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Os Dois Amores : os caminhos da
virtude
Em Os Dois Amores encontra-se a
representação de situações de convívio social muito semelhantes àquelas de A
Moreninha. São em torno dos bailes, saraus e serões que o enredo se desenvolve. Entretanto, muitas das práticas
sociais apresentadas no primeiro romance de Macedo são, em Os Dois Amores,
julgadas do ponto de vista moral. Em A Moreninha, os jogos de cartas e de prendas são, por exemplo,
apenas um dentre outros elementos que servem à apresentação de situações de
convívio social e das práticas que as caracterizam. A leitura do romance
permite que os jogos sejam compreendidos enquanto uma prática de sociabilidade comum nos saraus, por meio da
qual, senhoras, senhores e jovens divertem- se. Em Os Dois Amores, o
narrador, em lugar de simplesmente descrever, como em A Moreninha, quais
são esses jogos e quem joga o quê, julga essa prática de maneira valorativa:
A casa brilhantemente iluminada,
ostentando riqueza imensa e luxo
desmedido, era, apesar de vasta, pequena para a multidão que a pejava.
O jogo, a dança, a música exerciam ali
seu império em salas diversas, e sôbre vassalos diferentes.
Aquêles a quem a idade ou o estado
afastava do amor, e enfim os poucos de tôdas as idades e estados eram escravos
da mais terrível paixão, prestavam
vassalagem ao jôgo.
Para o narrador de Os Dois Amores,
o jogo não é apenas um passatempo, é uma paixão terrível a que os personagens
entregam-se quando freqüentam os bailes e saraus. Estes, por sua vez, não são
simplesmente o cenário onde velhas faladeiras maçam os jovens preocupados em
requestar as moças. Os bailes são um dos lugares privilegiados de manifestação
das paixões humanas, onde o vício e a virtude vêem-se submetidos a uma única
regra: a dissimulação.
Nos salões, os personagens viciosos
mascaram a inveja, o ciúme e as verdadeiras intenções que os movem, e os virtuosos
mascaram o sofrimento com sorrisos. Tal proposição expressa-se, por exemplo, na
descrição do pensamento do personagem Cândido, ao verificar que no baile de
anos de Celina, Anacleto, avô da jovem, após chorar de tristeza no jardim, dirige-se ao salão para
entreter os convidados com o sorriso nos lábios:
Na alma de Cândido apareceu êste
pensamento; “Quem sabe se alguns dos que
se estão aqui rindo alegremente, não terão ido chorar, às ocultas, como o velho Anacleto?”
Pela primeira vez em sua vida êle
sentiu que, nas sociedades, o rosto se mascara com sorrisos... com olhares... e
com palavras.
A distinção entre ser e parecer,
apenas ensaiada na figura de Augusto, personagem de A Moreninha, recebe um tratamento mais reflexivo nesse
outro romance macediano, sendo associada
à natureza das relações entre os personagens nas mais diversas situações de convívio
social. O romance demonstra que os personagens movem-se num ambiente em que é
necessário dominar um certo conjunto de regras de comportamento que implicam o mascaramento
do ser e de seus verdadeiros sentimentos. “Civilidade” ou “etiqueta” são as denominações
que esse conjunto de regras recebe por parte dos personagens. O romance não
apenas evidencia e tematiza essa ruptura entre ser e parecer, como também volta
suas atenções para os valores que subjazem a esse
“verniz” orientador das condutas sociais. O domínio das regras de etiqueta e
civilidade não é, em si mesmo, condenado pois, se por um lado permite que alguns personagens escondam
seus vícios e armem intrigas as mais diversas, por outro, possibilita que os
virtuosos possam defender-se dessas mesmas intrigas. A descrição do
comportamento dos personagens nesses ambientes passa, também, pela apresentação dos valores morais
subjacentes às condutas normatizadas. Em termos gerais, trata-se de demonstrar
que sob a “civilidade” ou “etiqueta”, podem ser encontrados vícios ou virtudes,
os quais são “encarnados” por diferentes personagens.
