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Aluísio de Azevedo e o Japão: uma apreciação crítica
Por: Renato Ortiz
Creio que O Japão seja
um dos livros menos conhecidos de Aluísio de Azevedo. Eu mesmo só fui
encontrá-lo alguns anos atrás quando fazia minhas pesquisas sobre a mundialização
da cultura. Consultando uma base de dados francesa deparei-me com uma referência
sobre a tese de doutoramento de Luiz Dantas, defendida em Aix-en-Provence em
1980. Há certamente vário motivos que contribuíram para que texto de Azevedo permanecesse na sombra. Os
manuscritos jaziam há anos na Academia Brasileira de Letras à espera de que
alguém que por eles se interessassem. O livro acabou sendo publicado em 1984,
numa edição patrocinada pela Fundação Japão (Dantas, 1984). Retomo este objeto
“antigo” na tentativa de entender como um intelectual brasileiro do século
passado se abre para o compreensão e 1899 na função de vice-cônsul em Yokohama.
Ele conheceu o país em plena transformação, pois trinta anos haviam se passado
desde a Revolução Meiji.
O que lhe seduz dentro deste processo profundo de mudanças? O que
lhe desgosta? Escritor realista, ele quer escrever um romance “verdadeiro”,
pretende penetrar o “coração japonês”, desvendar seus segredos recônditos. Ele possuía,
é claro, uma experiência acumulada pois
havia redigido várias obras sobre a “alma brasileira”, sua
especificidade mestiça. Não seria a viagem uma ocasião de alargar seu
horizonte? Captar a singularidade nipônica, exprimi-la na sua autenticidade,
compreendê-la com olhos descomprometidos? Esse foi seu objetivo.
A primeira impressão que se tem de O Japão é um tanto
negativa. O “romance”, montado em cinco capítulos, é uma visão panorâmica da
histó- ria japonesa, estendendo-se do período mitológico às vésperas da
Revolução Meiji. O autor tropeça, no entanto, num conjunto de erros. Como se o
livro tivesse sido escrito com uma certa desatenção. Cito duas passagens: “[Yoritomo
– no século XII] assume o posto de
comandante em chefe das armas com o título de Bakufu ou Shogun”; “O Japão havia
sido descoberto, acidentalmente, pelos portugueses em 1542; São Francisco
Xavier, acompanhado de frades agostinianos, dominicanos e franciscanos, tentara
desembarcar em 1549 no porto de Kagoshima”. Na primeira citação confunde-se bakufu,
o governo militar, com um título, o de xogum; na segunda, outra imprecisão: São
Francisco Xavier não viajou em companhia dos prelados das ordens rivais, ele
veio apenas com os acólitos jesuítas.
Pode-se considerar essas imprecisões como pecados veniais, porém, outras
passagens são mais comprometedoras. Por exemplo, o relato da chega- da dos
americanos, em meados do século XIX, forçando o Japão a se abrir para o
comércio exterior. A presença do Comodoro Perry nas proximidades da costa
japonesa é um momento de tensão – a qualquer instante um incidente armado
poderia explodir. Como Aluísio de Azevedo retrata este acontecimento? “A
imponente esquadra bordejou orgulhosa todo o arquipélago, e foi fundear a leste
em frente à barra de Yokohama... Passam-se dias. Os americanos já não pedem,
exigem, sob pena de começar o bombardeio, a reposta do memorândum que, em nome
do governo da República, enviaram por um oficial de patente superior à ‘Sua
Majestade o Shogum do Japão’. Marcam afinal um prazo de espera, e no dia
precisamente em que terminava esse prazo fatal, Yeçada [o imperador] é
encontrado morto, estendido de bruços sobre os degraus do seu trono shogunal...
