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A oposição Cidade/Campo, a ambigüidade do narrador e a poética da
alteridade em A Cidade e as Serras
Muito se tem discutido sobre a obra A Cidade e as Serras,
de Eça de Queiroz. Críticos como António José Saraiva, Óscar Lopes, Jacinto do
Prado Coelho, Ernesto Guerra da Cal e Maria Lúcia Lepecki, por exemplo, teceram
comentários os mais variados possíveis acerca do referido texto. Mas seria essa
obra apenas um texto preocupado em “ridicularizar o progresso técnico” ou o
conceito de civilização como “armazenamento de comodidades”, como pretendem
Saraiva e Lopes? Ou, como pretende Jacinto do Prado Coelho, seria uma obra “reacionária”,
“infiel à personalidade literária” de Eça de Queiroz? Poder-se-ia tomá-la,
ainda, como uma simples exaltação dos valores tradicionais portugueses por meio
do cotejo cidade/campo? Ou a questão central está, conforme aponta Lepecki, na
ambigüidade da narrativa? Em maior ou menor grau, pode-se dizer que há uma dose
de coerência em cada um desses pensamentos, mas há de se destacar, ainda, uma
outra e interessante possibilidade de análise da questão: a utilização da
técnica do distanciamento ou ponto de vista distanciado, que tem por finalidade
a isenção e o senso crítico no ato de discernir.
Segundo Jacyntho Lins Brandão (2001), de tal estratégia discursiva
valeu-se largamente em seus textos Luciano de Samósata com a finalidade de
explicitar e pensar a diferença. E é dessa forma que em A Cidade e as Serras
podem se apresentar o olhar de um narrador aparentemente ambíguo (Zé Fernandes)
– uma vez que há uma contradição entre seu discurso e suas ações – e o ponto de
vista deslocado/distanciado da personagem Jacinto, que tornam possível a
leitura do texto queirosiano como uma metáfora da poética da alteridade, como
se verá adiante.
Ainda de acordo com Brandão (2001), essa poética está assentada
sobre duas bases: a submissão do próprio ao critério do outro, através da
justaposição de diferenças, e a contemplação do próprio por meio de uma
perspectiva deslocada, que representaria o foco mais correto:
Diferentes perspectivas
de alteridade podem ser descobertas nos textos de Luciano [...]. Ressalta,
antes de tudo, seu gosto por personagens marginalizadas, como prostitutas,
eunucos, escravos, pobres e humildes. [...].
[...]. Outro ponto em
que se descobrem dados interessantes diz respeito ao gosto por espaços de
alteridade, representados pelo submundo das grandes cidades, bem como por
lugares estrangeiros, pelo exótico, por desertos, o mundo dos mortos, os
confins da terra, o extraterrestre, as utopias. (p.140)
[...]. O que haveria
contudo de peculiar em Luciano seria uma mudança de enfoque: não mais o outro
traduzido pelo próprio [...] mas o próprio posto em juízo a partir do ponto de
vista do outro, pelo simples fato de ser contraposto a ele. [...]; a opinião
fidedigna deve partir dos outros (álloi),
ou seja, a verdade só pode surgir quando se rompe a esfera do costumeiro para
avaliá-lo de perspectiva diferente, eliminando o risco do erro por ignorância. (p. 140-141)
Porém, é importante ressaltar que essa justaposição de diferenças
que marca a submissão do próprio ao critério do outro não pode se assentar na
questão pura e simples da contraposição de culturas, pois o puramente outro não
possuiria os elementos necessários para um julgamento crítico imparcial:
Não se trata
simplesmente de um grego que vê, com olhos gregos, os outros. Não se trata
também, entretanto, de um outro que vê, como olhos estrangeiros, os gregos. A
questão da alteridade em Luciano passa pelo estatuto pouco definido do
aculturado que, deixando de lado o que lhe é próprio, adota outra cultura mas
não se sente nunca totalmente adotado por ela. (p.143)
Assim, é justamente o fato de o outro ser um aculturado – e,
portanto, conhecer os costumes do próprio – e de o próprio assumir um ponto de
vista distanciado que viabiliza a criação de um espaço para o riso e para a
crítica.
