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Análise da
histerização do corpo feminino no romance A Carne
Nos capítulos anteriores, vimos que as idéias de progresso e
civilidade, no Brasil, foram inspiradas nos modelos dos países europeus. Todas
as melhorias que o país necessitava eram moldadas em teorias e ações antes
realizadas no velho mundo. A capital da nação, o Rio de Janeiro, palco de
inúmeras transformações desde o estabelecimento da Corte, em 1808, tornou-se
uma espécie de laboratório onde experimentavam as novidades e avanços da
Europa. Intelectuais de todos os ramos do pensamento defendiam a instrução e o
cultivo da moral como elemento vital para o progresso que se buscava para o
Brasil, na tentativa de melhorar o país, desde as infra-estruturas, como ruas,
bairros, saneamento até a implantação e melhoria das instituições
disciplinizadoras da população. Civilizar-se, neste momento, significou
“tornar-se
urbano, cortês, polido, delicado, bem educado.
A imprensa teve um papel fundamental nesse contexto de transformações,
numa época em que os meios de comunicações eram escassos e de acesso restrito.
Para atingir o ideal de civilidade quisto, sentia-se a necessidade de uma
cultura letrada que se tornasse familiar ao país e, então, através dos artigos
e dos romances folhetinescos publicados nos periódicos, a imprensa comunicou idéias,
princípios, valores, normas, teorias que visavam melhorar a população, educando-a,
conscientizando-a. Através do folhetim, inúmeros romancistas puderam publicar
suas obras devido a essa proximidade entre a ficção e a imprensa, que se tornou
uma espécie de medidora de sucesso do escritor para que, mais tarde, as
editoras pudessem investir em publicações.
Elisa VERONA (2007), em sua tese de mestrado, mostra que os
periódicos visavam atingir a todos, por isso, o formato variava conforme o
público, a classe social, o gênero, a profissão, mas grande parte se preocupava
em intervir na instrução da sociedade, levantando a bandeira da nação. Mesmo em
alguns periódicos feito por mulheres, havia a preponderância dos discursos
masculinos, continuando a reforçar o lugar doméstico da mulher. Eram quase inexistente
mulheres que discordavam dessas idéias hegemônicas e, quando acontecia,
tornava-se um escândalo social tal que a mulher-escritora era taxada de diversas
formas, sendo classificada na anormalidade. O momento tinha apenas homens ocupando
as posições de poder na sociedade, cargos públicos e profissões de prestígio (médicos,
jornalistas), portanto, o discurso do poder era por eles construído, assim o
modelo ideal da mulher fazia parte do jogo da dominação masculina e se
encaixava na grande estratégia de progresso moral da nação.
A urbanização trouxe várias novidades, principalmente às mulheres,
que saíram da prisão da casa colonial de onde, antes, só deveriam sair para o
seu batizado, o casamento e o seu sepultamento, segundo um provérbio português.
Vigiar a mulher e mantê-la em torno do lar garantia a defesa da honra feminina. Freqüentar as novidades - os teatros, lojas, confeitarias
e as festas e recepções que se tornaram comum na alta sociedade – de forma saudável
era permitido contanto que não excedesse nos prazeres e na moda, podendo isso arruinar
a mulher física e moralmente. A recreação foi permitida apenas para satisfazer
os anseios de distração, mas as regras de condutas esperadas não deveriam ser
extrapoladas, cercando os impulsos e vícios típicos da natureza feminina. Elas
deveriam se manter reservadas, modestas, silenciosas e não se preocupar com atividades
supérfluas, como a moda.
A leitura de romances entre as mulheres, com a maior oferta deste
produto no Brasil e a influência européia, tornou-se uma atividade recreativa
comum. De um romance esperava-se o ensino das maneiras corretas a uma dama e o
reforço da grande missão das mulheres no casamento e na maternidade. A
literatura tornou-se a mensageira das normas sociais, já que se acreditava que as
mulheres eram pouco dadas a assuntos políticos ou científicos. Narrando situações
vividas por algumas personagens femininas, a literatura reforçou a idéia das mulheres “demônio” oposta s
mulheres “anjo”, sendo que as primeiras são as desviadas da grande missão, que dão
preferência às atividades públicas, ao luxo, à diversão e acabavam se dando mal
por seguir esse caminho perverso. Cabia à literatura reforçar as características
da mulher ideal através da narração de atos vivenciados pelas personagens que passavam
por situações de desvio ou degeneração, demonstrando os malefícios de algumas
atitudes e pensamentos femininos. Apesar da atividade ser bastante comum, a vigilância
deveria recair também sobre as obras lidas, pois algumas podiam prejudicar
muito a vida de uma moça ao descrever cenas impróprias. Um bom romance deveria
ter conteúdo leve porque serviam à distração e à educação das sensíveis
mulheres.