Surge então à ribalta da história contemporânea do Japão a já anunciada figura
de Ii Kammon no Kami, príncipe de Hikone... Ora, o sucessor de Yeçada, como já
disse, era uma criança de doze anos, e o príncipe de Hikone trata logo de
assumir a regência do shogunato... sem se preocupar absolutamente com a opinião
do Micado, nem com a da nobreza, e ainda menos com a do povo, recebe em
audiência privada o próprio Comodoro Perry, que o toma pelo verdadeiro
imperador do Japão e firma com ele um tratado, não provisório como queria o
outro, mas decisivo e cedendo mais do que pretendia o americano, pois além de
Chimoda em Izo e Hakodate em Yezo, lhe abriu mão também do porto de Nagasaki ao
oeste de Kiuciu”.
Infelizmente a descrição apresentada é inteiramente infundada,
sendo fruto de várias confusões. Quando os americanos aportam no Japão (1854),
Ii Kammon – uma espécie de vilão para a historiografia oficial japonesa (foi assassinado
alguns anos mais tarde por agentes da corrente nativista) – não era ainda
regente, e não poderia, pois, ter participado das negociações entre o bakufu
e o representante dos Estados Unidos. Ele só assumiu o posto de tairô em
1858, após a morte de Yeçada. Neste
momento já não se trata mais de negociar com o Comodoro Perry; vários tratados
comerciais já tinham sido firmados (com a Inglaterra e a França) e a abertura
oficial dos portos era uma questão de pouco tempo (1859). Outra inconsistência
do relato: Yeçada faleceu em 1858 e não em 1854. Portanto, a agonia do
imperador diante da iminência dramática de uma situação de guerra, e a traição
de Ii Kammon, ao assinar um tratado sem o consentimento da corte são eventos
fictícios. Para se perceber essas falhas não é necessário ao leitor ser versado
em história. Os comentários e as notas de Luiz Dantas são conscienciosos e
detalhados, eles nos esclarecem sobre as imprecisões do autor – troca de nomes,
confusão de datas, informações insuficientes, acontecimentos fictícios etc.
Fica assim um certo dissabor. A recorrência das incorreções não enfraquece a
intenção de se escrever um texto “verdadeiro”, “realista”?
Tomo ainda uma outra citação. Descrevendo a mitologia xintoísta, Aluísio
de Azevedo afirma: “O espelho de Amateras [deusa do sol] transmi- tido
carinhosamente a seus filhos, representa o símbolo da religião shintoísta, à
qual não pode o Micado renegar sem com ela renegar também a qualidade divina de
sua própria essência. O shintoísmo é pois no Japão ainda hoje a religião do
Estado [grifo meu]”. Consultando as notas do comentarista lemos: “Essa
afirmação só é aceitável no interior de uma época histórica precisa. Durante o
período Meiji, com efeito, e além dele, até o fim da Segunda Guerra Mundial, o ‘shintô’
representou um papel oficial de religião de Estado”. Outro equívoco do autor?
Penso que não, e neste caso, eu diria, passamos do terreno da imprecisão para o
da versão. É claro que a afirmação “o xintoísmo é ainda hoje uma religião de
Estado” é historicamente incorreta. Mas há razões para que Aluísio de Azevedo
considere sua validade. O xintoísmo sempre desfrutou no Japão de uma posição
ambígua. A rigor, o próprio termo não existia, sendo cunhado tardiamente para
dar conta da pré-história japonesa (época anterior a formação do Estado Yamato)1.