Nesse contexto
ambivalente cria-se espaço para o riso e para a crítica, pois o completamente
outro não teria os canais para entender-se e comunicar-se com a esfera do
próprio, e o completamente próprio não teria a isenção que a distância fornece
para rir de seus próprios valores. (p. 147)
Em A Cidade e as Serras Zé Fernandes e Jacinto assumem essa
perspectiva deslocada que viabiliza a isenção, conforme já tivemos oportunidade
de mencionar no capítulo 3 deste trabalho. O primeiro, por ser aculturado: o
habitante de Guiães, no Douro, que vai estudar em Paris, tornando-se amigo de
Jacinto, e que retorna a Portugal para cuidar dos negócios da família, onde
fica por 7 anos, quando, então, volta à França. O segundo, por, ao longo de sua
trajetória, perceber aquilo que lhe é próprio por duas vias distintas: o grande
e civilizado Jacinto – inimaginável habitante do campo, proprietário de um
luxuosíssimo Palacete em Paris, para quem a suprema felicidade resumia-se no
acúmulo de conhecimento e tecnologia – e, mais tarde, o Jacinto rural, serrano,
que, tendo partido a contragosto para suas terras em Tormes e ficado lá mais
tempo do que previra, acaba por estabelecer uma relação harmoniosa e prazerosa
com as Serras.
Desse modo, os espaços Cidade e Campo perdem a sua importância
dentro do texto queirosiano enquanto espaços físicos propriamente ditos, bem
como perde o foco principal a questão da oposição pura e simples entre
Civilização e atraso cultural. O que está em jogo, portanto, não é mais a
representação vulgar de duas culturas distintas, assentadas sobre esses dois
espaços, mas a forma de se pensar essas culturas, personificadas pelas
personagens Zé Fernandes e Jacinto; um pensar tanto do ponto de vista daquele
que é próprio como do ponto de vista do outro, do “estrangeiro”.
Tomando-se primeiramente Zé Fernandes, é patente certo consenso em
torno da questão da astúcia e da ambigüidade desse narrador, uma vez que ele se
mostra (pretensamente) dissimulado quanto ao que realmente sabe e pensa e
contraditório por criticar a cidade e a civilização que tanto o fascinam. Dessa
forma, e ainda de acordo com a crítica geral, tem-se um comprometimento do
ponto de vista, do foco narrativo, visto que a caracterização de Jacinto, suas
idéias e seus ambientes chegam ao leitor totalmente filtrados pelo olhar desse
narrador “dissimulado”.
Mas esse ponto de vista aparentemente comprometido pode ser visto
como aquela perspectiva deslocada mencionada acima.
Ainda segundo Jacyntho Lins Brandão, em seu texto O rir dos
Gregos (2003), o riso grego pode se dar de várias formas. Uma delas é a
inserção de um terceiro elemento – um terceiro homem – na história. Esse
terceiro elemento é o responsável por observar a cena e, com sua fala,
despertar o riso tanto nas personagens como no leitor pelo ridículo dessa mesma
cena. Esse “terceiro” pode ser um homem comum, um não iniciado num certo tipo
de saber que, observando do exterior, assume a função satírica. Por outro lado,
esse “terceiro” também pode ser um expert, cuja função passa a ser
denunciar aqueles que “sabem pela metade”. Finalmente, esse “terceiro” pode ser
um estrangeiro, preferencialmente um bárbaro, que rirá de certos
costumes/culturas. Porém, conforme aponta Brandão, esse “terceiro” não pode ser
um “bárbaro” completo, pois, ao ridicularizar/rir de certos costumes gregos,
seria tomado pelas demais personagens do grupo em que se insere como alguém sem
cultura e que, conseqüentemente, desconhece os costumes de um povo civilizado.
Dessa forma, esse terceiro geralmente é filho de mãe grega, pois, assim sendo,
pode observar a situação por ambos os lados, “por fora e por dentro”, ou seja,
pode rir daquilo que conhece.
Transpondo-se essa teoria para A Cidade e as Serras,
pode-se encontrar em Zé Fernandes esse terceiro elemento: o aculturado que,
conhecendo e fazendo parte de “dois mundos", de dois espaços distintos –
um “menos Civilizado” (Portugal e a família), outro com excesso de Civilização
(Paris e Jacinto) – pode “rir de”, satirizar aquilo que bem conhece e que
considera absurdo, ridículo e risível (os excessos existentes no mundo de
Jacinto). É a utilização do riso com função crítica dessacralizadora, uma vez
que põe a nu tudo aquilo que se esconde sob a aparência da grandiosidade.
