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Uma lágrima de mulher, o romance de estréia
Uma lágrima de mulher, o romance de estréia
Uma lágrima de mulher (1880), seu primeiro romance, insere-se no rol dos romances do autor escritos “ao correr da pena,”
repletos de aventuras fantasiosas e sentimentais, que lhe
asseguravam a sobrevivência econômica. Aluísio foi um dos raros escritores que
conseguiram, ainda que precariamente, viver à custa de sua pena. Esta situação
é declarada em correspondências, bem como nas crônicas que escreveu: “escrever,
tem sido aqui no Rio de Janeiro a minha grilheta, muito pesada e bem pouco
lucrativa, da qual livro pulsos e
tornozelo sempre que posso”.
Segundo Olavo Bilac (Mérian, 1988:197), o
romance Uma lágrima de mulher, de romantismo exacerbado, totalmente
contrário às teorias naturalistas que Aluísio defendia publicamente no mesmo
período - “A arte abraçou-se finalmente à ciência. Hoje ela tem um fim mais nobre e um interesse mais real: fez-se um órgão,
propõem-se teses, critica, delibera; e julga-se com todo o direito, um
instrumento de progresso”(Mérian, 1988:195) - , foi escrito não em 1879, mas em
1874, quando Aluísio tinha 17 anos, portanto antes da primeira viagem do autor
ao Rio de Janeiro, e conseqüentemente antes de sua adesão às idéias naturalistas. De acordo com
Mérian, o romance foi publicado apenas
pelo fato de Aluísio passar por algumas dificuldades financeiras, num período
em que seu trabalho de pintor e
jornalista lhe rendia pouco.
Em São Luís
do Maranhão, Aluísio Azevedo recebeu muitas críticas. O jornal local O Tempo
ressaltou a falta de realismo, a filosofia simplista do romance, enumerou as inverossimilhanças
da intriga, mas atribuiu à juventude do autor os excessos românticos. Mais
tarde, tomando consciência da contradição entre a obra e as teorias que adotara, Uma lágrima de mulher parece ter-se
transformado para o próprio Aluísio apenas um trabalho de juventude, sem grande
conseqüência para a produção que se seguiu.
O objetivo
era atender à necessidades de divertimento e à expectativa do público que ansiava pela confirmação de valores
vigentes. Seu açucarado romance inaugural, de filosofia rousseauniana,
apresenta uma visão estereotipada da vida, tem estilo simples e acessível às
leitoras ávidas de intrigas e sobressaltos. Inflacionada de clichês, a narrativa
segue a tradição dos romances-folhetim
franceses. Com aspecto melodramático, funde tendências trágicas e sentimentais,
evidenciando um fascínio pelas situações dramáticas e apaixonantes. Apela-se ao
trágico a fim de acentuar o peso do suspense e da carga emotiva que se pretende
passar ao leitor. A intriga é simples e recheada de episódios inverossímeis (riquezas
súbitas, milagrosa sobrevivência do herói, reencontro inesperado com personagem
até então ausente na trama, falso suicídio...) e de cenas imprevistas e
patéticas.
Os
personagens, divididos a priori entre anjos e demônios, heróis e vilões,
são tipificados, de psicologia maniqueísta. As situações, na sua maioria, bem
como os cenários descritos, são teatrais. Há sempre um ambiente de noite
tempestuosa cheia de relâmpagos e trovões, revelando certa atração pelo
sombrio, pelo nebuloso. Reiterando velhas fórmulas repletas de vinganças,
lutas, estados febris, acentuados por expressões exageradas, e por uma pontuação
expressiva (reticências, pontos de interrogação, de exclamação etc.), Uma lágrima de mulher apresenta o
que R. Mulinacci (apud
Finazzi-Agrò & Vecchio: 2004) denomina “fagocitação romanesca da forma
trágica”.