O nome foi dado ao agregado de cultos mágico-religiosos partilhado pelas
comunidades tribais que habitavam o Japão. Na verdade, durante um longo lapso
de tempo o xintoísmo é uma prática religiosa secundária. Na época aristocrática
(séculos VI ao XII) o budismo, trazido da China juntamente com a escrita,
torna-se definitivamente a religião da corte. No período Kamakura (século XII ao XIV), ele
ganha em legitimidade ao se expandir, sob formas diversas, entre os samurais (zenbudismo),
e as classes populares (como religião de salvação) (cf. Kazuo, 1990). O
xintoísmo permanece ainda um conjunto heteróclito de crenças periféricas diante
do prestígio do neoconfucianismo Tokugawa (1600-1868). Herdeiro do mundo mágico
rural, em contraposição à cultura letrada budista e confucionista, ele não
produziu escritos nem possuía um clero orgânico e organizado. É apenas no
século XIII, após as invasões dos mongóis, que surgem os primeiros textos
religiosos. São na verdade falsificações que se pretendem passar por escritos “clássicos”,
testemunhos de épocas imemoriais (cf. Bary, 1958). Esses livros, tomados como
verdadeiros, terão no século XVII uma importância crucial junto à escola do “Aprendizado
Nacional”. Eles servem de base para a explicitação de toda uma “teoria política”
que rejeita a influência estrangeira (chinesa) em favor de uma concepção “autenticamente”
nacional. A escola do “Aprendizado Nacional” elabora ainda uma interpretação
intelectual consistente, vinculando orgânicamente o xintoísmo à figura do imperador.
Contrapondo-o à autoridade do xogum, ela o venera como símbolo da coesão
social. Essa ideologia nativista será reativada durante a crise do xogunato no
século XIX, e, em 1870, o governo Meiji proclama o xintoísmo religião de
Estado. A nova autoridade, moderna e industrializante, encontra assim sua
legitimação no pretérito. O ícone do imperador, descendente da divindade
Amateras, torna-se o princípio unificador da nação. Por isso Meiji é visto,
pelos historiadores tradicionais, como uma restauração e não como uma revolução. Tudo se passa como se o poder imperial, usurpado
pela liderança militar do bakufu, emergisse à tona séculos depois.
Íntegro, imaculado, intacto.
Aluísio de Azevedo não se equivoca. Ele partilha uma ilusão coletiva
(elaborada minuciosamente pelo Estado moderno e ensinada piedosamente aos
adultos e as crianças – a escola primária tem um papel fundamental no processo
de inculcação desta ideologia). É isso que nos permite entender seu fascínio
pela figura do imperador. Logo no início do livro, após introduzir o mito de
Amateras, ele nos apresenta o fundamento do poder imperial: “Assim, o atual
imperador, apesar de sua constituição parlamentar, apesar de seu prosaico
uniforme de general de divisão, é nada menos do que descendente direto da
formosa deusa do sol e tem com certeza na augusta fibrina centelhas das luzes
cambiantes do ilustre diadema seu antepassado, sacrossanta pro- cedência donde
lhe deriva indiscutível supremacia sobre todos os seus compatriotas terrestres
e logo o direito absoluto de ser obedecido... e adorado como divindade que é e
como foram todos seus consubstanciais antepassados”. Não há nessas linhas
nenhuma ironia. Aceita-se a versão mitológica como razoável. É provável que,
para o autor, esse tipo de explicação possuísse uma força de persuasão
equivalente a de outras interpretações que conhecia – como a de Sílvio Romero
sobre o “atraso brasileiro” e os ventos alíseos, ou de Nina Rodrigues e a
subalternidade da raça negra (cf. Romero, 1960; Rodrigues, 1939). As
justificativas forjadas pelos intelectuais brasileiros desta época não eram,
como as transmitidas pelo Kojiki, propriamente mitológicas (no sentido estritamente
antropológico), mas suas bases especulativas, o clima e a raça, eram tão
implausíveis como os espíritos dos kami. No fundo, todo esse exercício discursivo,
de brasileiros e de japoneses, possuía uma finalidade comum: dar conta, de
maneira convincente, isto é, ideológica, da questão nacional. Aluísio de
Azevedo preza a figura imperial porque ela reforça a totalidade nacional: sua
eficácia simbólica, eu diria em termos durkheimianos, gera uma solidariedade
mecânica entre os membros de um povo fragmentado pela ameaça estrangeira.
