17/11/2013

Os Dois Amores, de Joaquim Manuel de Macedo

 Joaquim Manuel de Macedo - Os Dois Amores - Iba Mendes
Para baixar este livro gratuitamente em formato PDF, acessar o site  do “Projeto Livro Livre”: 
Os livros estão em ordem alfabética: autor/título (coluna à esquerda) e título/autor (coluna à direita).


---


Os Dois Amores : os caminhos da virtude

Em Os Dois Amores encontra-se a representação de situações de convívio social muito semelhantes àquelas de A Moreninha. São em torno dos bailes, saraus e serões que o enredo  se desenvolve. Entretanto, muitas das práticas sociais apresentadas no primeiro romance de Macedo são, em Os Dois Amores, julgadas do ponto de vista moral. Em A Moreninha, os  jogos de cartas e de prendas são, por exemplo, apenas um dentre outros elementos que servem à apresentação de situações de convívio social e das práticas que as caracterizam. A leitura do romance permite que os jogos sejam compreendidos enquanto uma prática de  sociabilidade comum nos saraus, por meio da qual, senhoras, senhores e jovens divertem- se. Em Os Dois Amores, o narrador, em lugar de simplesmente descrever, como em A Moreninha, quais são esses jogos e quem joga o quê, julga essa prática de maneira valorativa:

A casa brilhantemente iluminada, ostentando riqueza imensa e  luxo desmedido, era, apesar de vasta, pequena para a multidão que a  pejava.
O jogo, a dança, a música exerciam ali seu império em salas diversas, e sôbre vassalos diferentes. 
Aquêles a quem a idade ou o estado afastava do amor, e enfim os poucos de tôdas as idades e estados eram escravos da mais terrível  paixão, prestavam vassalagem ao jôgo.

Para o narrador de Os Dois Amores, o jogo não é apenas um passatempo, é uma paixão terrível a que os personagens entregam-se quando freqüentam os bailes e saraus. Estes, por sua vez, não são simplesmente o cenário onde velhas faladeiras maçam os jovens preocupados em requestar as moças. Os bailes são um dos lugares privilegiados de manifestação das paixões humanas, onde o vício e a virtude vêem-se submetidos a uma única regra: a dissimulação. 

Nos salões, os personagens viciosos mascaram a inveja, o ciúme e as verdadeiras  intenções que os movem, e os virtuosos mascaram o sofrimento com sorrisos. Tal proposição expressa-se, por exemplo, na descrição do pensamento do personagem Cândido, ao verificar que no baile de anos de Celina, Anacleto, avô da jovem, após chorar  de tristeza no jardim, dirige-se ao salão para entreter os convidados com o sorriso nos lábios: 

Na alma de Cândido apareceu êste pensamento; “Quem sabe  se alguns dos que se estão aqui rindo alegremente, não terão ido  chorar, às ocultas, como o velho Anacleto?” 
Pela primeira vez em sua vida êle sentiu que, nas sociedades, o rosto se mascara com sorrisos... com olhares... e com palavras.

A distinção entre ser e parecer, apenas ensaiada na figura de Augusto, personagem de A Moreninha,  recebe um tratamento mais reflexivo nesse outro romance macediano, sendo  associada à natureza das relações entre os personagens nas mais diversas situações de convívio social. O romance demonstra que os personagens movem-se num ambiente em que é necessário dominar um certo conjunto de regras de comportamento que implicam o mascaramento do ser e de seus verdadeiros sentimentos. “Civilidade” ou “etiqueta” são as denominações que esse conjunto de regras recebe por parte dos personagens. O romance não apenas evidencia e tematiza essa ruptura entre ser e parecer, como também volta  suas  atenções para os valores que subjazem a esse “verniz” orientador das condutas sociais. O domínio das regras de etiqueta e civilidade não é, em si mesmo, condenado pois, se por um  lado permite que alguns personagens escondam seus vícios e armem intrigas as mais diversas, por outro, possibilita que os virtuosos possam defender-se dessas mesmas intrigas. A descrição do comportamento dos personagens nesses ambientes passa, também,  pela apresentação dos valores morais subjacentes às condutas normatizadas. Em termos gerais, trata-se de demonstrar que sob a “civilidade” ou “etiqueta”, podem ser encontrados vícios ou virtudes, os quais são “encarnados” por diferentes personagens.



