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O Conde d'Abranhos, por Eça de Queirós
[...]
Quero comentar aqui agora apenas
alguns aspectos da ironia retórica de O
conde de Abranhos, novela cujo manuscrito data de 1879, não tendo nunca sido
publicado em vida do autor (foi dado à luz pelo filho José Maria, 25 anos após a morte do pai). Mostrando-se
perfeitamente integrado no espírito crítico da geração de 70, em O conde de Abranhos, Eça
critica a vida pública e privada do Portugal
da época, através da voz (ou da pena) do secretário Zagalo, que constrói o elogioso retrato de Alípio Abranhos.
A novela coloca em cena uma
política corrupta e interesseira, uma vida familiar e uma religião degradadas e preocupadas apenas
com as aparências, uma educação deficiente
e mal orientada e uma sociedade que premia e incentiva a hipocrisia. Através da palavra ingênua de um narrador ingênuo,
demonstra ainda uma deplorável incapacidade
de leitura crítica do mundo e das informações recebidas. O narrador da novela é Z. Zagalo, um secretário que deseja
perpetuar a memória do venerável homem público
que dá nome ao livro, fazendo, em sua encomiástica biografia, o elogio de sua vida de jornalista, homem de família, político
da oposição e posteriormente ministro de Estado, depois de oportuna mudança de partido
político. Generoso e magnânimo, condescendente
para com alguma falha do “homem excepcional” que busca retratar, Zagalo
aceita, assume e elogia a perspectiva do patrão e da ideologia conservadora que
o levou ao poder. Pretende que sua
homenagem leve às gerações contemporâneas “a elevação de espírito e a rectidão de alma” de
seu biografado (Queiroz, [19--], p. 287- 405), para quem procura construir um
monumento comparável ao mausoléu com que a condessa viúva homenageia o marido
prematuramente falecido. Rivalizando talvez com essa esposa do Conde – pois além de elogiar
constantemente a primeira esposa do homenageado,
parece pretender dizer que conhece melhor o seu retratado que a mulher que com quem ele conviveu durante oito anos de
casamento -, Zagalo exemplifica entretanto
toda a ingenuidade e incapacidade de leitura que Eça pretende apontar no povo português. Critica assim a miséria de um
país em que a lealdade é apenas aparente e interessada, camuflando hipocrisias,
invejas, despeitos e vinganças de personagens que lutam escusamente pelo poder.
O conde de Abranhos constitui-se,
assim, como um bom exemplo de arte construída
com a ironia retórica, pois o seu autor coloca em cena um narrador de cuja palavra discorda, utilizando esse leitor
intradiegético despreparado para alertar ironicamente os leitores de sua obra, a fim de
que façam aí um exercício crítico e aprendam
com essa caricatura a ser menos crédulos, menos bajuladores e interesseiros e, enfim, mais atentos e menos ridículos. O
exagero com que carrega nas tintas dos elogios
do secretário indica a ironia desse autor impiedoso, que usa a exaltação moral para desmoralizar e o comentário positivo para
criticar.
O autor faz seu narrador Zagalo
elogiar, por exemplo, personalidades a quem o conde devia favores, acentuando ao mesmo tempo
o ridículo ou outros aspectos negativos
de suas figuras. Uma delas é a do Dr. Vaz Correia, aquele que tinha por Alípio “uma consideração a que se misturava
tocantemente uma simpatia paternal” (p. 331),
e que foi o seu orientador no casamento com uma herdeira rica, o que abriu ao futuro conde as portas da alta sociedade
lisboeta da época. Zagalo chama o Dr. Vaz Correia de “rábula”, avisando logo que essa
palavra não devia ser tomada em seu sentido
grotesco, o que equivale a uma piscadela irônica do autor que estabelece comunicação conosco, acentuando que o adjetivo
“grotesco” é realmente para ser levado a
sério. Esse entendimento se confirma pela descrição do Dr. Vaz Correia: trata-se
de um “resplandecente espelho de lealdade” (p. 331), de que o “que menos se conhecia era a sua grande bondade” (p. 331):
Os seus olhinhos vivos que espreitavam por cima dos óculos, a sua carita redonda e enrugada, as duas repas de
cabelo grisalho, espetadas como orelhas
de diabo de cada lado da calva, a alta gravata
de seda preta às pintas, o colete de xadrezinho, e o hábito de falar com as mãos atrás das costas, tornando
saliente a sua barriguinha próspera, são
feições dele bem conhecidas de Lisboa. (p. 331)
Chamam a atenção os diminutivos
“olhinhos”, “carita”, “xadrezinho”, “barriguinha”, que contrastam ironicamente com a solene
figura apresentada do bom gigante, que é comparado a um S. Cristóvão protetor e sempre
venerado.