Yeçada ganha então uma dimensão desproporcional. Basta reproduzir seu diálogo
com o xogum no momento em que a exigência da abertura dos portos se impõe:
– É preciso varrê-los! exclamou sinteticamente o Monarca.
– O melhor, insistiu o outro, seria aceitar uma conferência com
Perry....
– Isso é um paliativo que a ninguém aproveita!
– Mas que ganha tempo, durante o qual nos prepararíamos para a
resistência e para a vitória neste momento implausíveis.
– Não engoliriam semelhante isca!
– Os ocidentais não conhecem absolutamente o mecanismo político do
Japão... nem sequer sabem ao certo qual é o verdadeiro chefe de Estado; seria
fácil por conseguinte engodá-los durante muito tempo.
– Mas cedendo sempre!
– Cedendo sombras de concessões... Que pode valer um simulacro de
tratado, sem a assinatura do Imperador.
– Um tratado? Nunca! É preciso varrê-los! Se o shogun, que é o
Comandante das Forças, desobedecendo as minhas ordens, não der quanto antes providências
para repelir os bárbaros, eu próprio chamarei às armas os príncipes japoneses e
irei em pessoa comandá-los.
Há algo de melodramático nesta conversa imaginária. Mas não é isso
que importa. A assinatura dos tratados desiguais foi de fato um elemento decisivo
no enfraquecimento político do xogunato. Entre 1840-1868 o país vive uma crise
constante, suas fronteiras sendo ameaçadas pela presença estrangeira. Os russos
se apoderam das ilhas Sakalina, próximas de Hokkaido, ao norte de Honshu e
Shikoku, os ingleses derrotam os chineses na guerra do ópio (1842-1843), e os
americanos, com a conquista do oeste, querem abrir uma rota marítima na direção
do Pacífico (cf. Bolitho, 1989). A chegada do Comodoro Perry cristaliza esse
conjunto de tensões. Entretanto, em nenhum momento o imperador é parte ativa
deste confronto. Seu papel político é inexistente. O governo Tokugawa estava
montado numa estrutura que excluía a intervenção da corte (cf. Totman, 1988). A
leitura de Aluísio de Azevedo sugere a existência de um monarca que faz, diz,
comanda. Ele admoesta o xogum, exige a retirada dos “bárbaros”, se arvora até
mesmo em comandante dos exércitos feudais. O entusiasmo é tanto que se chega a
imaginá-lo como chefe de uma corrente de opinião. “Foi desse modo que se
formou, para logo desenvolver maravilhosamente, o partido popular do Imperador,
coisa que até aí nunca tinha existido no movimento político”. E em outra
passagem: “A nação dividiu-se em dois partidos; um pequeno e tímido, outro
enorme e forte; o dos curiosos, dos comodistas ou medrosos, que eram pela
admissão dos estrangeiros, e o dos nativistas radicais, que clamavam
energicamente a favor da repulsão pelas armas. Este último partido compreendia
a nação quase inteira”.
O ardor nacionalista faz com que se traduza os acontecimentos de maneira
oblíqua. Na verdade, o movimento nativista nunca assumiu um caráter popular. A
tradição kokugaku, elaborada pela escola do “Aprendizado Nacional” nos
séculos anteriores, galvaniza apenas alguns grupos de samurais, geralmente
provenientes de estratos sociais mais baixos. Ao afirmar a supremacia do
imperador diante do xogum, eles não querem conspirar contra seus senhores, mas
apenas corrigir uma situação política que consideram insustentável. As lutas
sociais no Japão se inserem dentro do quadro rígido de uma sociedade
estamental. A Revolução Meiji é o resultado da mobilização de parte da elite
japonesa e não das classes populares, ou de um conjunto de pessoas socialmente
desclassificadas. A rigor, a separação entre camponeses e samurais impede
qualquer comunicação mais profunda entre eles. As revoltas populares desta
época nada tem a ver com a questão nacional. Trata-se de movimentos contra a
deterioração da vida, principalmente durante os anos 30 e 40, quando o Japão
passa por um período de colheitas difíceis, e a fome se alastra por toda a
ilha. A crise política se circunscreve ao universo das elites (cf. Jansen,
1989b). Dentro deste contexto o símbolo do imperador, mas não a sua projeção
real, tem um papel relevante. Alguns senhores feudais (das regiões de Satsuma e
Choshu) se aproximam da corte e, ao ganhar força, promovem uma guerra civil
contra o xogunato. A casa imperial surge assim como base articuladora da luta,
mas comandada na prática por grupos insatisfeitos com a família Tokugawa. A
nação não se encontra dividida entre “dois partidos” como idealiza Aluísio de
Azevedo. O “povo” é excluído deste processo, e a corte não possuía de fato nem
exército, nem comando efetivo, embora do ponto de vista ideológico a figura do
imperador seja da maior importância. Ela legitima a revolta dando-lhe forma e
sentido.