Na
modernidade, não sendo a tragédia clássica mais possível, o romance, de complexidade análoga, constitui-se como uma
forma de apreensão do trágico. Por meio de mudanças estruturais, o romance reoperacionaliza
o trágico. O herói trágico passa a herói burguês, a forma aristocrática da
tragédia é substituída pela forma burguesa do romance, onde há sempre a
possibilidade de superação da crise. De acordo com R. Mulinacci (apud Finazzi-Agrò
& Vecchio: 2004)“o conflito inconciliável, vital à tragédia, torna-se insustentável
no romance, indo contra o seu atributo de mediador de opostos”. Sem abandonar
os conflitos dramáticos, o romance os neutraliza, evitando a radicalização das antinomias
da tragédia. A tragédia é, então, canibalizada, fagocitada, e o romance se apresenta
como uma forma de atualização do trágico.
Ainda
segundo R. Mulinacci (apud Finazzi-Agrò & Vecchio: 2004), não há no drama romântico uma dimensão
cultual, uma oportunidade de autoconhecimento. Conforme mencionamos, em Uma
lágrima de mulher, os personagens e sua forma de ver a vida não apresentam
nenhuma complexidade. A consciência trágica, em moldes romanescos, é degradada,
e o que se apresenta ao longo da narrativa, em forma residual, são subprodutos
do trágico. O espaço do trágico se modifica, e o que se observa no romance
romântico é apenas uma diluição da tragédia. Em Uma lágrima de mulher, o
trágico, enquanto substância e recurso suplementar na elaboração do híbrido
discurso romanesco, é freqüentemente
banalizado como simples sinônimo e fenômeno do sofrimento.
Através do
levantamento do sistema de seqüenciação dos fatos, pode-se conhecer a regra
narratológica do romance, sua lógica interna, apreendendo assim, o trágico. É a
partir da análise estética do enredo
poético (mythos), da ressonância de sua organização causal, que a densidade trágica do romance é revelada.
A tensão trágica se acentua etapa por etapa do enredo, e o trágico se
configura, no caso do romance em questão, com a morte do herói, na última cena.
A substância trágica se encontra disseminada ao longo do discurso narrativo, por meio dos clichês que auxiliam
na caracterização de Uma lágrima de mulher, a começar pelo título, como
um romance romântico piegas e melodramático. É exatamente a partir de uma ressonância da
seqüência narrativa, na qual a substância trágica se apresenta, e da descrição dos artifícios
narratológicos presentes neste romance, de pura inspiração comercial, que
pretendemos evidenciar o trágico como recurso suplementar na elaboração do
discurso romanesco.
Por ser um
romance pouco conhecido, parece-nos útil a apresentação de um breve resumo. Dividido em três episódios, que
caracterizam as diferentes fases na vida das personagens, os fatos narrados se
desenrolam entre os anos de 1836 e 1844. Na ilha de Lipari, ao norte da
Sicília, vive o austero pescador Maffei na companhia da filha Rosalina e da
religiosa ama Ângela, em uma casinha branca entre os rochedos. Durante a viagem
de Maffei a Nápoles, a fim de tentar fortuna, Miguel, um jovem e pobre músico,
que tinha como única companheira uma rabeca, se apaixona por Rosalina. Em pouco
tempo, a agradável presença de Miguel se torna costumeira na casa do velho
pescador. Em “noites sem lua, em que a frouxa claridade das estrelas povoa o
campo de poesia e amor” (Azevedo,
2005:173), o jovem casal, na companhia de Ângela, cantava canções de amor, demonstrando
uma sublime felicidade. “Era tudo harmonia naquela casinha branca!” (Azevedo,
2005:175).
Dois anos
depois de sua partida, o pescador retorna rico e mais ambicioso. Com a sua
chegada, a felicidade do jovem casal se esvai. Saudosa da presença do amado,
que desde a volta de Maffei permanecia ausente, Rosalina decide contar ao pai
que tem um namorado. Diante da
revelação, Maffei, completamente transtornado, com ares de fera, proíbe
terminantemente os encontros da filha com o músico e anuncia a partida da
família para Nápoles, onde a bela jovem poderia fazer um bom casamento. Em seu
encontro de despedida, o casal é surpreendido pela trágica aparição de Maffei,
que obriga Miguel, com Rosalina nos
braços, a segui-lo até a extremidade de um penhasco. Após uma luta violenta, o
infeliz rapaz é jogado ao mar. O pescador, então, parte com a família para
Nápoles. Inicia-se a segunda parte do romance. Decorridos alguns anos do
episódio do despenhadeiro, Maffei está
mais rico. Sob a influência de um meio social nocivo, Rosalina, antes ingênua e
meiga, é agora uma moça vaidosa, promíscua e dissimulada.