Se em A Moreninha eram enfatizados os comportamentos socialmente adequados e a  problemática dos valores que os regiam ocupava o segundo plano, em Os Dois Amores a ênfase desloca-se justamente para os valores morais que orientam os comportamentos. A divisão dos personagens entre virtuosos e não virtuosos é uma das conseqüências desse deslocamento. A caracterização dos personagens segundo tal divisão pode ser verificada  tanto no que diz respeito às descrições que deles são feitas, quanto à apresentação de suas condutas. 

O esquematismo descritivo pálida-romântica, loira-clássica, moreninha-misteriosa de  A Moreninha dá lugar, em Os Dois Amores, a uma apresentação mais detalhada e valorativa dos personagens. Celina, uma das protagonistas do romance, é descrita como “uma galante querubim, de quem Deus modelara o coração, o amor e o rosto.” O personagem, observa o narrador, fora amamentado com o leite da virtude e embalado no berço da beneficência pois tivera por mãe uma mulher caridosa e amável e por pai um homem que fez da medicina um instrumento de socorro aos pobres, mostrando-se pouco apegado aos valores  materiais. Abatida logo cedo pela orfandade, Celina é entregue aos cuidados do avô e de sua tia Mariana. Celina é caracterizada, também, pela simplicidade no modo de se vestir, pelo comportamento pudico e pela inocência. 

No Passeio Público do Rio de Janeiro, Celina usa um vestido de escomilha côr-de-rosa, despojando-se de usar qualquer adereço, brincos ou pulseiras; tendo como único ornato  uma fita azul enlaçada na cintura. Em seu baile de anos, o personagem apresenta o mesmo despojamento na vestimenta: 

Uma simplicidade feiticeira presidira, como sempre, o seu – toucador. Seus longos cabelos estavam atados com graça indizível,  mas tâo pouco trabalho pedia aquêle penteado, que adivinhava se  para logo que era o resultado da destreza de suas mãozinhas; agradava ainda mais por isso. Um pouco para o lado esquerdo de sua cabeça, aparecia um botãozinho de rosa, como surgindo dentre as tranças de madeixas. 
Seu vestido era o único que lhe convinha.
Uma virgem pede um vestido branco. A côr branca exprime a alvura de sua alma, a inocência de seu coração. Qualquer outro  vestido assenta mal numa virgem.
Além disto, uns sapatinhos de cetim, e mais nada.

Decorre do próprio comentário do narrador que Celina é uma virgem e, como tal, veste- se em conformidade com sua condição. Desse modo, a “simplicidade” das vestimentas e ornatos do personagem não está relacionada à situação em que se encontra e tão pouco ao  local por ele freqüentado pois, seja no Passeio Público ou em seu baile de anos, apresenta uma mesma maneira de se vestir. Nesse contexto, a simplicidade serve à construção do caráter do personagem, simbolizando tanto a sua condição de virgem inocente, quanto o  desapego ao luxo e as valores materiais

Nos manuais de conduta há quase um consenso sobre a adequação da simplicidade às  jovens solteiras. Sobre elas, o moralista observa em Lições de Boa Moral, Virtude e Urbanidade:   

As que só pensão em trajes, e se occupão todo um dia da ultima moda, raras vezes são mulheres uteis, nem são dignas do  apreço dos homens. Não he facil que se conservem por muito tempo  innocentes, aquellas que tem um desejo desmedido de agradar; e em  tal caso não he injustiça o julgal-as com severidade. Na escolha dos  trajes deve a mulher consultar a simplicidade; busquem adornos  pomposos as que desejão occultar debaixo d’elles os rigores da natureza.