Uma figura ridícula realmente
criticada por Zagalo é a do sogro de Alípio Abranhos, o desembargador Matos, cuja
honestidade e ciência jurídica eram discutíveis e que lembra personagens de Camilo Castelo
Branco, pois é visto como um animal, que “rumina regaladamente” (p. 333): “Fazia, ao
comer a sopa, um gluglu nojento e repelente,
e atirava para o soalho os escarros que merecia na face” (p. 335). Explica-se, porém, a perspectiva negativa de Zagalo diante
do Dr. Matos, pois este uma vez o tratara
como um lacaio, pedindo-lhe que visse se já chegara a sua sege. Compreende-se a crítica, principalmente, quando Zagalo
confessa: “Pode parecer irrespeitosa esta apreciação da família Amado, mas, para minha
justificação, direi que o Exmo. Conde a abominava”
(p. 335) . O “partido” do secretário diegético é assim bem definido e definidor, pois o seu julgamento estará sempre
previamente estabelecido porque calcado na perspectiva do conde, seu
venerado e benfeitor patrão.
Zagalo exibe constantemente as
comprovações e as fontes de todos os seus relatos e perspectivas, definindo-se, assim,
como um interessante caso de vítima da ironia,
pela ingenuidade da leitura que faz e da narração que elabora: se não entende
os jogos de enganos de que se torna
vítima, não percebe também que a sua intenção irônica de exaltar-se ao exaltar o conde não pode
funcionar da forma positiva que ele pretende. Ao expor a sua necessidade do olhar do leitor
– ao escrever uma biografia que deverá consagrar
o biografado e ao mesmo tempo o que a escreve - , desvela inconscientemente os artifícios retóricos e escusos do
biografado que pretende exaltar. O exaltador torna-se assim ainda mais criticável que o “exaltado”,
pois a sua visão ingênua apresenta como positivos
procedimentos que os leitores perceberão como negativos e censuráveis.
A ironia que Eça critica em O
conde de Abranhos refere-se principalmente, portanto, a uma recepção / retransmissão
ingênua, aquela que procura transmitir a outros discursos recebidos, sem
perceber neles incongruências que sinalizam irônica manipulação de sentido e manobras que visam ao
poder. Indiretamente, através da voz desse
narrador que afirma repetidas vezes não crer ofensivas as lembranças negativas que apresenta, o autor irônico ratifica
comentários desairosos sobre a origem familiar humilde de Abranhos, conta como ele se
envergonhava dos pais e os abandonou, mostra a deficiência de sua formação
cultural, contrapõe seu físico bem desenvolvido à sua pobreza intelectual, exibe a sua propalada
veia poética que se resumira a versos sentimentais
da juventude, revela que suas relações sociais e afetivas tinham sempre como base o interesse pessoal, denuncia que o
seu socialismo era mal fundamentado e mal
desenvolvido, acentuando que somente por ter sido adotado durante muito tempo pela rica tia Amália pôde ter ele a ascensão
social de que desfrutava.
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Fonte:
Fonte:
Lélia Parreira Duarte (UFMG ): "A valorização do leitor na
arte de Eça de Queirós (ou respondendo a
Machado de Assis e a Fernando Pessoa), disponível em: http://www.leliaparreira.com.br
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