Vejam-se, por exemplo, esses trechos do capítulo em que Zé
Fernandes retorna a Paris após sete anos em Portugal e reencontra Jacinto e o
seu palacete, o 202:
E, todavia, nada mudara
durante esses sete anos no jardim do 202!
[...].
Mas dentro, no
peristilo, logo me surpreendeu um elevador instalado por Jacinto – apesar do
202 ter sòmente dois andares, e ligados por uma escadaria tão doce que
nunca ofendera a asma da sr.ª D. Angelina! Espaçoso, tapetado, ele oferecia,
para aquela jornada de sete segundos, confortos numerosos, um divã, uma pele de
urso, um roteiro das ruas de Paris, prateleiras gradeadas com charutos e
livros. [...].
Eu murmurei, nas
profundidades do meu assombrado ser:
– Eis a Civilização!
(QUEIROZ, 1912, p. 24). (Grifo nosso).
[Jacinto]
Amarrotara com cólera a carta começada – eu escapei, respirando, para a
Biblioteca. Que majestoso armazém dos produtos do Raciocínio e da
Imaginação! Ali jaziam mais de trinta mil volumes, e todos decerto
essenciais a uma cultura humana. [...]. (p. 28). (Grifo nosso).
Outro momento da narrativa em que se verifica o olhar sarcástico
de Zé Fernandes pode ser observado na descrição do jantar oferecido por Jacinto
ao Grão-Duque, quando o prato principal a ser servido, um peixe raro trazido
pelo ilustre convidado, encalha dentro do poço do elevador da cozinha.
Segue-se, aí, uma autêntica cena carnavalizada, uma vez que nobres e serviçais,
lado a lado, rodeiam o poço escuro do elevador da cozinha na tentativa frustrada
de “pescar” o peixe do jantar, utilizando, como anzol, um gancho que pertencera
a Princesa de Carman e que, agora, umas das convidadas ostentava. Vê aí o
leitor, diante de seus olhos, uma autêntica imagem da praça pública
carnavalesca bakhtiniana, e ouve claramente ressoar o riso dessacralizador –
riso esse provocado pelo ridículo da cena observada.
Dessa forma, seja por meio de seus maliciosos comentários, seja
por meio da descrição de cenas observadas, tem-se não um narrador ambíguo,
dissimulado, mas um narrador distanciado e irônico que, assumindo uma
perspectiva deslocada, possui a isenção necessária para julgar aquilo que vê.
Zé Fernandes é, portanto, o terceiro elemento, o aculturado de que fala
Jacyntho Lins Brandão, que, conhecendo bem os dois espaços – o citadino e o
campestre/serrano – e seus respectivos costumes, pode ironizar e satirizar as falhas
e excessos existentes nesses “dois mundos”.
Mas a função do astuto narrador de A
Cidade e as Serras não se limita apenas a ironizar e satirizar costumes:
ela vai mais além. Zé Fernandes surge ao leitor como um narrador que tem uma tese a demonstrar e a provar, tese esta que
de fato fica provada ao final do romance. Assim, ele é alguém que satiriza não
o progresso ou a Civilização em si, mas, sim, um tipo de mentalidade que vê no
acúmulo de bens materiais, de facilidades e de comodidades que esse progresso e
essa Civilização podem trazer (traduzidos pelos excessos de Jacinto) a única
forma de se atingir a felicidade.
Assim, a própria
veracidade da Idéia concebida por Jacinto, O Príncipe da Grã Ventura,
em tempos de Universidade – a Idéia de que “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado” –, Idéia essa resumida pela “Equação
Metafísica” Suma ciência x Suma potência = Suma felicidade, é
posta em xeque pelo narrador quando este se reencontra com o amigo sete anos
mais tarde.
O trecho transcrito abaixo, apesar de longo, retrata bem o tédio
de Jacinto e a ironia do narrador diante da ineficácia do acúmulo e dos
excessos de Civilização na tentativa de alcançar a “felicidade suprema”:
Reparei então que o meu
amigo emagrecera: e que o nariz se lhe afilara mais entre duas rugas muito
fundas, como as dum comediante cansado. Os anéis
do seu cabelo lanígero rareavam sobre a testa, que perdera a antiga serenidade
de mármore bem polido. Não frisava agora o bigode, murcho, caído em fios
pensativos. Também notei que corcovava. (p. 25). (Grifo nosso).
– E acumulaste
civilização, Jacinto! Santo Deus... Está tremendo, o 202!
