15/12/2013

A Carne, de Júlio Ribeiro

 Julio Ribeiro - A Carne
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Análise da histerização do corpo feminino no romance A Carne


Nos capítulos anteriores, vimos que as idéias de progresso e civilidade, no Brasil, foram inspiradas nos modelos dos países europeus. Todas as melhorias que o país necessitava eram moldadas em teorias e ações antes realizadas no velho mundo. A capital da nação, o Rio de Janeiro, palco de inúmeras transformações desde o estabelecimento da Corte, em 1808, tornou-se uma espécie de laboratório onde experimentavam as novidades e avanços da Europa. Intelectuais de todos os ramos do pensamento defendiam a instrução e o cultivo da moral como elemento vital para o progresso que se buscava para o Brasil, na tentativa de melhorar o país, desde as infra-estruturas, como ruas, bairros, saneamento até a implantação e melhoria das instituições disciplinizadoras da população. Civilizar-se, neste momento, significou “tornar-se urbano, cortês, polido, delicado, bem educado.

A imprensa teve um papel fundamental nesse contexto de transformações, numa época em que os meios de comunicações eram escassos e de acesso restrito. Para atingir o ideal de civilidade quisto, sentia-se a necessidade de uma cultura letrada que se tornasse familiar ao país e, então, através dos artigos e dos romances folhetinescos publicados nos periódicos, a imprensa comunicou idéias, princípios, valores, normas, teorias que visavam melhorar a população, educando-a, conscientizando-a. Através do folhetim, inúmeros romancistas puderam publicar suas obras devido a essa proximidade entre a ficção e a imprensa, que se tornou uma espécie de medidora de sucesso do escritor para que, mais tarde, as editoras pudessem investir em publicações.

Elisa VERONA (2007), em sua tese de mestrado, mostra que os periódicos visavam atingir a todos, por isso, o formato variava conforme o público, a classe social, o gênero, a profissão, mas grande parte se preocupava em intervir na instrução da sociedade, levantando a bandeira da nação. Mesmo em alguns periódicos feito por mulheres, havia a preponderância dos discursos masculinos, continuando a reforçar o lugar doméstico da mulher. Eram quase inexistente mulheres que discordavam dessas idéias hegemônicas e, quando acontecia, tornava-se um escândalo social tal que a mulher-escritora era taxada de diversas formas, sendo classificada na anormalidade. O momento tinha apenas homens ocupando as posições de poder na sociedade, cargos públicos e profissões de prestígio (médicos, jornalistas), portanto, o discurso do poder era por eles construído, assim o modelo ideal da mulher fazia parte do jogo da dominação masculina e se encaixava na grande estratégia de progresso moral da nação.

A urbanização trouxe várias novidades, principalmente às mulheres, que saíram da prisão da casa colonial de onde, antes, só deveriam sair para o seu batizado, o casamento e o seu sepultamento, segundo um provérbio português. Vigiar a mulher e mantê-la em torno do lar garantia a defesa da honra feminina.  Freqüentar as novidades - os teatros, lojas, confeitarias e as festas e recepções que se tornaram comum na alta sociedade – de forma saudável era permitido contanto que não excedesse nos prazeres e na moda, podendo isso arruinar a mulher física e moralmente. A recreação foi permitida apenas para satisfazer os anseios de distração, mas as regras de condutas esperadas não deveriam ser extrapoladas, cercando os impulsos e vícios típicos da natureza feminina. Elas deveriam se manter reservadas, modestas, silenciosas e não se preocupar com atividades supérfluas, como a moda.

A leitura de romances entre as mulheres, com a maior oferta deste produto no Brasil e a influência européia, tornou-se uma atividade recreativa comum. De um romance esperava-se o ensino das maneiras corretas a uma dama e o reforço da grande missão das mulheres no casamento e na maternidade. A literatura tornou-se a mensageira das normas sociais, já que se acreditava que as mulheres eram pouco dadas a assuntos políticos ou científicos. Narrando situações vividas por algumas personagens femininas, a literatura reforçou a idéia das mulheres “demônio” oposta s mulheres “anjo”, sendo que as primeiras são as desviadas da grande missão, que dão preferência às atividades públicas, ao luxo, à diversão e acabavam se dando mal por seguir esse caminho perverso. Cabia à literatura reforçar as características da mulher ideal através da narração de atos vivenciados pelas personagens que passavam por situações de desvio ou degeneração, demonstrando os malefícios de algumas atitudes e pensamentos femininos. Apesar da atividade ser bastante comum, a vigilância deveria recair também sobre as obras lidas, pois algumas podiam prejudicar muito a vida de uma moça ao descrever cenas impróprias. Um bom romance deveria ter conteúdo leve porque serviam à distração e à educação das sensíveis mulheres.

