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O Teatro de Joaquim
Manuel de Macedo
Tendo passado "sem muita convicção ou força" por
todos os gêneros teatrais disponíveis no momento, Macedo se achava mais à
vontade na comédia, que abarcava outros gêneros, fossem "inspirados no
francês" (O primo da Califórnia), fossem as chamadas "óperas" (O
fantasma branco), a comédia burlesca (A torre em concurso), fosse o drama
realista (Luxo e vaidade), a comédia realista (Cincinato Quebra-Louça) ou o
vaudeville (O macaco do vizinho), em que à semelhança de Martins Pena (Os
ciúmes de um pedestre) descobria-se que a mulher podia enganar também o marido
e não somente o pai, perigo já apontado pelo Otelo shakespeariano no século
XVI. A diferença é que na peça de Pena a mulher realmente se envolve com outro,
que penetra em sua casa durante a ausência do marido, e em O macaco do vizinho
o adultério é apenas uma possibilidade.
Assim vemos que as fronteiras da comédia de Macedo podem
estar entre as de Martins Pena e as comédias de José de Alencar. Mas colocar os
dois primeiros lado a lado, como faço neste artigo, torna clara a diferença
entre ambos. A distância diz também respeito aos círculos que freqüentaram,
segundo a proximidade ou distância do poder político, segundo a vida privada, e
ao empenho em relação ao palco.
Apenas cinco anos mais novo que Martins Pena, nosso autor
sobreviveu a este em 34 anos, tempo que ultrapassa os 33 vividos pelo autor de
Quem casa quer casa. No entanto, à variação e ao desenvolvimento da obra de
Pena em direção à conquista da técnica teatral corresponde o molde mais ou
menos invariável dos textos de Macedo, sejam ficção, crônica ou teatro, o que
permite com freqüência uma forma escorregar para outra: teatralização de
romances (A moreninha), ficção atravessando as crônicas e virando teatro no
final (Romance de uma velha). Não se trata de moldar uma estrutura ficcional
para as crônicas, recurso usado por Martins Pena nos Folhetins, mas de
emparelhar uma forma com a outra, perfeitamente nítidas as duas.
Adiantamos que a chave dessa volubilidade apóia-se
formalmente no que o próprio Macedo chamou de trocadilho, largamente usado por
ele, menos no sentido do jogo interno de palavras (parecidas no som e
diferentes no significado) do que na equivalência entre frases ou sintagmas
diversos, na maioria das vezes arbitrária e referente a coisas incompatíveis.
Analogia talvez fosse o termo mais adequado. Esse tipo de composição acaba por
ajudar o ritmo digressivo do autor. Às vezes são meras transposições, comuns na
retórica do melodrama, o "mundo" e o "abismo", por exemplo,
mas com esse volteio jocoso tudo se torna vagamente intercambiável, pouco
diferenciável, raso. É comum o recurso alongar as frases, tornando o texto meio
frouxo. Um exemplo no Labirinto de 20 de maio de 1860, em que "artigos
jornalísticos" e "governos" são equiparados: "Começar um
artigo não é empresa assim tão fácil; é como o começar o seu governo para
ministros novos [...]".
Em O novo Otelo, a suposta versatilidade teatral, isto é, a
possibilidade de um ator desempenhar vários papéis, é definida em termos de
acumulação de empregos (cena 2):
Antonio — Então eu sou tanta coisa ao mesmo tempo?
Calisto — Não faz mal: está no sistema de acumulações de
empregos.
Em A torre em concurso, a divisão política entre
conservadores e liberais é equiparada à rivalidade entre dois falsos
engenheiros seguidos de seus admiradores. Um deles se veste de vermelho, outro
de amarelo, formando dois partidos rivais mas em tudo coincidentes, o que gera
as alusões políticas e as brincadeiras cênicas de praxe. O tema foi também
admiravelmente desenvolvido por Machado de Assis em Esaú e Jacó, conforme
observa Márcio Jabur Yunes, em seu excelente prefácio à obra de Macedo.