O romance brasileiro começou a se desenvolver mais intensamente no
século XIX, em meio a todas as transformações sociais e culturais do momento, veiculando
as idéias relativas à conduta correta das pessoas, especialmente das mulheres,
público leitor dominante dessas obras. Os escritores tomaram para si uma missão
de colaborar no progresso da nação (assim como as ciências), instruindo a
população. Para isso, buscavam elaborar uma escrita nacional, brasileira,
inventando uma tradição literária própria, sem fugir da intenção pedagógica. Dentro
da intenção de contribuir para o aperfeiçoamento, a estética naturalista foi
bastante eficaz nas descrições que buscavam atingir um realismo e uma
cientificidade que se aproximavam do cotidiano dos leitores.
O avanço do mercado editorial no Brasil trouxe para a sociedade
livros que tratavam de diversos temas, inclusive alguns romances vistos como
perigosos. Apesar dos esforços para conter esses tipos de livros, Alessandra EL
FAR (2007) nos mostra a diversidade desses romances que eram vendidos, sem muitas
restrições, nas lojas e bancas das cidades, tendo uma saída grande devido ao preço
reduzido que possuíam. Os chamados “romances para homens” retratavam acontecimentos
vistos como imorais e criminosos e, acreditava-se então, que ofereciam um
perigo enorme caso caíssem nas mãos dos jovens em formação e das frágeis
mulheres, que seriam muito suscetíveis às narrativas. Alguns desses livros
possuíam uma justificativa calcada na instrução, pois alegavam que as cenas narradas
serviam de alerta ao leitor a respeito dos danos que os atos descritos podiam causar. Após relatar
cenas “pornogr ficas” de diversos tipos vivenciadas pelas personagens, homens e/ou mulheres,
vários romances descreviam o resultado físico do excesso de luxúria e prazer. Personagens
que terminavam doentes, fracos, à beira da morte eram resultantes de uma
sexualidade desenfreada. Assim, a pesquisadora mostra como, mesmo nesse tipo de
obra destinada a todas às classes, ao divertimento ou à instrução, havia uma moralidade
intrínseca, com base nas idéias científicas em voga no período, afirmando a importância
do relacionamento saudável entre um homem e uma mulher.
Visto o contexto do surgimento da literatura brasileira e os
cuidados que a cercaram no que diz respeito à regulação dos temas inseridos nas
obras e a preocupação de colaborar com o projeto de desenvolvimento do país, analisaremos
o conteúdo e a receptividade da obra escolhida para este trabalho, A Carne e sua importante descrição das subjetividades
das personagens, nos permitindo acessar esse lado obscuro das vidas de fins do
século XIX no Brasil.
Na trama narrada por Júlio Ribeiro, começamos pelo título que diz,
claramente, toda a intencionalidade da trama: falar da fatal entrega das
personagens ao desejo, tendo como foco central da narrativa o sexo e suas
conseqüências maléficas; a dificuldade dos protagonistas em frear os ímpetos do
desejo e se entregarem desenfreadamente ao perigo.
Lenita é a protagonista. Moça criada pelo pai, Lopes Matoso, que lhe
dá um vasto repertório de conhecimentos culturais e científicos, uma educação
muito próxima da que era dada privilegiadamente aos homens. Lenita se destaca
na sociedade e é alvo de inúmeros pedidos de casamento, mas não se sente apta
ao nível dos pretendentes, intelectualmente inferiores a ela. Inicialmente,
Lenita é uma mulher que desdenha os homens e despreza o casamento e não acredita (como acreditavam
todos nesse contexto) que ela, uma mulher, precisasse, uma hora ou outra, de um
homem. A protagonista, demonstra, ao longo da narrativa domínios em
Leitura, escrita, gramática, aritmética,
álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, natação, equitação,
ginástica, música, em tudo isso Lopes Matoso exercitou a filha, porque em tudo
era perito: com ela leu os clássicos portugueses, os autores estrangeiros de melhor
nota, e tudo quanto havia de mais seleto na literatura do tempo.
O próprio pai, ao vê-la crescer e negar diversos pretendentes
chega a perceber que errara no modo de educar a filha. Assim, Lenita se torna uma
mulher deslocada, que deixou de lado “as leis da natureza” e terminou por desafiar a
sociedade. Sua origem abastada e branca permitiu o acesso ao conhecimento,
através do pai, o que a desviou do caminho da dama de elite de permanecer na casa
cuidando do marido e dos filhos. A instrução
da mulher não deveria extrapolar o necessário para educar bem os filhos, mesmo
porque, segundo muitos médicos da época, a formação biológica feminina era
inferior, com capacidade intelectual menor que a masculina.