Apesar de nos livros de conduta predominar a opinião de que a simplicidade é adequada às jovens solteiras, o mesmo não se pode dizer a respeito das razões que a justificam. No livro    Lições de Boa Moral as mulheres que têm demasiada preocupação com os trajes e adornos são severamente criticadas e consideradas indignas da admiração masculina. A simplicidade é, neste caso, diretamente associada à inocência. Em o Novo Manual do Bom  Tom, a justificativa para a “necessidade” de as mulheres solteiras vestirem-se com  simplicidade é bem diversa:

O enfeite de uma donzella será sempre mais modesto que o de  uma casada, porque o verdadeiro modo de achar marido é parecer  inclinar-se a um gosto simples, isto é, ter aversão ás casimiras e ás  ricas peles, e o mais profundo desprezo ás jóias de preço e aos  diamantes ... até que tenha encontrado um bom marido. Obrando de  outra maneira privão-se de receber ricos enfeites das mãos de seus  esposos.

Se, nesta obra, a simplicidade justifica-se por facilitar um bom casamento, em O trato do  mundo na vida ordinaria e nas cerimonias civis e religiosas a utilidade de vestir-se e adornar-se para encontrar um marido que proporcione à mulher os luxos e as jóias que deseja é questionada: 

Está sabido que a simplicidade assenta bem nas moças; mas  nós só conhecemos uma simplicidade relativa á qual as exigencias da  moda impõe as plumas, o setim - até mesmo os brilhantes. 
Bem pensando em tudo, talvez que achemos que nossa epoca  é mais sensata que as antepassadas.
As moças, não precisando mais d’um marido para poder andar com plumas e brilhantes, terão menos propensão para encarar o  casamento como um meio de poder se vestir a seu gosto.

Por certo esse último preceito, assim como o anterior, distanciam-se, e muito, do significado que o narrador parece querer imprimir à simplicidade de Celina. Esse  significado aproxima-se mais daquele presente no Lições de Boa Moral, onde há a associação direta entre simplicidade e inocência feminina. 

Os diálogos entre os personagens servem, assim como as descrições feitas pelo narrador, para reafirmar o caráter dos personagens. Há, no romance Os Dois Amores, um diálogo que ilustra adequadamente esse tipo de procedimento. A inocência e pudor de  Celina não são somente descritos pelo narrador, são, também, postos em ação, numa conversa entre a jovem e sua tia Mariana: 

- Pois bem, Celina, sabes o que é amar... amar um homem que  não é nosso pai, nem nosso irmão?
A “Bela Órfã” corou até a raiz dos cabelos, e sua perturbação aumentou-se quando viu que Mariana estava rindo de vê-la assim.
-Oh! Não te perturbes, não cores tanto, Lembra-te que  estamos sós, e que somos como duas irmãs que se amam muito.
Responde francamente: amas já alguém? ...
- Não, Mariana.
- Falas verdade, Celina? ...
- Falo verdade, respondeu a moça com os olhos no chão. 
- Mas com dezesseis anos, tão bonita e tão viva que és, tu já deves ter pensado nesse sentimento de fogo, que mais cedo ou mais  tarde sempre experimentamos; fazes já idéia do que seja amar um homem?... 
-- Não sei...talvez...tenho lido.

Essa conversa entre a tia e a sobrinha insere-se num contexto em que Mariana vai  confessar à Celina que está feliz porque o homem a quem ama voltara de viagem. Cada fala de Celina é acompanhada de um gesto ou expressão corporal comentada pelo narrador. Os gestos e o conteúdo do discurso do personagem vem aferir a veracidade da descrição que dele se fez anteriormente: o fato de corar e dirigir os olhos ao chão diante das perguntas da tia fornecem uma maior consistência a sua inocência no terreno das relações amorosas. Contudo, a inocência de Celina não se manifesta apenas nesse domínio específico. No que diz respeito às relações sociais, ela é representada pela ignorância que o personagem  demonstra acerca do fato de a aparência exterior não expressar, necessariamente, o que as  pessoas sentem. Essa inocência fica evidente quando Celina é questionada sobre quem seria o jovem a quem a tia ama. Indagada a respeito Celina responde:   

- O sr Salustiano. 
Mariana fez um movimento de horror. 
- Oh, nunca! Exclamou. 
- Como! Pois não é?

- Eu o detesto... eu o aborreço, como se aborrece um malvado.
- É possível?
- Pobre menina!... Tu ainda não sabes o que é o mundo. Vês-
me rir para êsse homem, vês como ambos conversamos e
mutuamente nos festejamos, e como com outras pessoas, pensas que
o amo e sou por êle amada. Pois bem: eu detesto êsse homem, e ele sabe que eu o detesto.