Ele espalhou em torno
um olhar onde já não faiscava a antiga vivacidade:
– Sim, há confortos...
Mas falta muito! A humanidade ainda está mal apetrechada, Zé Fernandes... E a
vida conserva resistências. (p. 26). (Grifo
nosso)
E, através da
Biblioteca, penetrámos na sala de jantar – que me encantou pelo seu luxo sereno
e fresco. [...]
[...].
Mas já eu me começava a
inquietar, reparando que a cada talher correspondiam seis garfos, [...]. Todo
um aparador porém vergava sob o luxo redundante, quase assustador de águas –
águas oxigenadas, águas carbonatadas, águas fosfatadas, águas esterilizadas,
águas de sais, outras ainda, em garrafas bojudas, com tratados terapêuticos
impressos em rótulos.
– Santíssimo nome de
Deus, Jacinto! Então és ainda o mesmo tremendo bebedor de água, hem?... [...]
Ele derramou, por sobre
toda aquela garrafaria encarapuçada em metal, um olhar desconsolado:
– Não... É por causa
das águas da Cidade, contaminadas, atulhadas de micróbios... Mas ainda não
encontrei uma boa água que me convenha, que me satisfaça... Até sofro sede.
Desejei então conhecer
o jantar do Psicólogo e do Simbolista [...].
Começava honradamente
por ostras clássicas, de Marennes. Depois aparecia uma sopa de alcachofras e
ovas de carpa...
– É bom?
Jacinto encolheu
desinteressadamente os ombros:
– Sim... Eu não tenho
nunca apetite, já há tempos... Já há anos.
[...]. E por sobremesa
simplesmente laranjas geladas com éter.
– Em éter, Jacinto?
[...]
– É novo... Parece que
o éter desenvolve, faz aflorar a alma das frutas...
Curvei a cabeça ignara,
murmurei nas minhas profundidades:
– Eis a Civilização!
E descendo os Campos
Elísios, encolhido no paletó, a cogitar neste prato simbólico, considerava a
rudeza e o atolado atraso da minha Guiães, onde desde séculos a alma das
laranjas permanece ignorada e desaproveitada dentro dos gomos sumarentos, por todos aqueles pomares que ensombram e perfumam o
vale, da Roqueirinha a Sandofim! Agora
porém, bendito Deus, na convivência de um tão grande iniciado como Jacinto, eu
compreenderia todas as finuras e todos os poderes da Civilização.
E, (melhor ainda para a
minha ternura!) contemplaria a raridade dum homem que, concebendo uma idéia da
Vida, a realiza – e através dela e por ela recolhe a felicidade perfeita. Bem
se afirmara este Jacinto, na verdade, como Príncipe da Grã-Ventura! (p. 33-35). (Grifo
nosso).
Desse modo, portanto, e desde o começo da obra, Eça de Queiroz
coloca em confronto não os espaços físicos Cidade e Campo propriamente ditos,
mas dois olhares distintos focalizando culturas igualmente distintas: o olhar
de Zé Fernandes, que, por ser aculturado e conhecer bem essas duas culturas,
possui a isenção necessária para um julgamento imparcial, e o olhar de Jacinto,
ainda comprometido pela falta de distanciamento que viabiliza essa isenção.
Faz-se patente nesse excerto, assim, a velha ironia queirosiana: o
escritor português utiliza-se desses dois espaços – a aldeia de Guiães e o
palacete dos Campos Elísios – não com a mera finalidade de confrontar duas
culturas diferentes; também não faz desse confronto pretexto para uma simples
exaltação dos valores tradicionais portugueses; muito menos faz de tais espaços
meios para enfatizar ideais conservadores. Eça de Queiroz, conforme mencionado acima,
parece querer colocar em xeque a cultura extremamente materialista que vê nos excessos
de facilidades e comodidades que a Civilização pode oferecer o único meio de se
conquistar a felicidade.
Outros muitos trechos que mostram claramente essa ironia
decorrente do deslocamento de perspectiva que possibilita ao narrador a isenção
e, portanto, um julgamento correto daquilo que o cerca podem ser facilmente
encontrados no decorrer do texto, porém, os trechos selecionados parecem
suficientes para ilustrar a linha de interpretação proposta.
Lançando-se agora o foco sobre Jacinto, observa-se, durante a
trajetória da personagem no texto, uma gradual transformação de pensamento e de
comportamento em relação ao materialismo exacerbado que a caracterizava desde o
princípio do romance.