O romance brasileiro começou a se desenvolver mais intensamente no século XIX, em meio a todas as transformações sociais e culturais do momento, veiculando as idéias relativas à conduta correta das pessoas, especialmente das mulheres, público leitor dominante dessas obras. Os escritores tomaram para si uma missão de colaborar no progresso da nação (assim como as ciências), instruindo a população. Para isso, buscavam elaborar uma escrita nacional, brasileira, inventando uma tradição literária própria, sem fugir da intenção pedagógica. Dentro da intenção de contribuir para o aperfeiçoamento, a estética naturalista foi bastante eficaz nas descrições que buscavam atingir um realismo e uma cientificidade que se aproximavam do cotidiano dos leitores.

O avanço do mercado editorial no Brasil trouxe para a sociedade livros que tratavam de diversos temas, inclusive alguns romances vistos como perigosos. Apesar dos esforços para conter esses tipos de livros, Alessandra EL FAR (2007) nos mostra a diversidade desses romances que eram vendidos, sem muitas restrições, nas lojas e bancas das cidades, tendo uma saída grande devido ao preço reduzido que possuíam. Os chamados “romances para homens” retratavam acontecimentos vistos como imorais e criminosos e, acreditava-se então, que ofereciam um perigo enorme caso caíssem nas mãos dos jovens em formação e das frágeis mulheres, que seriam muito suscetíveis às narrativas. Alguns desses livros possuíam uma justificativa calcada na instrução, pois alegavam que as cenas narradas serviam de alerta ao leitor a respeito dos danos que os atos descritos podiam causar. Após relatar cenas “pornogr ficas” de diversos tipos vivenciadas pelas personagens, homens e/ou mulheres, vários romances descreviam o resultado físico do excesso de luxúria e prazer. Personagens que terminavam doentes, fracos, à beira da morte eram resultantes de uma sexualidade desenfreada. Assim, a pesquisadora mostra como, mesmo nesse tipo de obra destinada a todas às classes, ao divertimento ou à instrução, havia uma moralidade intrínseca, com base nas idéias científicas em voga no período, afirmando a importância do relacionamento saudável entre um homem e uma mulher. 

Visto o contexto do surgimento da literatura brasileira e os cuidados que a cercaram no que diz respeito à regulação dos temas inseridos nas obras e a preocupação de colaborar com o projeto de desenvolvimento do país, analisaremos o conteúdo e a receptividade da obra escolhida para este trabalho, A Carne e sua importante descrição das subjetividades das personagens, nos permitindo acessar esse lado obscuro das vidas de fins do século XIX no Brasil.

Na trama narrada por Júlio Ribeiro, começamos pelo título que diz, claramente, toda a intencionalidade da trama: falar da fatal entrega das personagens ao desejo, tendo como foco central da narrativa o sexo e suas conseqüências maléficas; a dificuldade dos protagonistas em frear os ímpetos do desejo e se entregarem desenfreadamente ao perigo.

Lenita é a protagonista. Moça criada pelo pai, Lopes Matoso, que lhe dá um vasto repertório de conhecimentos culturais e científicos, uma educação muito próxima da que era dada privilegiadamente aos homens. Lenita se destaca na sociedade e é alvo de inúmeros pedidos de casamento, mas não se sente apta ao nível dos pretendentes, intelectualmente inferiores a ela. Inicialmente, Lenita é uma mulher que desdenha os homens e despreza o  casamento e não acredita (como acreditavam todos nesse contexto) que ela, uma mulher, precisasse, uma hora ou outra, de um homem. A protagonista, demonstra, ao longo da narrativa domínios em

 Leitura, escrita, gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, natação, equitação, ginástica, música, em tudo isso Lopes Matoso exercitou a filha, porque em tudo era perito: com ela leu os clássicos portugueses, os autores estrangeiros de melhor nota, e tudo quanto havia de mais seleto na literatura do tempo.

O próprio pai, ao vê-la crescer e negar diversos pretendentes chega a perceber que errara no modo de educar a filha. Assim, Lenita se torna uma mulher deslocada, que deixou de lado “as leis da natureza” e terminou por desafiar a sociedade. Sua origem abastada e branca permitiu o acesso ao conhecimento, através do pai, o que a desviou do caminho da dama de elite de permanecer na casa cuidando do marido e dos filhos.  A instrução da mulher não deveria extrapolar o necessário para educar bem os filhos, mesmo porque, segundo muitos médicos da época, a formação biológica feminina era inferior, com capacidade intelectual menor que a masculina.