[...] Rosalina transformava-se de dia para dia. Já
não dava mais a pálida idéia da antiga
camponesa, formosa e louçã, cheia de singela ternura, amante e amada, mulher na
idade, criança na inocência (Azevedo, 2005: 202).
O ouro derretera-se, dele levantaram-se as
duas espirais de fumo: civilização e hipocrisia. Estas duas forças combinadas
produzem um fluido capaz de transformar um anjo em mulher e uma mulher em demônio.
Rosalina respirou esse fluido e aprendeu a grande ciência da vida: sabia esquecer, sabia odiar e sabia
mentir (Azevedo, 2005:
203).
Como é
possível observar nos fragmentos acima, o romance, sustentando a tese romântica
de que “na província os sentimentos são mais verdadeiros e as almas mais humanas
e firmes”(Azevedo, 2005:234), passa a revelar toda a hipocrisia de um meio
social denominado pelo romancista de sociedade flutuante, onde burgueses
ricos e nobres falidos estabelecem relações inescrupulosas.
Ainda na
segunda parte do romance, há um corte na narrativa que retorna ao fatídico episódio
da luta no penhasco, para explicá-lo “surpreendentemente”, pois Miguel se
salvara ao cair no mar. Esclarecido o salvamento, a narrativa prossegue
apresentando o jovem músico como preceptor em uma família que muito o
admira.
Tinha por conseguinte o artista todos os
elementos de uma felicidade relativa - teto, cuidados e estima, agora possuía
por bem dizer família; no entanto,
tristeza contínua e carregada pesava-lhe deveras sobre o coração como a garra negra de um abutre (Azevedo, 2005:219).
Diante de
tamanha angústia, o artista decide
retornar à casinha branca a fim de descobrir
alguma pista sobre o paradeiro de Rosalina. Nas redondezas da choupana, o músico
encontra um antigo pescador da região conhecido como Sombra da Noite, uma figura de
aparência estranha, a quem atribuíam todo tipo de feitiçarias e malefícios.
Amigo de Maffei,
Sombra da Noite oferece algumas informações sobre Rosalina, e Miguel decide partir rumo
a Nápoles ao encontro da amada.
A terceira
e última parte do romance narra o reencontro dos personagens. Ao chegar a Nápoles, Miguel escreve um bilhete a
Rosalina, marcando um encontro. Ao rever a amada, o artista reitera suas juras de amor.
Rosalina, todavia, não demonstra nenhum interesse em reviver o amor
adolescente. Em um discurso dissimulado diz a Miguel que também o ama, não
podendo, entretanto, contrariar as ordens do pai. Disposto a tudo para viver
seu grande amor, o músico vinga-se de Maffei matando-o com as próprias mãos, configurando-se
assim uma das cenas mais tensas do
romance.
Rapidamente
recuperada da morte do pai, a jovem assume noivado com um visconde, embora continue a trocar de amantes
ao seu bel prazer. Julgando ter eliminado o único obstáculo a sua felicidade,
Miguel vai novamente ao encontro da amada. A jovem, por sua vez, com a intenção
de livrar-se do pobre músico, mente, dizendo-lhe que bebeu veneno. Depois de
algum tempo, ela chama por Miguel, que não responde. Ela o encara e um “grito de terror e remorso rompeu-lhe
inteiriço das entranhas” (Azevedo, 2003:148). Miguel havia morrido por amor. No
melhor estilo Romeu e Julieta, o herói morre em função da falsa morte da amada.
A moça, então, chora, arrependida. O herói perdidamente apaixonado por uma mulher pérfida e ingrata,
tem um fim trágico, motivado por um incomensurável amor a ela dedicado.
