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Temas stendhalianos em Lima Barreto
Quanto a Recordações do Escrivão Isaías Caminha, o intertexto de Lima Barreto com Le Rouge et le Noir é evidente em diversos momentos da obra. A abertura do romance em si já é uma chave que desvenda o teor das pretensões de Isaías Caminha. Antes do ingresso nos estudos, o pai — que, sem mera coincidência, é um padre — informa ao narrador que este nascera no dia em que Napoleão venceu a batalha de Marengo. As noções de História por parte do menino são limitadas, mas não as sementes lançadas no espírito dele:
“A tristeza, a compreensão e a desigualdade de nível mental do meu meio familiar agiram sobre mim de um modo curioso: deram-me anseios de inteligência. Meu pai, que era fortemente inteligente e ilustrado, em começo, na minha primeira infância, estimulou-me pela obscuridade de suas exortações. Eu não tinha ainda entrado para o colégio, quando uma vez me disse: Você sabe que nasceu quando Napoleão ganhou a Batalha de Marengo? Arregalei os olhos e perguntei: Quem era Napoleão? Um grande homem, um grande general... E não disse mais nada. Encostou-se à cadeira e continuou a ler o livro. Afastei-me sem entrar na ignificação de suas palavras; contudo, a entonação de voz, o gesto e o olhar ficaram-me eternamente. Um grande homem!...
Essa é uma referência discreta (tanto que foi olvidada pela crítica literária barretiana), mas importantíssima por afirmar o general corso como inspiração para a trajetória do narrador- protagonista Isaías Caminha. Não é um dado fortuito, nem deve ser confundido com um desejo simples de arrivismo. Quando o jovem barretiano sonha mais tarde com o momento em que “resgataria o pecado original do meu nascimento, amaciaria o suplício premente, cruciante e onímodo de minha cor”19, suas esperanças não repousam de forma alguma sobre uma esperteza malandra, um casamento arranjado ou uma herança inesperada – os meios tradicionais de arrivismo.
O desejo de ascensão social deste Napoleão tupiniquim firmava-se, como o irmão mais velho Lucien de Rubempré, nas bases do reconhecimento do esforço e gênio pessoais. As portas lhe seriam abertas não com a publicação das Marguerites ou L’Archer de Charles IX, mas com o título de “Doutor” advindo do estudo universitário. A glória futura na Capital do país seria fácil e certa, tanto quanto a aclamação local do poeta Lucien nos salões de Angoulême e “as notas ótimas e os prognósticos da professora Ester” na “cidade de terceira ordem” 20. Ambos, Lucien e Isaías, são obrigados a escolher entre dois caminhos: os sonhos heróicos da juventude ou a mediocridade da vida provinciana, um espaço limitado do qual se deve escapar. A ambição que os consome os faz escolherem a primeira via, mesmo conscientes da luta entre o vício e a virtude que encontrarão. Mas, como escreveria Drummond, no meio do caminho tinha uma pedra: a estrutura social ao redor. Esses candidatos a self made man pertencem a sociedades altamente hierarquizadas, em que as pessoas necessitam da recomendação, do apadrinhamento e do favor de outras pessoas para abrir seus caminhos. Nada, porém, que a fuga com a amante Madame de Bargeton, com parentes em Paris, ou a carta de recomendação para o Deputado Castro não resolvessem.