O momento de transformações do século XIX muito se debruçou na educação como meio de obter o almejado progresso e, para isso, houve uma melhoria ampla no ensino. As escolas, separadas em escolas para meninos e escolas para meninas, se dedicaram ao ensino da moral, da educação física e dos conhecimentos em geral conforme o público que atendia. Algumas famílias mais abastadas, para evitar o contato dos filhos com outras crianças, contratavam professores particulares.

Em geral, à menina ensinava-se as primeiras letras, os trabalhos de agulha e os princípios de piano; as que chegavam ao ensino secundário recebiam basicamente instrução moral e religiosa, noções de leitura, escrita e gramática, princípios de aritmética, além de costura, bordado e outros misteres de educação doméstica.

A escola, para meninas, deveria apenas ensiná-las a serem boas esposas e mães, já que muito em breve estariam na idade aconselhada ao casamento. Mulheres que estudavam demais se tornavam uma pedra na vida dos homens, pois certamente passariam a competir com eles, prejudicando o domínio social masculino. Elisa VERONA (2007) cita uma quadrinha popular que exemplifica a desaprovação da sociedade às mulheres estudadas:

Menina que sabe muito
É menina atrapalhada
Para ser mãe de família
Saiba pouco ou não saiba nada.

A obra dá a entender que Lopes Matoso errou ao não se preocupar com uma  instrução correta para filha, feita por uma mulher de moral – a mãe seria a mais apta, mas a moça a perde ainda pequena - que ensinasse a garota o lugar correto de uma dama da sociedade. Dedicou-se ele próprio a tarefa de pai e mãe e proporcionou a Lenita competir com os homens no que dizia respeito ao conhecimento. Com a morte do pai, Lenita transfere-se à fazenda de um amigo de família, o velho Coronel Barbosa e nota-se grande mudança de comportamento na personagem, que se torna mais frágil e prostrada, certamente devido ao fato de não existir ninguém na fazenda com quem Lenita pudesse conversar e se entreter, pois havia somente as escravas e escravos, outros trabalhadores e os velhos donos da propriedade, que tinham idade já avançada.

Ainda em alguns momentos, Lenita exerce atividades inusitadas a uma mulher, como a caçada de animais de médio e grande porte. Ao voltar de uma dessas aventuras o coronel lhe afirma: “Essa menina! Olhe, você devia ter nascido homem... e quem sabe se você não é mesmo homem”? Com o tempo, longe da sua antiga forma ão, a mo a se transforma e começa a sentir tremores súbitos, adoecendo frequentemente, delirando e sentindo-se iferente. Segundo o texto, Lenita começa a feminizar-se, perdendo os gostos viris de outros tempos, certamente por conta do afastamento da vida anterior, com o pai, a cidade e os livros. O marco da grande transformação “natural a uma mulher” se dá na cena em que Lenita observa fascinada a estátua do Gladiador.

E tinha ímpetos de comer de beijos as formas masculinas, esteriotipadas no bronze. Queria abraçar-se, queria confundir-se com elas.
De repente corou   até   raiz do cabelo.
Em um momento, por uma intuspecção súbita, aprendera mais sobre si própria do que em todos os seus longos estudos de fisiologia. Conhecera que ela,  mulher superior, apesar de sua poderosa mentalidade, com toda a sua ciência, não passava, na espécie, de uma simples fêmea, e que o que sentia era desejo, era a necessidade orgânica do macho. [...] Sentir-se ferida pelo aguilhão da CARNE, espoliar-se nas concupiscências do cio, como uma negra boçal, como um animal qualquer... era a suprema humilhação”.

O corpo de Lenita torna-se indomável e o exercício do cérebro na dedicação do saber não é suficiente para conter uma “verdade maior”, a fraqueza “natural” da mulher, a pulsão da feminilidade, o corpo feminino saturado de sexualidade definido pelos saberes médicos.


No decorrer do texto Júlio Ribeiro substitui a descrição dos comportamentos sexuais de Lenita – suas vontades e pensamentos - para começar a trabalhar a vivência erótica, convivendo com um erotismo em forma de idealização amorosa, principalmente pelo filho do Coronel Barbosa, homem mais velho e casado (não vivia com a mulher há muitos anos), que ela ainda não conhecera, mas que acreditava ser interessante por conta da fama de homem culto. Nesse ponto podemos notar como aparece os sintomas, no livro, da histeria, já que a sexualidade de Lenita adquire proporções de uma doença e começa a ser considerada perigosa ao não conseguir ser freada. A própria Lenita percebe os males que a rondam.