Jacinto, que “entre a inconsciência e a impassibilidade da
Natureza, tremia com o terror da sua fragilidade” e que, em meio a esta, via a “inutilização
de todas as suas faculdades superiores”, Jacinto, para quem “ao cabo duma
semana rural, de todo o seu ser nobremente composto só restava um estômago e
por baixo um falo”, tem um primeiro lampejo de consciência quando é levado pelo
amigo Zé Fernandes à Basílica do Sacré-Coeur, em construção nos altos de
Montmartre, de onde vê a cidade por um ângulo de visão diferenciado, inusitado.
Contemplando Paris do alto, a personagem – para quem “a idéia de Civilização
não se separava da idéia de Cidade” – começa a perceber, por meio do discurso filosófico
do amigo e do quadro que tem à sua frente, que essa cidade tão cheia de
encantos, com todo o progresso material alcançado, pode, por aquela perspectiva,
se afigurar como uma mera ilusão do ser humano.
[...]. Sob o céu
cinzento, na planície cinzenta, a Cidade jazia, toda cinzenta, como uma vasta e
grossa camada de caliça e telha. E, na sua imobilidade e na sua mudez, algum
rolo de fumo, mais ténue e ralo que o fumear dum escombro mal apagado, era todo
o vestígio visível da sua vida magnífica.
Então chasqueei
risonhamente o meu Príncipe. Aí estava pois a Cidade, Augusta criação da
Humanidade. Ei-la aí, belo Jacinto! Sobre a crosta cinzenta da Terra – uma
camada de caliça, apenas mais cinzenta! No entanto ainda momentos antes a
deixáramos prodigiosamente viva, cheia dum povo forte, com todos os seus
poderosos órgãos funcionando, abarrotada de riqueza, resplandecente de
sapiência, na triunfal plenitude do seu orgulho, como Rainha do Mundo coroada
de Graça. E agora eu e o belo Jacinto trepávamos a uma colina, espreitávamos,
escutávamos – e de toda a estridente e radiante Civilização da Cidade não
percebíamos nem um rumor nem um lampejo! E o 202, o soberbo 202, com os seus
arames, os seus aparelhos, a pompa da sua Mecânica, os seus trinta mil livros?
Sumido, esvaído na confusão de telha e cinza! Para este esvaecimento pois da
obra humana, mal ela se contempla de cem metros de altura, arqueja o obreiro humano
em tão angustioso esforço? Hem, Jacinto?... Onde estão os teus Armazéns
servidos por três mil caixeiros? E os Bancos em que retine o ouro universal? E
as Bibliotecas atulhadas com o saber dos séculos? Tudo se fundiu numa nódoa
parda que suja a Terra. Aos olhos piscos de um Zé Fernandes, logo que ele suba,
fumando o seu cigarro, a uma arredada colina – a sublime edificação dos Templos
não é mais que um silencioso monturo da espessura e da cor do pó final. O que
será então aos olhos de Deus!
E ante estes clamores,
lançados com afável malícia para espicaçar o meu Príncipe, ele murmurou,
pensativo: – Sim, é talvez tudo uma ilusão... E a Cidade a maior ilusão! (p. 100-102). (Grifo
nosso).
Mas esse primeiro lampejo de consciência, juntamente com os
aborrecimentos causados pelas constantes falhas dos equipamentos mecânicos do
202, ainda não é suficiente para desencadear a grande transformação em Jacinto.
Mesmo a insatisfação e o tédio constantes e o pessimismo a que se entrega o Príncipe
da Grã-Ventura não bastam para que a personagem consiga refletir com
imparcialidade sobre a sua situação. Isso porque Jacinto ainda está em estreito
contato com o “seu mundo”, com o “seu espaço”, o que não lhe possibilita o
distanciamento necessário para um julgamento isento e correto.
É somente quando está em Portugal, portanto já distante de todos
os luxos e comodidades que o 202 lhe oferece – uma vez que o seu plano de
reformar a antiga casa de Tormes e de equipá-la com todos os utensílios do
Palacete de Paris antes de lá chegar não se concretiza –, que a transformação
em Jacinto tem início. A beleza e a simplicidade das serras vão, aos poucos,
sobrepondo-se à irritação e à desolação da personagem frente à falta de “Civilização”
(segundo seu conceito) com a qual se vira forçado a conviver.
