugal do século XIX?”. (Tese apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Literatura Portuguesa, do
Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor em Letras. Orientadora: Profa.
Dra. Annie Gisele Fernandes). São Paulo, 2011.
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