A análise
estética da narrativa permite a identificação de ao menos seis cenas de maior densidade dramática. São elas, tais como
as denominamos: a revelação (capítulo IX, I parte), o flagrante (capítulos XIV
e XV, I parte), o calvário (capítulos XV, I parte), a luta (capítulos XVII, I
parte), a morte de Maffei (capítulos XI, III parte) e a morte do herói (capítulos
XIV, III parte). Conforme nitidamente se observam, as cenas foram citadas respeitando a seqüência narrativa do romance,
uma vez que, como já salientamos, a tensão trágica segue um percurso contínuo e
progressivo ao longo da narrativa. Ela se encontra igualmente disseminada por
todo o discurso romanesco, uma vez que é exatamente neste contar que a situação trágica se apresenta
mimeticamente. Através da leitura analítica de cada uma dessas seis cenas, calcadas em
clichês, buscaremos discutir os artifícios narratológicos que acionam o
trágico.
A descrição
estereotipada dos personagens, feita logo no início do romance, é um dos
principais elementos que contribuem para a emergência do trágico. A cena do calvário,
por exemplo, tem seu teor dramático acentuado, dentre outros elementos, pela descrição
de Miguel como um homem de sensibilidade extrema, voltado para o ideal e a perfeição.
O destino trágico que sobre ele se abate ressalta a excepcional grandeza de seu
sofrimento, tornando-o superior a todos os outros personagens. A ingênua
divisão dos personagens entre bons e
maus se constitui como um meio de declarar ao leitor, de uma forma superficial
e pouco elaborada, típica da literatura sob medida dos folhetins, que espécie
de comportamento e atitude se pode esperar dos mesmos ao longo da trama. O nome
das personagens tem papel importante, contribuindo diretamente na tipificação,
na construção de suas máscaras. Maffei,
apresentado como uma fera, tem em seu nome o mal, o fel, enquanto Rosalina traz
consigo a beleza exuberante e espinhosa da rosa. Descrita como uma moça meiga e
delicada, tem logo suas falhas reveladas. No capítulo III, na primeira parte do
romance, depois da declaração de amor de Miguel, o narrador adverte: “No
entanto, Rosalina estava longe de alcançar a grandiosidade deste sentimento” (Azevedo,
2005:172). Protótipo do herói romântico, Miguel é um pobre músico de caracteres
e nome angélicos. Da mesma forma, a ama Ângela é criatura boa e religiosa. Ao iniciar
a leitura da cena da revelação (capítulo IX, I parte), tal como a denominamos, em que Rosalina revela ao pai que
tem o pobre músico como namorado, o leitor sabe que Maffei, por ser um homem
perverso e ambicioso, jamais permitirá o namoro da única filha com um Lazzarone. Maffei se recusa a aceitar a idéia de casar a
filha com um órfão, filho de um pai bêbado, acusado de assassino.
Teodoro Rizio [...] viveu para vergonha
sua e da família. Era devasso e encontrado constantemente bêbado pelos
alpendres; foi acusado de assassino e morreu preso numa prisão [...]. Sua
desgraçada mulher não o sobreviveu por muito tempo, morrendo pouco a pouco
depois, de tísica, dizem uns, de miséria, dizem outros; de vergonha, digo eu.
Ficou desses desgraçados um filho; não sei
se herdou do pai todos os vícios (Azevedo, 2005:192).
O desfecho
da cena é totalmente previsível, e a tensão trágica se manifesta por meio de circunstâncias contrastantes. A
descrição da felicidade compartilhada pelo jovem casal na ausência do pescador se opõe à tristeza
disseminada pelo seu retorno -“À monotonia bondosa da casinha branca sucedeu a tristeza,
espécie de pavor, que cerca o homem de má catadura”(Azevedo, 2005:178) - assim como o
discurso apaixonado do casal contrasta com a tenebrosa imagem de Maffei e com
seu aterrorizante tom de voz ao proibir a filha de namorar Miguel. “Um raio não
produziria o efeito desta revelação. Foi um avermelhar de olhos, um crispar de lábios, um contorcer de
nervos, mais rápidos que o relâmpago. Estava transformado. – Miguel Rizio! Um
miserável!...”(Azevedo, 2005:181). É assim a partir da fusão de dados
oferecidos ao leitor, antes ou no decorrer da cena, que a substância trágica se
revela.