Importante é enfatizar, entretanto, que, num primeiro momento,
esse encantamento em relação às belezas naturais das serras é o encantamento de
um neófito, de um iniciado que, surpreendido pelos encantos do campo, esquece o
atraso cultural daquele espaço. É somente quando está frente a uma situação
drástica – como, por exemplo, quando vê o estado deplorável em que se encontra
a sua casa – que recobra a consciência da realidade em que está inserido:
No meu Príncipe já
evidentemente nascera uma curiosidade pela sua rude casa ancestral. Mirava o
relógio, impaciente. Ainda trinta minutos!
Depois, sorvendo o ar e
a luz, murmurava, no primeiro encanto de iniciado:
– Que doçura, que
paz...
(p. 159)
[...]. O ar fino e puro
entrava na alma, e na alma espalhava alegria e força. [...].
– Que beleza! (p. 164)
E, entre o rosnar dos
cães, num bracejar desolado, [Merchior] balbuciou uma história que por seu
turno apavorava Jacinto [...]. [...].
Ninguém esperava s. ex.ª!
[...]. Na casa as obras seguiam devagarinho, devagarinho... O telhado, no sul,
ainda continuava sem telhas; muitas vidraças esperavam,
ainda sem vidros; [...].
[...].
Jacinto replicou, com
uma decisão furiosa:
– Amanhã troto, mas
para baixo, para a estação!... E depois, para Lisboa! (p. 165-166)
Jacinto caminhou
lentamente para o poial duma janela, onde caiu esbarrondado pelo desastre, sem
resistência ante aquele brusco desaparecimento de toda
Civilização! [...]. (p. 168)
– Olha para este horror!
– murmurava Jacinto arrepiado. (p. 169)
Portanto, o processo de transformação da personagem só se inicia,
efetivamente, à medida que ela enceta um outro processo: o de aculturação.
À medida que Jacinto vai se aculturando, passa de simples neófito
a observador crítico, o que lhe permite um julgamento mais isento daquilo que
vê, conhece e vivencia. Os comentários do Príncipe da Grã-Ventura,
agora, não estão mais assentados sobre a simples admiração das belezas naturais
ou das delícias das serras, mas sobre a comparação racional e imparcial do
aculturado que começa a conhecer “os dois espaços”, “as duas culturas”, “os dois
mundos”:
Dentro, na “nossa sala”,
ambos nos sentámos nos poiais da janela, contemplando o doce sossego
crepuscular que lentamente se estabelecia sobre vale e monte. No alto
tremeluzia uma estrelinha, a Vênus diamantina [...]. Jacinto nunca considerara
demoradamente aquela estrela, de amorosa refulgência [...] nem assistira
jamais, com a alma atenta, ao majestoso adormecer da Natureza. [...]. Daquela janela, aberta sobre as
serras, entrevia uma outra vida, que não anda sòmente cheia do Homem e do tumulto
da sua obra. E senti o meu amigo suspirar como quem finalmente descansa, (p. 171-172). (Grifo
nosso).
– Óptimo!... Ah, destas
favas, sim! Oh que fava! Que delícia!
[...].
– Deste arroz com fava
nem em Paris, Melchior amigo! (p. 174).
(Grifo nosso).
– Quo te carmina dicam, Rethica? Quem
dignamente te cantará, vinho amável destas serras?
[...].
Na Cidade (como notou
Jacinto) nunca se olham, nem lembram os astros – por causa dos candeeiros de
gás ou dos globos de eletricidade que ofuscam. (p. 175) (Itálico do
autor). (Grifo nosso).
E tanto seu olhar é agora isento que, parafraseando Descartes,
Jacinto não se mostra um mero maniqueísta:
– [...]. Mas nada mais
belo, e mais vão, que uma cavaqueira, no alto das serras, a olhar para as
estrelas!... Tu sempre vais amanhã?
– Com certeza, Zé
Fernandes! Com a certeza de Descartes. “Penso, logo fujo!” Como queres
tu, neste pardieiro, sem uma cama, sem uma poltrona, sem um livro?... Nem só de
arroz com fava vive o Homem! Mas demoro em Lisboa, para conversar com o
Sesimbra, o meu Administrador. (p. 178). (negrito do autor).