Se em A Moreninha eram
enfatizados os comportamentos socialmente adequados e a problemática dos valores que os regiam ocupava
o segundo plano, em Os Dois Amores a ênfase desloca-se justamente para
os valores morais que orientam os comportamentos. A divisão dos personagens
entre virtuosos e não virtuosos é uma das conseqüências desse deslocamento. A
caracterização dos personagens segundo tal divisão pode ser verificada tanto no que diz respeito às descrições que
deles são feitas, quanto à apresentação de suas condutas.
O esquematismo descritivo
pálida-romântica, loira-clássica, moreninha-misteriosa de A Moreninha dá lugar, em Os Dois
Amores, a uma apresentação mais detalhada e valorativa dos personagens. Celina, uma das
protagonistas do romance, é descrita como “uma galante querubim, de quem
Deus modelara o coração, o amor e o rosto.” O personagem, observa o narrador,
fora amamentado com o leite da virtude e embalado no berço da beneficência pois
tivera por mãe uma mulher caridosa e amável e por pai um homem que fez da medicina
um instrumento de socorro aos pobres, mostrando-se pouco apegado aos valores materiais. Abatida logo cedo pela orfandade,
Celina é entregue aos cuidados do avô e de sua tia Mariana. Celina é
caracterizada, também, pela simplicidade no modo de se vestir, pelo
comportamento pudico e pela inocência.
No Passeio Público do Rio de Janeiro,
Celina usa um vestido de escomilha côr-de-rosa, despojando-se de usar qualquer
adereço, brincos ou pulseiras; tendo como único ornato uma fita azul enlaçada na cintura. Em
seu baile de anos, o personagem apresenta o mesmo despojamento na
vestimenta:
Uma simplicidade feiticeira presidira,
como sempre, o seu – toucador. Seus longos cabelos estavam atados com graça
indizível, mas tâo pouco trabalho pedia
aquêle penteado, que adivinhava se para
logo que era o resultado da destreza de suas mãozinhas; agradava ainda mais por
isso. Um pouco para o lado esquerdo de sua cabeça, aparecia um botãozinho de
rosa, como surgindo dentre as tranças de madeixas.
Seu vestido era o único que lhe
convinha.
Uma virgem pede um vestido branco. A
côr branca exprime a alvura de sua alma, a inocência de seu coração. Qualquer
outro vestido assenta mal numa virgem.
Além disto, uns sapatinhos de cetim, e
mais nada.
Decorre do próprio comentário do
narrador que Celina é uma virgem e, como tal, veste- se em conformidade com sua
condição. Desse modo, a “simplicidade” das vestimentas e ornatos do personagem
não está relacionada à situação em que se encontra e tão pouco ao local por ele freqüentado pois, seja no
Passeio Público ou em seu baile de anos, apresenta uma mesma maneira de se
vestir. Nesse contexto, a simplicidade serve à construção do caráter do
personagem, simbolizando tanto a sua condição de virgem inocente, quanto o desapego ao luxo e as valores materiais
Nos manuais de conduta há quase um
consenso sobre a adequação da simplicidade às jovens solteiras. Sobre elas, o moralista
observa em Lições de Boa Moral, Virtude e Urbanidade:
As que só pensão em trajes, e se
occupão todo um dia da ultima moda, raras vezes são mulheres uteis, nem são
dignas do apreço dos homens. Não he
facil que se conservem por muito tempo innocentes,
aquellas que tem um desejo desmedido de agradar; e em tal caso não he injustiça o julgal-as com
severidade. Na escolha dos trajes deve a
mulher consultar a simplicidade; busquem adornos pomposos as que desejão occultar debaixo
d’elles os rigores da natureza.
Apesar de nos livros de conduta
predominar a opinião de que a simplicidade é adequada às jovens solteiras, o
mesmo não se pode dizer a respeito das razões que a justificam. No livro Lições de Boa Moral as mulheres que
têm demasiada preocupação com os trajes e adornos são severamente criticadas e
consideradas indignas da admiração masculina. A simplicidade é, neste caso,
diretamente associada à inocência. Em o Novo Manual do Bom Tom, a justificativa para a “necessidade”
de as mulheres solteiras vestirem-se com simplicidade é bem diversa:
O enfeite de uma donzella será sempre
mais modesto que o de uma casada, porque
o verdadeiro modo de achar marido é parecer inclinar-se a um gosto simples, isto é, ter
aversão ás casimiras e ás ricas peles, e
o mais profundo desprezo ás jóias de preço e aos diamantes ... até que tenha encontrado um bom
marido. Obrando de outra maneira
privão-se de receber ricos enfeites das mãos de seus esposos.