O capítulo
XIV da parte I narra, permeado por juras de amor, o mais romântico encontro
entre Miguel e Rosalina. Estão presentes o discurso apaixonado ultramelódico: “Tu
és a estrela que me guia ao futuro, o cajado que me ampara na vida, a luz que
me dá crenças e a crença que me dá
forças”(Azevedo, 2005:187) -, bem como a mais clássica cena de reencontro de um
casal apaixonado:
Assim que o divisou, deitou a correr
francamente para ele com os braços abertos. Mais parecia descer voando que
correndo [...].
Era aquilo um descer vertiginoso e quase
fantástico [...]. Miguel correu ao encontro de Rosalina, recebendo-a em cheio
nos braços.
Vinha ofegante de cansaço, e nesse estado
se abandonava de si, para todo se entregar negligentemente aos braços do amante (Azevedo, 2005:186- 187).
É o choque
abrupto entre a atmosfera docemente romântic a do início da cena, plenade
clichês, e o seu desfecho o principal responsável pelo desencadear da tensão
trágica. O foco vermelho da lanterna que interrompe subitamente o beijo dos
amantes caracteriza a mudança da narrativa: “Súbito, um jato de luz vermelha
inundou rápido o grupo abraçado dos dois amantes” (Azevedo, 2005:188). O
discurso romântico aliado ao suspense se instala a partir da dúvida do leitor, a quem ainda não
foi revelada a identidade do portador da misteriosa lanterna. Entra em cena o
senso de mistério corroborado pela alusão à imagem de Satanás, portando auréola igualmente
avermelhada: “Se Satanás existe, deve ser dessa cor a sua auréola” (Azevedo,
2005:188).
Rosalina,
em face do assombroso flagrante, grita horrorizada e desmaia nos braços amorosos de Miguel, que a seu turno permanecia
imóvel, “tendo nos braços uma mulher bela e pálida, de uma beleza e de uma
palidez de mármore” (Azevedo, 2005:189). Assim o capítulo se encerra, mantendo
o suspense como gancho para a cena seguinte. No encadeamento da narrativa, que
passa da cena de amor à de mistério, a tensão
se instala. Na cena subseqüente, o leitor mais ingênuo tem, então, uma “grande
surpresa”. O dono da lanterna a flagrar o couple amoureux era “surpreendentemente”
Maffei, o pai da donzela apaixonada: “A cinco passos de distância, de pé [...]
sustentando uma machadinha [...], estava do alto Maffei, pálido de raiva, com a
boca cerrada a salivar bile. Estava medonho”(Azevedo, 2003:189).
O mistério
paira sobre a narrativa que tem como cenário um ambiente tenebroso: “a atmosfera
começava a se fazer carregada e pouco a pouco escondera a lua” (Azevedo, 2005:189).
A imponente e diabólica figura de Maffei contribui para o tom frio e áspero da cena.
Ele ordena ao jovem músico, já refeito do primeiro impacto do flagrante, que o acompanhe
até o alto da colina. Inicia-se, a partir daí, o calvário do artista. Com a
amada em seus braços, Miguel segue o velho pescador que marchava adiante,
iluminando o caminho. Gradualmente, o foco da lanterna amorteceu, e o negrume
da noite se intensificou. Miguel sentia-se exausto, a íngreme ladeira parecia
exaurir suas forças. A criatura amada era naquela subida sua cruz, e por ela o
herói resistia bravamente. Seu corpo respondia àquele esforço incomensurável
com dores, suores, vertigens. Contudo, o bom samaritano mantinha-se de pé, fiel
ao seu amor por Rosalina:
Porém,
pouco e pouco foram desaparecendo os últimos recursos e reproduzindo-se as dificuldades: o suor
jorrava em bagas da fronte do moço; as pernas tremiam-lhe; a vista
perturbava-se; a língua seca; o coração doído; a cabeça perdida; a respiração
cada vez mais demorada e mais forte. O corpo de Rosalina parecia de chumbo; o
cansaço fizera dele
um corpo de
gigante. Ora desanimava, ora reagia; as forças iam e vinham. Era um vaivém de agonias (Azevedo, 2005:190).