O momento de transformações do século XIX muito se debruçou na
educação como meio de obter o almejado progresso e, para isso, houve uma
melhoria ampla no ensino. As escolas, separadas em escolas para meninos e escolas
para meninas, se dedicaram ao ensino da moral, da educação física e dos
conhecimentos em geral conforme o público que atendia. Algumas famílias mais
abastadas, para evitar o contato dos filhos com outras crianças, contratavam
professores particulares.
Em geral, à menina
ensinava-se as primeiras letras, os trabalhos de agulha e os princípios de
piano; as que chegavam ao ensino secundário recebiam basicamente instrução
moral e religiosa, noções de leitura, escrita e gramática, princípios de aritmética,
além de costura, bordado e outros misteres de educação doméstica.
A escola, para meninas, deveria apenas ensiná-las a serem boas
esposas e mães, já que muito em breve estariam na idade aconselhada ao casamento.
Mulheres que estudavam demais se tornavam uma pedra na vida dos homens, pois
certamente passariam a competir com eles, prejudicando o domínio social masculino.
Elisa VERONA (2007) cita uma quadrinha popular que exemplifica a desaprovação
da sociedade às mulheres estudadas:
Menina que sabe muito
É menina atrapalhada
Para ser mãe de
família
Saiba pouco ou não
saiba nada.
A obra dá a entender que Lopes Matoso errou ao não se preocupar
com uma instrução correta para filha,
feita por uma mulher de moral – a mãe seria a mais apta, mas a moça a perde ainda pequena - que ensinasse
a garota o lugar correto de uma dama da sociedade. Dedicou-se ele próprio a
tarefa de pai e mãe e proporcionou a Lenita competir com os homens no que dizia
respeito ao conhecimento. Com a morte do pai, Lenita transfere-se à fazenda de
um amigo de família, o velho Coronel Barbosa e nota-se grande mudança de comportamento
na personagem, que se torna mais frágil e prostrada, certamente devido ao fato
de não existir ninguém na fazenda com quem Lenita pudesse conversar e se
entreter, pois havia somente as escravas e escravos, outros trabalhadores e os
velhos donos da propriedade, que tinham idade já avançada.
Ainda em alguns momentos, Lenita exerce atividades inusitadas a
uma mulher, como a caçada de animais de médio e grande porte. Ao voltar de uma
dessas aventuras o coronel lhe afirma: “Essa menina! Olhe, você devia ter nascido
homem... e quem sabe se você não é mesmo homem”? Com o tempo, longe da sua antiga forma
ão, a mo a se transforma e começa a sentir tremores súbitos, adoecendo frequentemente,
delirando e sentindo-se iferente. Segundo o texto, Lenita começa a
feminizar-se, perdendo os gostos viris de outros tempos, certamente por conta
do afastamento da vida anterior, com o pai, a cidade e os livros. O marco da grande
transformação “natural
a uma mulher” se dá na cena em que Lenita observa fascinada a estátua do
Gladiador.
E tinha ímpetos de comer
de beijos as formas masculinas, esteriotipadas no bronze. Queria abraçar-se,
queria confundir-se com elas.
De repente corou até raiz
do cabelo.
Em um momento, por
uma intuspecção súbita, aprendera mais sobre si própria do que em todos os seus
longos estudos de fisiologia. Conhecera que ela, mulher superior, apesar de sua poderosa
mentalidade, com toda a sua ciência, não passava, na espécie, de uma simples fêmea,
e que o que sentia era desejo, era a necessidade orgânica do macho. [...]
Sentir-se ferida pelo aguilhão da CARNE, espoliar-se nas concupiscências do cio,
como uma negra boçal, como um animal qualquer... era a suprema humilhação”.
O corpo de Lenita torna-se indomável e o exercício do cérebro na
dedicação do saber não é suficiente para conter uma “verdade maior”, a fraqueza “natural” da
mulher, a pulsão da feminilidade, o corpo feminino saturado de sexualidade definido
pelos saberes médicos.
No decorrer do texto Júlio Ribeiro substitui a descrição dos
comportamentos sexuais de Lenita – suas vontades e pensamentos - para começar a trabalhar a
vivência erótica, convivendo com um erotismo em forma de idealização amorosa,
principalmente pelo filho do Coronel Barbosa, homem mais velho e casado (não
vivia com a mulher há muitos anos), que ela ainda não conhecera, mas que acreditava
ser interessante por conta da fama de homem culto. Nesse ponto podemos notar
como aparece os sintomas, no livro, da histeria, já que a sexualidade de Lenita
adquire proporções de uma doença e começa a ser considerada perigosa ao não
conseguir ser freada. A própria Lenita percebe os males que a rondam.