Aluísio de Azevedo participa, portanto, de uma visão elaborada pela
historiografia oficial e pela ideologia do sistema imperial. Sua perspectiva
associa nação e tradição. Isso não se faz por acaso. Sua estadia no Japão coincide
exatamente com o momento em que esta ideologia, embora calcada em premissas
anteriores, adquire um grau de coerência e de credibilidade pública [vários
autores consideram que isso ocorre em torno de 1890] (cf. Gluck, 1985). Até
então, após 1868, tinham sido feitas várias tentativas para se reformar o
aparato produtivo e administrativo estatal e o Japão conheceu um período no
qual imperou a voga das idéias ocidentais (é o caso do ideário liberal e das
reformas educacionais de inspiração franco-republicanas). No entanto, no final
dos anos 80, ocorre um movimento inverso: a japonização (cf. Nogai, 1971). A
fase de experimentos se encerra e a afirmação nacional se faz em torno da
unidade do imperador e da valorização da tradição. Os intelectuais japoneses
fazem então uma releitura de sua história, interpretada agora segundo as
conveniências dos problemas que enfrentam. Neste contexto, já não é mais o tema
dos tratados desiguais que interessa, mas o choque das civilizações. A temática
modernidade x tradição emerge com toda força. Vamos encontrá-la também em
Aluísio de Azevedo. Quando se compara, por exemplo, O Japão a um outro
texto seu, Japonesas e norte-americanas (1980). Luiz Dantas, na
apresentação do livro, aponta justamente para esse aspecto preocupado com um
tipo de leitura nacionalista. Ele adverte o leitor: “Japonesas e norte-americanas
é uma apologia da mulher oriental, enquanto exemplo de submissão e de virtudes
domésticas tradicionais, em oposição à mulher americana, liberada mas já
contaminada pelos mesmos vícios que afetam a sociedade masculina. Ora, a
argumentação de Aluísio de Azevedo sobre esse debate é vizinha da que utiliza
quando discute o problema da modernização do Japão, em contato com a civilização
Ocidental (grosso modo, o assunto dos capítulos 3, 4 e 5). Aluísio de Azevedo é
um ferrenho defensor do isolacionismo japonês e se deixa voluntariamente
convencer pelos argumentos do nacionalismo exaltado” (Dantas, 1984, p. 17). A
aproximação proposta é de fato pertinente. Há um paralelismo entre o
tradicionalismo moral e a proposta nacionalista. Cito o autor: “Para a
norte-americana, o adultério é uma pândega despida de atavios românticos, é nada mais que um
prolongamento dos prazeres da mesa e da copa... E tudo isso por que? Tudo isso
só porque a norte-americana tem a pretensão de fazer-se igual ao homem e, principiando
a copiar-lhe a liberdade do pensamento, acabou por macaquear-lhe também a
liberdade dos atos... Pois senhores, com a mulher japonesa, enquanto viver está
fechada no anel de ferro da restrita moral em que até hoje viveu... bem longe
de querer ser homem, não lhe discute sequer os direitos de superioridade sobre
ela, conservando-se perfeitamente satisfeita e feliz no círculo feminil e
passivo que lhe traçou a natureza” (Azevedo, 1980, p. 97). Os argumentos falam
por si mesmo.A passagem revela uma posição misógina e conservadora. Interessa
porém sublinhar que este tipo de argumentação é cada vez mais freqüente entre
os intelectuais japoneses. Na época em que Aluísio de Azevedo escreve, o país
passa por um processo de modernização que não atinge ainda o âmago da vida
cultural. A entrada no século XX radicaliza este movimento, a cultura “ocidental”
chocando-se diretamente com os modos tradicionais. A “mulher oriental” é desta
forma vista como núcleo de preservação dos costumes ancestrais. Por isso, um
escritor como Mishima, escrevendo após a Ocupação (1945-1952), considera que o
homem japonês, diante da influência da democracia americana, estaria se “feminizando”.