Analisara a crise histérica, o erotismo, o acesso de crueldade que tivera.
Estudava o seu abatimento atual irritadiço, dissolvente, cortado de desejos nexplicáveis. Surpreendia-se amiudadas vezes a pensar sem querer no filho do coronel, nesse homem já maduro, casado, a quem nunca vira; (...) E concluía que aquilo era um estado patológico, que a minava um mal sem cura.

A cena em que nossa protagonista assiste o açoitamento de um escravo fujão também nos serve de exemplo das mudanças que começaram a comandar seu corpo. Observando escondida o castigo do negro, Lenita tem um acesso de crueldade e ao mesmo tempo de prazer ao ver tal sofrimento. É mais um sintoma das irregularidades do seu corpo e desvios de sua moral.

Finalmente, Barbosa, o filho do coronel, entra fisicamente na trama, e é quando o desejo que antes estava somente em formas de sonhos e idealizações, agora se satisfará. Lenita e Barbosa percebem as afinidades entre si, tornam-se muito amigos e parceiros de estudos e experimentações da natureza, estreitando cada vez mais os laços, um admirando ao outro. Há um processo de conquista amorosa, paixão e, mais tarde, entrega carnal de ambos os lados. O autor começa a mostrar ao leitor como a amizade entre duas pessoas de sexos opostos é impossível, pois essa relação vai se modificando dia após dia. Barbosa começa a ser dominado por ilusões e fantasias, também, mas são formas diferentes das idealizações de Lenita; não entra no âmbito do descontrole e da doença, afinal um homem normal possuía necessidades de se satisfazer sexualmente.

A ciência entra no romance por dois lados. O lado em que o autor, juntamente com os leitores, analisa o comportamento de Lenita e de Barbosa e quando os dois analisam seus experimentos e os fenômenos naturais, além dos próprios desejos. A admiração entre os dois é bem diferenciada da admiração de outros personagens em posições sociais diferentes, inferiorizadas, como no romance  cortiço, de Aluísio Azevedo. Aqui a admiração é causada muito mais pelo o que eles têm em comum, o intelecto, e é ela que se torna a via de acesso ao corpo. Podemos dizer que é uma admiração muito mais “civilizada”, não tão instintiva como as que podemos notar ao ler O cortiço. A entrega aos prazeres de personagens negras, mulatas ou mesmo pobres é explicada pelos saberes dominantes como uma característica biológica, inata, que torna esses indivíduos degenerados por serem mais sensuais e muito mais perigosos do que os homens e mulheres brancos e de boa família que apenas se desviam do caminho da norma por algum passo errado. Lenita se desviou do seu caminho ao receber uma educação diferenciada, superior, que a tornou rebelde quanto às regras sociais.

Num episódio em que Lenita e Barbosa saem para caçar, Júlio Ribeiro descreve, mais uma vez a fragilidade da mulher diante do homem e a necessidade fisiológica da fêmea em ser tutelada pelo macho. Lenita é picada por uma cobra e a figura do médico, antes representada pelo doutor que cuida de suas crises logo após a morte do pai, agora está nas mãos de Barbosa, que exerce total controle sobre seu corpo. Com isso, a aproximação do casal é cada vez mais inevitável. Logo após esse fato, os dois finalmente se entregam ao desejo carnal de dois amantes, quando Lenita, não conseguindo controlar mais a “sensa ão estranha”, abandona seu quarto e  atraída para o quarto de Barbosa.

[...] foi um tempestuar infrene, temulento de carícias feroses, em que os corpos se conchegavam, se fundiam, se unificavam; em que a carne entrava pela carne; em que frêmito respondia a frêmito, beijo a beijo, dentada a dentada.
O veneno da cobra, parece, deixara viciada o sangue de Lenita.
O veneno da cobra passa a ser o signo que remete à fatalidade do desejo que arrasta, no capítulo, as personagens à entrega carnal. 

[...]


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Fonte:
Lívia Maria Gonçalves Cabrera: “ Da fragilidade à histeria: corpo e subjetividade femininos em A Carne (1888), de Júlio Ribeiro”. (Monografia de conclusão do curso de Ciências Sociais. Orientador: Prof. Dr. Richard Miskolci. Universidade Federal de São Carlos - Centro De Educação e Ciências Humanas Departamento de Sociologia). São Carlos, 2010

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