Analisara a crise histérica,
o erotismo, o acesso de crueldade que tivera.
Estudava o seu
abatimento atual irritadiço, dissolvente, cortado de desejos nexplicáveis.
Surpreendia-se amiudadas vezes a pensar sem querer no filho do coronel, nesse
homem já maduro, casado, a quem nunca vira; (...) E concluía que aquilo era um
estado patológico, que a minava um mal sem cura.
A cena em que nossa protagonista assiste o açoitamento de um
escravo fujão também nos serve de exemplo das mudanças que começaram a comandar
seu corpo. Observando escondida o castigo do negro, Lenita tem um acesso de
crueldade e ao mesmo tempo de prazer ao ver tal sofrimento. É mais um sintoma
das irregularidades do seu corpo e desvios de sua moral.
Finalmente, Barbosa, o filho do coronel, entra fisicamente na
trama, e é quando o desejo que antes estava somente em formas de sonhos e
idealizações, agora se satisfará. Lenita e Barbosa percebem as afinidades entre
si, tornam-se muito amigos e parceiros de estudos e experimentações da
natureza, estreitando cada vez mais os laços, um admirando ao outro. Há um processo
de conquista amorosa, paixão e, mais tarde, entrega carnal de ambos os lados. O
autor começa a mostrar ao leitor como a amizade entre duas pessoas de sexos
opostos é impossível, pois essa relação vai se modificando dia após dia.
Barbosa começa a ser dominado por ilusões e fantasias, também, mas são formas
diferentes das idealizações de Lenita; não entra no âmbito do descontrole e da
doença, afinal um homem normal possuía necessidades de se satisfazer
sexualmente.
A ciência entra no romance por dois lados. O lado em que o autor,
juntamente com os leitores, analisa o comportamento de Lenita e de Barbosa e
quando os dois analisam seus experimentos e os fenômenos naturais, além dos
próprios desejos. A admiração entre os dois é bem diferenciada da admiração de outros
personagens em posições sociais diferentes, inferiorizadas, como no romance cortiço, de Aluísio Azevedo. Aqui
a admiração é causada muito mais pelo o que eles têm em comum, o intelecto, e é
ela que se torna a via de acesso ao corpo. Podemos dizer que é uma admiração
muito mais “civilizada”,
não tão instintiva
como as que podemos notar ao ler O cortiço. A entrega aos prazeres de personagens negras, mulatas
ou mesmo pobres é explicada pelos saberes dominantes como uma característica
biológica, inata, que torna esses indivíduos degenerados por serem mais
sensuais e muito mais perigosos do que os homens e mulheres brancos e de boa
família que apenas se desviam do caminho da norma por algum passo errado. Lenita
se desviou do seu caminho ao receber uma educação diferenciada, superior, que a
tornou rebelde quanto às regras sociais.
Num episódio em que Lenita e Barbosa saem para caçar, Júlio
Ribeiro descreve, mais uma vez a fragilidade da mulher diante do homem e a
necessidade fisiológica da fêmea em ser tutelada pelo macho. Lenita é picada
por uma cobra e a figura do médico, antes representada pelo doutor que cuida de
suas crises logo após a morte do pai, agora está nas mãos de Barbosa, que exerce
total controle sobre seu corpo. Com isso, a aproximação do casal é cada vez
mais inevitável. Logo após esse fato, os dois finalmente se entregam ao desejo
carnal de dois amantes, quando Lenita, não conseguindo controlar mais a “sensa ão estranha”,
abandona seu quarto e atraída para o
quarto de Barbosa.
[...] foi um tempestuar
infrene, temulento de carícias feroses, em que os corpos se conchegavam, se fundiam,
se unificavam; em que a carne entrava pela carne; em que frêmito respondia a
frêmito, beijo a beijo, dentada a dentada.
O veneno da cobra, parece,
deixara viciada o sangue de Lenita.
O veneno da cobra
passa a ser o signo que remete à fatalidade do desejo que arrasta, no capítulo,
as personagens à entrega carnal.
[...]
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Fonte:
Fonte:
Lívia Maria Gonçalves Cabrera: “ Da fragilidade à histeria: corpo
e subjetividade femininos em A
Carne (1888),
de Júlio Ribeiro”. (Monografia de conclusão do curso de Ciências Sociais. Orientador:
Prof. Dr. Richard Miskolci. Universidade Federal de São Carlos - Centro De Educação e
Ciências Humanas Departamento de Sociologia). São Carlos, 2010
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