Sua releitura do Hagakure (livro do samurai – cuja versão é do século
XVIII) procura no passado o alimento espiritual para a superação da crise da
modernidade (cf. Mishima, 1987). A ética samurai, masculina e tradicional, funcionaria
assim como antídoto à contaminação externa, estranha ao “coração” e ao “gênio”
nipônico.
Fica porém uma dúvida. Em que medida O Japão se identifica
ao pensamento ideológico japonês? Ele representa realmente um “nacionalismo exaltado”?
Gostaria de explorar um pouco mais esse aspecto e sugerir, como um autor
brasileiro, ao se aproximar de um mundo diferente do seu, dele se aproxima e se
distancia. Não pretendo negar a dimensão nacionalista de Aluísio de Azevedo.
Ela é explícita. Cabe no entanto entender como ela se articula, e de que forma
se diferencia da trajetória intelectual japonesa. Um primeiro ponto salta aos
olhos: a relação com a China. Na história japonesa existe uma preocupação
constante com este tema incômodo: seria o Japão o prolongamento do império
celestial, ou teria ele uma capacidade de absorção e de reelaboração das
influências introduzidas de fora? A pergunta impõe a necessidade de se entender
o contraste entre o autóctone e o alienígena. Como o período histórico japonês
(isto é, o advento de uma sociedade urbana, de classes, com uma administração
centralizada) se faz sob a égide chinesa, a dúvida em relação à existência de
um “Ser” japonês coloca-se deste o início. Os historiadores procuram demonstrar
que o Japão sempre possuiu uma centralidade própria, sendo portanto capaz de
reorientar os valores e as contribuições vindas de outros povos. Foi desta
forma que os ideogramas chineses se transformaram no silabário kana, e
que o budismo se japonizou junto as classes populares. O mesmo pode ser dito em
relação ao confucionismo. Ele terá no Japão um destino distinto adaptando-se
aos imperativos de uma sociedade guerreira2. Para a corrente nativista esta
discussão não é meramente acadêmica, ela se reveste de um valor estratégico. A
valorização da mitologia shinto é uma tentativa de transpor as crenças mágico-religiosas
para um plano superior ao budismo e ao confucionismo, ambos considerados como
traços alheios as raízes japonesa. A China deixa assim de ser considerada como
um modelo, para se transformar em problema, algo a ser evitado. Durante os
séculos XVII e XVIII, a polêmica sobre a validade dos textos confucionistas e
dos ensinamentos dos sábios chineses tinha uma finalidade clara:
desvalorizá-los diante da supremacia da sabedoria endógena. Por isso, a guerra
sino-japonesa (1894-1895) tem para os japoneses um certo sabor de revanche.
Vencê-la foi uma afirmação inequívoca do destino nacional, uma adeus definitivo
ao prestígio milenar chinês (cf. Kenne, 1971).
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Fonte:
http://www.scielo.br
Fonte:
http://www.scielo.br
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