Celina não percebe que a forma como a tia trata Salustiano é orientada pela “civilidade” e pela “etiqueta”, que, por sua vez, tem um caráter convencional. No episódio acima, a tia revela à sobrinha que seu comportamento com relação ao jovem é mera aparência, não expressando, de fato, o verdadeiro sentimento que nutre por ele. O desconhecimento da distinção entre ser e parecer evidencia a inocência de Celina e a distingue de sua tia Mariana que concebe o mundo a partir de tal cisão, alicerçando seu comportamento no domínio sobre seus gestos e no ocultamento dos seus sentimentos aos olhos alheios: 

Mariana tinha tôdas as boas e más qualidades de uma senhora de alta classe. Nobre, altiva, e mesmo vaidosa, sabia, quando era  conveniente humilhar-se horas inteiras diante daqueles mesmos a quem detestava, para depois erguer-se orgulhosa. Ela misturava a  audácia com a pusilanimidade, a mais inqualificável imprudência com um sangue frio que chegava a espantar. Sabia rir-se com os lábios quando chorava com o coração. Astuciosa, arrancava o segrêdo  alheio e não confiava nunca o seu. Era capaz de rir-se à borda de um abismo, e de vir chorar numa sala de baile; e finalmente amava com ardor e odiava com extremo.

O semblante de Mariana sempre impassível, sempre o mesmo, dava a suas palavras uma fôrça imensa de verdade, não deixando a ninguém ler-lhe no corar do rosto, no movimento dos lábios ou na expressão do olhar, o que estava passando dentro dela: contudo  Mariana tinha poucas vêzes a virtude da franqueza. Podia enganar, sabia que o podia, e enganava.

Mariana é um personagem construído em perfeita oposição a Celina. Ao contrário da jovem inocente, ela é caracterizada pelo seu caráter sedutor, por sua malícia, vaidade e pelo domínio das etiquetas sociais. Todas essas diferenças de caráter e comportamento sustentam-se sobre uma aparência física marcada pelo erotismo. Enquanto Celina tem todas as suas formas mimosas e puras, a tia, em contrapartida, tem lábios eróticos e os seios pequenos “e palpitantes”.      No conjunto, Mariana possui uma aparência e um comportamento extremamente sedutores: 

Alta e graciosa, cada posição que seu corpo tomava tinha um encanto particular, cada um de seus movimentos acendia um desejo perigoso; seu olhar era às vêzes um desafio, uma provocação; seu sorrir quase sempre uma magia poderosa, sua voz uma harmonia que ficava no coração para se ouvir sempre, ainda mesmo ausente dela: a volptuosidade e o ardor estavam derramados em tôda essa mulher, que deveria ter sido e era ainda objeto de cultos perigosos.

O olhar provocador de Mariana é diametralmente oposto ao de Celina que, não raro, volta-se para o chão, indicando, nas mais diversas situações, o seu pudor e inocência. A relação entre o olhar e a inocência feminina pode ser encontrada, também, nos livros de conduta. Em Lições de boa moral, virtude e urbanidade, por exemplo, a mãe adverte Luizinha de que:

As vistas annuncião, sem querer, o que se passa no coração; faze por isso que nas tuas só se veja a expressão da modéstia, e para que melhor o possas conseguir, sê em verdade modesta: huma vista atrevida em huma mulher he cousa que repugna com seu sexo. Sobretudo não busques as dos homens; hum tal costume procede da depravação do coração; e se por casualidade o praticares, ou por mera advertência, confundir-te-ão com aquellas cujos costumes estão já estragados.


---
Fonte:

Valéria Augusti: “O romance como guia de conduta: A Moreninha e Os dois amores”. (Dissertação apresentada ao Programa de  Pós-Graduação do Instituto de Estudos da Linguagem da   Universidade     Estadual   de Campinas, como requisito para obtenção do  título de Mestre  em Teoria Literária. Orientadora: Profa. Dra. Márcia Azevedo de  Abreu).Campinas, 1998.

Nenhum comentário:

Postar um comentário