Os leitores de Lima Barreto, contudo, somos brindados com a angustiosa ironia da trajetória de Isaías Caminha. Pois a companhia da amante é por demais secundária para o poeta provinciano, servindo dentro da trama apenas para levar Lucien da província para Paris; tanto que eles se separam pouco depois de sua chegada. O mesmo não se dá com Isaías Caminha. Apesar dos recursos financeiros limitados para manter o perfil de dândi, tendo de recorrer ao amigo e à irmã em Angoulême, Lucien tem ascendência nobre por parte de mãe e conhece minimamente o código social da elite em que pretende penetrar. Não é este o caso, entretanto, do personagem barretiano, consciente “de que o Rio era uma cidade grande, cheia de riqueza, abarrotada de egoísmo, onde eu não tinha conhecimentos, relações, protetores que me pudessem valer…”
O conhecimento de que um amigo menos ilustre vencera no Rio afasta seus temores de mudar-se para a cidade grande, mas ainda assim ele é obrigado a aceitar os conselhos do tio Valentim para que busque junto ao Coronel Belmiro uma recomendação a fim de que o deputado federal Castro lhe arranje um emprego enquanto faz os estudos universitários. Quando, muitos dias mais tarde, ao perceber que o benfeitor, que dele deveria se encarregar, o desampara, ele fica desolado, passando do ódio à covardia e desta ao pavor: “fiquei amedrontado em face das cordas, das roldanas, dos contrapesos da sociedade; senti-os por toda a parte, graduando os meus atos, anulando os meus esforços; senti-os insuperáveis e destinados a esmagar-me, reduzir-me ao mínimo, a achatar-me completamente...”
Do abandono pelo almejado benfeitor deputado Castro até a entrada na imprensa, tema do próximo capítulo, a história de Isaías Caminha se confundirá com a de Lucien em muitos pontos. Como o personagem balzaquiano, ele também enfrentará a miséria e provações no período de adaptação, tendo de trocar a hospedagem no hotel inicial por um quarto modesto para estudantes, a luta para fazer as refeições diárias, frequentes visitas à biblioteca pública para ler grandes autores, a amizade solidária com homens também instruídos, a entrada no círculo de debates intelectual (o Cénacle , no caso de Lucien; o grupo de positivistas, quanto a Isaías) e a troca de ideias e discussões filosóficas com esses novos amigos. No entanto há, evidentemente, pontos em que Lima Barreto segue caminhos diferentes ao construir a trajetória do seu personagem.
A descrição do protagonista francês envolve traços efeminados, que fazem dele um “Bacchus indien” e lhe dão uma excepcional beleza feminina – especialmente pelo contraste com Davi Séchard sobre quem se “concentrent les traits masculins” da dupla. Balzac realça o perfil andrógino e beleza excepcional do herói que resultará em tripla função narrativa: 1) a relação submissa com que Lucien formará pares – abrindo o romance, um angélico e espiritual com David Séchard e, fechando a história, outro diabólico e carnal com Carlos Herrera26; 2) a aparência sedutora que o fará conquistar Madame de Bargeton e Coralie; 3) o caráter fraco que contrasta a beleza do seu corpo com a corrupção da alma ocorrida tão rapidamente em Paris. No caso de Isaías, o autor e os trópicos lhe dão um “corpo regularmente talhado”, um rosto oval nem “hediondo nem repugnante” e “a tez de cor pronunciadamente azeitonada”, conforme seu própria e lacônica descrição.
Tanto em Illusions Perdues quanto em Recordações do Escrivão Isaías Caminha os protagonistas são construídos pelo contraste entre sua aparência e a dos demais personagens. Entretanto, Lucien marca-se pela androginia, uma aparência indefinida em gênero que se reflete na sua indefinição moral e que lhe abre várias portas na Province e em Paris; enquanto Isaías, pela mulatice, a alteridade excludente que limita suas oportunidades de vencer na Capital. Há uma ilusão inicial, que nasce do contraste entre ele e o pai versus a mãe, dará lugar à desilusão entre ele e o outro e, posteriormente, entre ele e a sociedade como um todo. E o narrador-protagonista barretiano sente tal dado na pele, literalmente, nas primeiras duas primeiras experiência de racismo que enfrenta ao sair do interior: quando tratamentos diferentes em um balcão de estação são conferidos a ele e a um rapaz loiro na hora de exigir um troco não devolvido e quando é suspeito de ser o autor de um furto ocorrido no Hotel Jenikalé, apenas por ser o único hóspede mulato.
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Fonte:
Walter Mendes dos Santos: “O Intertexto Balzaquiano em Recordações do Escrivão Isaías Caminha”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos, Literários e Tradutológicos em Francês do Departamento de Letras Modernas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como requisito para a obtenção do grau de Doutor em Letras - Língua e Literatura Francesa. Orientador: Prof. Dr. Gilberto Pinheiro Passos). São Paulo, 2012.
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