Ao
faltar-lhe o ânimo para prosseguir, o herói se dirige aos céus. O discurso
ganha traços religiosos, que confirmam a caracterização desta difícil escalada
como um calvário. A peregrinação, compreendida
como reflexo da idéia cristã de que é preciso sofrer para atingir a glória,
estando diretamente associada à purgação da culpa e à possibilidade de redenção,
legitima a natureza pródiga do herói. A descrição minuciosa de tamanho sofrimento
e dor atua essencialmente na densidade trágica da cena. Atinge-se a catarse na compaixão do leitor pelo herói. Miguel, assim
como o herói trágico, é um personagem ativo, combativo. Todavia, este combate
está presente não só no nível do confronto entre os elementos constituintes da
trama, mas também no plano físico, e se observa através da luta corporal com Maffei.
O confronto
físico entre os dois inimigos ocupa todo o capítulo XVII, encerrando a primeira
parte do romance. Nesta cena, a natureza se torna, especialmente, um elemento importante para a manifestação do trágico de
uma forma contínua e mais intensa que nas seqüências anteriores. Pontuando toda
a narrativa, a natureza atua na elaboração do aspecto sombrio da cena. Ela inicia e conclui o
capítulo, antecipando o teor das ações dramáticas. Como em todo folhetim que se
preze, a natureza personifica sentimentos e a tempestade comparece pontualmente
nos momentos de violência e desastre.
A descrição
do cenário que abre a narrativa -“Entretanto as nuvens negras cresciam no céu”(Azevedo, 2005:194) - nos oferece pista
segura de que a luta entre Maffei e Miguel será violenta. Vejamos: “Em pouco o
céu se convertera em trevas. O mar, cada vez mais encarapinhado, quebrava-se de
encontro à rocha, salpicando-a de cuspiduras espumosas e grossas, como as de um
ébrio” (Azevedo, 2005:194). Ao final da luta, que culmina com a queda de Miguel
do alto do penhasco, a natureza mais uma vez entra em ação, fechando a cena
trágica: “A tempestade, que se prepara ameaçadora, desabou encerrando o
espetáculo; e o mar, contente de sua presa gargalhou com seu rir de espumas.
Começou a chover
copiosamente”
(Azevedo, 2005:195).
O conjunto
lexical empregado durante todo o capítulo se insere no campo semântico do
terror (“vulto”, “fera”, “cólera”, “monstro”, “boca espumosa”, “nuvem negra”, “tigre”,
“grito agudo”, “velho mau”...), e a
própria imagem dos dois inimigos abalroando-se é comparada a um “monstro
marinho fora d’água” (Azevedo, 2005:194), ou, ainda, “lembrava aquilo uma besta
informe nas agonias da morte: os dois formavam uma fera” (Azevedo, 2005:194). É pertinente ressaltar
que, alguns capítulos antes, todo o penhasco havia sido minuciosamente descrito
como um cenário aterrorizante e ameaçador: “A rocha ficava a pique sobre o mar,
um precipício medonho!”(Azevedo, 2005:184). Se analisarmos o léxico empregado na descrição do precipício
(“mugir dos ventos”, “rugido colérico”, “supremo”,
“tempestades”, “abismos”, “solidão”...), constatamos que a atmosfera de horror e
medo da cena foi pouco a pouco construída.
Não há
dúvida, conforme procuramos demonstrar, de que a natureza, ao funcionar na
elaboração do cenário sombrio, contribui conseqüentemente para a tensão trágica
ao longo de toda a seqüência narrativa. Da mesma forma, o capítulo anterior, ao
confirmar o caráter do herói, sua integridade moral, acentua o tom dramático da
cena. Miguel, o honrado herói, que não
aceita dinheiro de Maffei para se afastar de seu grande amor, mais uma vez nos
desperta compaixão ao tombar no mar e supostamente morrer, depois de atroz e
violento combate.
O elemento
de terror que podemos identificar nesta cena, contribuindo para a elaboração de
um cenário sombrio, perpassa todo o romance, constituindo-se como uma das suas
fundamentais características. Em diversos momentos, torna-se expressiva a
atração da narrativa pelo nebuloso, pelo gótico. O jovem casal, acompanhado por
Ângela, por exemplo, tinha como hábito, ao longo da noite, ler contos
fantásticos: “Terminada a leitura, conversavam
os três sobre o enredo e o caráter dos personagens, que figuravam no romance,
cujo desfecho Ângela com muito empenho profetizava.” (Azevedo, 2005:174-175).