E, como é sabido, a personagem não parte para Lisboa: permanece,
sem o conhecimento de Zé Fernandes e para a surpresa deste, por um mês em
Tormes. Jacinto, recuperando a bagagem extraviada que continha os utensílios
vindos do seu Palacete em Paris, consegue finalmente promover a reforma no
velho casarão. O que há de se ressaltar é que tal reforma é realizada de
maneira comedida e racional. Para o espanto de Zé Fernandes, O Príncipe da
Grã-Ventura não atulhara as serras com todos aqueles apetrechos, toda
aquela “Civilização” que o 202 possuía. Seu agir foi direcionado por um pensar
crítico que fez com ele se ativesse às modificações básicas e necessárias.
Mas eu, ávido pela
história daquela ressurreição:
– Então, não estiveste
em Lisboa?... Eu telegrafei...
– Qual telégrafo! Qual
Lisboa! Estive lá e cima, ao pé da fonte de Lira, à sombra duma grande árvore
[...]. E também a arranjar o meu palácio!
Que te parece, Zé
Fernandes? Em três semanas, tudo soalhado, envidraçado, caiado, encadeirado!...
Trabalhou a freguesia inteira! Até eu pintei, com uma
imensa brocha. Viste o
comedouro?
– Não.
– Então vem admirar a
beleza na simplicidade, bárbaro! (p. 189).
– Agora, Zé Fernandes,
estou saboreando esta delícia de me erguer pela manhã, e de ter só uma escova
para alisar o cabelo.
– Tinhas umas nove.
– Nove? Tinha vinte!
Talvez trinta! E era uma atrapalhação, não me bastavam!... Nunca em Paris andei
bem penteado. Assim com os meus setenta mil volumes: eram tantos que nunca li
nenhum. Assim como as minhas ocupações: tanto me sobrecarregavam, que nunca fui
útil!
(p. 192- 193).
Aculturado, Jacinto agora possuía o olhar distanciado e isento de
Zé Fernandes. Aprendeu a olhar o espaço serrano com outros olhos, mas nem por
isso deixou de reconhecer as falhas e o atraso das serras. Ao perceber que seus
empregados viviam miseravelmente, em precárias condições, iniciou a revolução
final em suas terras, provendo seus domínios com médicos, escolas e habitação,
tornando-se o “Pai dos Pobres”. Casou-se com a prima de Zé Fernandes e se
estabeleceu definitivamente em Portugal, tendo alcançado a tão sonhada felicidade.
Porém, tal desfecho aponta para uma outra questão: a questão da
utopia queirosiana. Sem sombra de dúvidas, Eça de Queiroz encontra a solução
perfeita para o atraso em que se encontrava Tormes, a “solução fácil”, segundo
alguns críticos, uma vez que, para pessoas com posses – como Jacinto – não é
difícil transformar o real no “ideal”. Entretanto, antes de se pensar numa mera
utopia por parte do escritor, banalizando-se, assim, o sentido de sua obra,
talvez se pudesse pensar numa séria advertência de Eça em relação não somente
ao atraso cultural de um país inteiro, mas também em relação a um tipo de
mentalidade generalizada e dominante – mentalidade essa que assolava o homem do
século XIX – que via no extremo materialismo a única forma possível de se
conquistar a felicidade.
Por tudo isso, pode-se dizer que A Cidade e as Serras
constitui uma autêntica metáfora da alteridade, uma vez que não se tem, como
ponto crucial da questão, apenas a “ridicularização do progresso técnico” ou do
conceito de civilização como “armazenamento de comodidades”, nem se trata de
uma simples exaltação dos valores tradicionais portugueses por meio do cotejo
cidade/campo, muito menos de uma obra “reacionária” por parte de Eça de Queiroz,
mas de uma obra que põe em foco a alteridade, a diferença, modos de vida e de pensamento
com a intenção de, no ato de discernir, se pensar e discutir criticamente essa diferença
de forma isenta.
---
Fonte:
Ana Paula Foloni Gambá: “Eça de Queiroz, leitor de Luciano de Samósata? A presença luciânica nos textos O mandarim, A relíquia e A cidade e as serras”. (Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista – para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientador: Rosane Gazolla Alves Feitosa). Assis, 2009
Fonte:
Ana Paula Foloni Gambá: “Eça de Queiroz, leitor de Luciano de Samósata? A presença luciânica nos textos O mandarim, A relíquia e A cidade e as serras”. (Tese de Doutorado apresentada à Faculdade de Ciências e Letras de Assis – UNESP – Universidade Estadual Paulista – para a obtenção do título de Doutor em Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social). Orientador: Rosane Gazolla Alves Feitosa). Assis, 2009
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