Se, nesta obra, a simplicidade
justifica-se por facilitar um bom casamento, em O trato do mundo na vida ordinaria e nas cerimonias civis
e religiosas a utilidade de vestir-se e adornar-se para encontrar um marido
que proporcione à mulher os luxos e as jóias que deseja é questionada:
Está sabido que a simplicidade assenta
bem nas moças; mas nós só conhecemos uma
simplicidade relativa á qual as exigencias da moda impõe as plumas, o setim - até mesmo os
brilhantes.
Bem pensando em tudo, talvez que
achemos que nossa epoca é mais sensata
que as antepassadas.
As moças, não precisando mais d’um
marido para poder andar com plumas e brilhantes, terão menos propensão para
encarar o casamento como um meio de
poder se vestir a seu gosto.
Por certo esse último preceito, assim
como o anterior, distanciam-se, e muito, do significado que o narrador parece
querer imprimir à simplicidade de Celina. Esse significado aproxima-se mais daquele presente
no Lições de Boa Moral, onde há a associação direta entre simplicidade e
inocência feminina.
Os diálogos entre os personagens
servem, assim como as descrições feitas pelo narrador, para reafirmar o caráter
dos personagens. Há, no romance Os Dois Amores, um diálogo que ilustra
adequadamente esse tipo de procedimento. A inocência e pudor de Celina não são somente descritos pelo narrador,
são, também, postos em ação, numa conversa entre a jovem e sua tia
Mariana:
- Pois bem, Celina, sabes o que é
amar... amar um homem que não é nosso
pai, nem nosso irmão?
A “Bela Órfã” corou até a raiz dos
cabelos, e sua perturbação aumentou-se quando viu que Mariana estava rindo de
vê-la assim.
-Oh! Não te perturbes, não cores
tanto, Lembra-te que estamos sós, e que
somos como duas irmãs que se amam muito.
Responde francamente: amas já alguém?
...
- Não, Mariana.
- Falas verdade, Celina? ...
- Falo verdade, respondeu a moça com
os olhos no chão.
- Mas com dezesseis anos, tão bonita e
tão viva que és, tu já deves ter pensado nesse sentimento de fogo, que mais
cedo ou mais tarde sempre
experimentamos; fazes já idéia do que seja amar um homem?...
-- Não sei...talvez...tenho lido.
Essa conversa entre a tia e a sobrinha
insere-se num contexto em que Mariana vai confessar à Celina que está feliz porque o
homem a quem ama voltara de viagem. Cada fala de Celina é acompanhada de um
gesto ou expressão corporal comentada pelo narrador. Os gestos e o conteúdo do
discurso do personagem vem aferir a veracidade da descrição que dele se fez
anteriormente: o fato de corar e dirigir os olhos ao chão diante das perguntas
da tia fornecem uma maior consistência a sua inocência no terreno das relações
amorosas. Contudo, a inocência de Celina não se manifesta apenas nesse domínio
específico. No que diz respeito às relações sociais, ela é representada pela
ignorância que o personagem demonstra
acerca do fato de a aparência exterior não expressar, necessariamente, o que as
pessoas sentem. Essa inocência fica
evidente quando Celina é questionada sobre quem seria o jovem a quem a tia ama.
Indagada a respeito Celina responde:
- O sr Salustiano.
Mariana fez um movimento de
horror.
- Oh, nunca! Exclamou.
- Como! Pois não é?
- Eu o detesto... eu o aborreço, como
se aborrece um malvado.
- É possível?
- Pobre menina!... Tu ainda não sabes
o que é o mundo. Vês-
me rir para êsse homem, vês como ambos
conversamos e
mutuamente nos festejamos, e como com
outras pessoas, pensas que
o amo e sou por êle amada. Pois bem:
eu detesto êsse homem, e ele sabe que eu o detesto.