Da mesma forma, a figura de Sombra da Noite, personagem aterrorizante,
expressão simbólica do terror, corrobora o gosto pelo horror. Há ainda o falso
envenenamento de Rosalina, a vingança de Miguel e a maldição da mansão do
pescador em Nápoles, erguida sobre as
ruínas de um antigo convento de frades. A tradição maldita do lugar antecipa a tragédia
que ali iria se passar:
Neste chão [...] há sangue mau de frades.
[...] aos sábados, à meia-noite, os diabos dos frades levantavam-se das
sepulturas e iam, rezando, rezando ... agarrar-se à cruz, e cada um a puxa para
o seu lado por penitenciar os seus pecados. Há uma força que a prende a este
chão amaldiçoado (Azevedo,
2005:242).
Em
conformidade com o que previamente salientamos, sobre o papel da natureza na narrativa,
ela contribui igualmente para a formação de uma atmosfera de terror e atua de forma
direta no fenômeno trágico.
Os
pesadelos de Maffei sendo torturado por Miguel -“era Miguel que lhe aparecia formidável,
saindo do mar, cheio de sangue, de limo e de cólera, a exprobrá-lo das suas torpezas,
a cuspir-lhe na cara e a espancá-lo, como se espancasse um cão” (Azevedo, 2005:202)
-, além de se constituírem como mais um traço da atmosfera de terror, refletem toda
a culpa do pescador: “durante o sono temia-o covardemente, e deixava-se bater
por ele. Confessando as próprias culpas e reconhecendo a razão da parte do
adversário” (Azevedo, 2005: 202). O sonho é também uma espécie de antevisão dos
acontecimentos da narrativa.
Miguel mata
Maffei como uma fera que captura uma desejada presa. Também nesta seqüência, de
forte carga dramática, a substância trágica exala do encadeamento narrativo. Ao contrário do que ocorre no primeiro
confronto entre os inimigos, Maffei é agora a vítima e treme de medo, ao passo
que o músico é o grande vencedor, o predador saciado. Sua fria vingança é gloriosa, uma vez que a
morte do inimigo provém de suas mãos, neste episódio transmutadas em afiadas
garras. Certo do fim do inimigo, num gesto essencialmente vingativo, Miguel o
humilha, escarrando-lhe no rosto e empurrando-lhe o corpo moribundo com o
pé.
O fato de o
jovem artista cometer horrendo crime por acreditar que está se livrando do
único empecilho a sua felicidade - “És o único obstáculo de minha ventura! És a
minha asa negra o meu pesadelo! A minha desgraça!, o meu
ódio! O meu crime!” (Azevedo, 2005:252) -, sem nem sequer imaginar que é
levianamente ludibriado por seu grande amor,
contribui
imensamente para o contexto trágico da cena.
A partir da
descrição do medo de Maffei e do ataque de Miguel à vítima, observamos
claramente como os elementos de referência trágica se encontram disseminados ao
longo do discurso narrativo. Nas seqüências em destaque encontramos respectivamente: ironia, violência, risco
vital e morte.
[...] o
sorrir cadavérico de Miguel derramava-se como um filtro de ironias pelos
membros lassos do velho e o fazia estremecer; era um sorrir trágico de
caveira a fitá-lo com os dentes ameaçadores e ferozes. Miguel [...] rápido
abarcara-lhe o pescoço, encravando-lhe pelas carnes as unhas doidas e
assanhadas.
E o moço não desgarrava da vítima a unha envenenada
pela cólera velha e sedenta de vingança,
continuava a asfixiá-la. Como uma lagarta no fogo o velho
torcia-se, esforçando-se por gritar e
erguer-se.
Miguel, no fim de algum tempo, desgarrou
saciado a presa e o cadáver do antigo
pescador caiu-lhe pesado e retorcido aos pés, gosmando pelas ventas e por entre
os dentes um muco grosso e esbranquiçado (Azevedo, 2005: 252; grifo nosso).
É na cena
final do romance que o trágico revela toda a sua intensidade. Toda a narrativa
contribui para a emergência do trágico nesta cena que sela o último encontro
entre Rosalina e Miguel. Guiado por um estúpido e indelével amor, o artista vai
ao encontro da amada, que o engana dizendo estar pobre e doente. Buscando
livrar-se daquela inconveniente presença, a jovem ainda declara que ingeriu
veneno e simula um desmaio. A ingenuidade de Miguel, que, sem perceber que é
ludibriado, oferece apoio incondicional
à amada, acentua o caráter trágico da cena. Totalmente envolvido pela atuação
teatral de Rosalina, que se propõe a
interpretar como que uma paródia de Shakespeare, o herói morre de tristeza por
acreditar que a amada está morta. As garras da Moira
(destino cego: punição) fecham-se sobre Rosalina, que tem sua perfídia punida:
Então uma lágrima cristalina e santa,
desprendendo-se do coração, rolou pura pelas faces da mulher. Chorou pela
primeira vez!
Aquela lágrima valia o poema inteiro da sua
existência! Era o transunto do seu arrependimento! Era o perdão dos seus
crimes! Chorou! Chorou uma lágrima de mulher, e por isso que vinha de Deus!
Rosalina amou pela primeira vez – aquele
cadáver
(Azevedo,2005:260).
É
tragicamente a mulher a quem tanto amou a única responsável pela sua morte. Miguel morre por amor, e, dialeticamente, só é
amado por estar morto. Por pura ironia, só a morte foi capaz de sensibilizar o
coração de Rosalina e despertar o seu amor por Miguel. Como podemos constatar na última frase do
romance, a morte, ao contrário, não caracteriza aqui o fim do amor, mas o seu
nascimento. A dinâmica dialética da cena promove o trágico, caracterizando a
cena autenticamente trágica do romance.
Motivado
pela obrigação de agradar ao público leitor, composto na sua maioria por mulheres, Aluísio Azevedo redime Rosalina nas
últimas linhas do romance. Ao atribuir à lágrima que escorre dos olhos da jovem
os adjetivos “cristalina” e “santa”, o autor busca enfatizar toda a sinceridade
do arrependimento da personagem. Ao ver Miguel morto, ela chora, arrependida,
em reconhecimento de sua culpa.
O
mapeamento das ações e a análise individual das seis cenas de maior conteúdo dramático,
por nós destacadas, nos permite constatar que, em Uma lágrima de mulher,
o trágico nem de longe apresenta a mesma complexidade e profundidade que identificamos na tragédia ática. A narrativa
simplória, dotada de exagerados caracteres românticos, adequada ao público
leitor, não comporta preocupações, questionamentos filosóficos sobre a vida e
as veleidades do pensamento crítico. Os personagens, por exemplo, de traços maniqueístas,
estão distantes da busca pelo gnôthi sauton (conhece-te a ti mesmo),
comuns nas tragédias de Ésquilo. Não há, dessa forma, a possibilidade de
igualar a matéria trágica destas produções literárias tão díspares. Em Uma lágrima
de mulher não tratamos do trágico enquanto categoria estética ou princípio
filosófico, mas sim de uma simples rasura (Lourenço, 2001:197), que neste caso se
confunde com o melodrama, resumindo-se tão-somente no sofrimento.
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Fonte:
Patrícia Alves Carvalho: “Um certo Aluísio Azevedo além ou aquém do naturalismo”. (Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Brasileira. Orientador: Prof. Dr. Roberto Acízelo Quelha de Souza). Rio de Janeiro, 2007.
Fonte:
Patrícia Alves Carvalho: “Um certo Aluísio Azevedo além ou aquém do naturalismo”. (Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração: Literatura Brasileira. Orientador: Prof. Dr. Roberto Acízelo Quelha de Souza). Rio de Janeiro, 2007.
Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.
As notas e referências bibliográficas de que faz menção o autor estão devidamente catalogadas na citada obra.
O texto postado é apenas um dos muitos tópicos abordados no referido trabalho.
Para uma compreensão mais ampla do tema, recomendamos a leitura da tese em sua totalidade.
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