Celina não percebe que a forma como a tia
trata Salustiano é orientada pela “civilidade” e pela “etiqueta”, que, por sua vez,
tem um caráter convencional. No episódio acima, a tia revela à sobrinha que seu
comportamento com relação ao jovem é mera aparência, não expressando, de fato, o verdadeiro
sentimento que nutre por ele. O desconhecimento da distinção entre ser e parecer
evidencia a inocência de Celina e a distingue de sua tia Mariana que concebe o mundo a partir de tal
cisão, alicerçando seu comportamento no domínio sobre seus gestos e no ocultamento dos
seus sentimentos aos olhos alheios:
Mariana tinha tôdas as boas e más
qualidades de uma senhora de alta classe. Nobre, altiva, e mesmo vaidosa,
sabia, quando era conveniente
humilhar-se horas inteiras diante daqueles mesmos a quem detestava, para depois
erguer-se orgulhosa. Ela misturava a audácia
com a pusilanimidade, a mais inqualificável imprudência com um sangue frio que
chegava a espantar. Sabia rir-se com os lábios quando chorava com o coração.
Astuciosa, arrancava o segrêdo alheio e
não confiava nunca o seu. Era capaz de rir-se à borda de um abismo, e de vir
chorar numa sala de baile; e finalmente amava com ardor e odiava com extremo.
O semblante de Mariana sempre
impassível, sempre o mesmo, dava a suas palavras uma fôrça imensa de verdade,
não deixando a ninguém ler-lhe no corar do rosto, no movimento dos lábios ou na
expressão do olhar, o que estava passando dentro dela: contudo Mariana tinha poucas vêzes a virtude da
franqueza. Podia enganar, sabia que o podia, e enganava.
Mariana é um personagem construído em
perfeita oposição a Celina. Ao contrário da jovem inocente, ela é caracterizada
pelo seu caráter sedutor, por sua malícia, vaidade e pelo domínio das etiquetas
sociais. Todas essas diferenças de caráter e comportamento sustentam-se sobre
uma aparência física marcada pelo erotismo. Enquanto Celina tem todas as
suas formas mimosas e puras, a tia, em
contrapartida, tem lábios eróticos e os seios pequenos “e palpitantes”. No conjunto, Mariana possui uma aparência
e um comportamento extremamente sedutores:
Alta e graciosa, cada posição que seu
corpo tomava tinha um encanto particular, cada um de seus movimentos acendia um
desejo perigoso; seu olhar era às vêzes um desafio, uma provocação; seu sorrir
quase sempre uma magia poderosa, sua voz uma harmonia que ficava no coração
para se ouvir sempre, ainda mesmo ausente dela: a volptuosidade e o ardor
estavam derramados em tôda essa mulher, que deveria ter sido e era ainda objeto
de cultos perigosos.
O olhar provocador de Mariana é
diametralmente oposto ao de Celina que, não raro, volta-se para o chão,
indicando, nas mais diversas situações, o seu pudor e inocência. A relação
entre o olhar e a inocência feminina pode ser encontrada, também, nos livros de
conduta. Em Lições de boa moral, virtude e urbanidade, por exemplo, a
mãe adverte Luizinha de que:
As vistas annuncião, sem querer, o que
se passa no coração; faze por isso que nas tuas só se veja a expressão da
modéstia, e para que melhor o possas conseguir, sê em verdade modesta: huma
vista atrevida em huma mulher he cousa que repugna com seu sexo. Sobretudo não
busques as dos homens; hum tal costume procede da depravação do coração; e se
por casualidade o praticares, ou por mera advertência, confundir-te-ão com
aquellas cujos costumes estão já estragados.
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Fonte:
Valéria Augusti: “O romance
como guia de conduta: A Moreninha e Os dois amores”. (Dissertação apresentada
ao Programa de Pós-Graduação do
Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de
Campinas, como requisito para obtenção do título de Mestre em Teoria Literária. Orientadora: Profa. Dra.
Márcia Azevedo de Abreu).Campinas, 1998.
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