Julgo que a epígrafe introdutória da primeira edição de A
moreninha, pela Garnier, retirada de um poema de Gresset, ilumina toda a
produção literária e teatral de Macedo: "Trop occuper pour corriger/ Je
vous livre mês rêveries/ [...] J' en fais pour me désennuyer". Nada mais
sincero e mais verdadeiro, apesar da pretendida seriedade dos conselhos e
sermões que recheiam a obra, causando desequilíbrio no conjunto. Vejamos um
pequeno trecho de Luxo e vaidade, considerada muitas vezes sua obra-prima:
Anastácio — Aqueles que negam a primazia à virtude, são uns
miseráveis. Já se foi o tempo em que um sandeu valia mais do que um sábio; um
depravado mais do que o homem honesto, quando o homem sábio ou honesto era
filho de um sapateiro, e o acaso dera ao depravado meia dúzia de avós, falsa ou
realmente ilustres. Não temos senão uma nobreza, a nobreza da constituição, que
é a do merecimento e das virtudes. Já não se reconhece [sic] privilégios,
graças a Deus, e as portas das grandezas sociais estão abertas a todos os que
sabem merecê-las: nobre é o estadista que se consagra aos serviço da pátria;
[...] nobres são todos aqueles que ilustram e honram a nação, e nobre é,
principalmente a virtude, a virtude que é a sublime benemérita aos olhos do
Senhor!...
Leonina — Oh! E como há então pessoas que olham com desprezo
para um artista? (Com viveza) O artista não pode também chegar a ser nobre, meu
padrinho?
Temos de convir, saltando as ilusões políticas e convicções
pessoais, além do tópico da nobreza do artista, que o peso dessa fala atravanca
e rompe qualquer equilíbrio possível numa comédia de entrecho convencional:
livrar uma mocinha de um casamento com um velho rico para salvar os pais da
bancarrota. Acrescente-se aqui a qualidade do universo fortemente contrastivo,
entre o vício (esbanjamento, esnobismo social, vida na cidade, dinheiro) e a
virtude (economia que leva à riqueza, ausência de preconceito de classe, vida
na roça, arte).
José Veríssimo apontou a monotonia da obra macediana, sua
ingenuidade parelha a uma sociedade "chã e matuta", a
sentimentalidade que beira a pieguice, a filosofia banal, tudo embrulhado numa
moral de catecismo "para uso vulgar". O crítico também identifica com
acerto a inclinação dramática de Macedo, dirigida a fazer de sua arte um divertimento
para moralizar risonhamente seus contemporâneos. Antonio Candido completa o
perfil da produção longa e prolixa de nosso autor (vinte romances, doze peças
de teatro, um "poema-romance", e mais de dez volumes de variedades),
afirmando que "o bom e simpático Macedo" sempre cedeu ao impulso da
tagarelice "de alguém muito conversador, cheio de casos e novidades".
Sua popularidade junto aos leitores baseava-se na criação de cenários e
personagens familiares, a que se acrescentava a oralidade da língua. Além disso,
as peripécias "e sentimentos enredados e poéticos" garantiam "as
necessidades médias de sonho e aventura".
Yunes acrescenta outras observações às anteriores: numa
época de nacionalismo exacerbado, anos 1860-70, contraditoriamente banhada do
fascínio "ainda forte demais" pelas modas e maneiras européias, o
dramaturgo se vinga, transformando em clowns dois europeus, a serviço de um
brasileiro (os criados em Luxo e vaidade), fazendo o mesmo com os falsos
ingleses de A torre em concurso.
Mas ao contrário de Martins Pena, os estrangeiros em Macedo
são utilizados basicamente como ocasião para a comicidade provocada pela língua
portuguesa estropiada, à maneira do entremez. Julgo que o detalhe
verdadeiramente cômico é que não haja escravos nas salas brasileiras e, sim,
criados europeus. Em outras palavras, a crítica dos costumes é feita,
paradoxalmente deixando intactos os valores básicos da sociedade e às vezes
criando aporias na argumentação. Por exemplo, se Macedo, que conhecia bem o
assunto, pinta o casamento como mercado lucrativo, segundo a lei da oferta e da
procura tal qual se via nos salões, é o dinheiro muitas vezes que resolve os
problemas dos enamorados.
É igual a conclusão de Gilda de Mello e Souza: Macedo
refletia a opinião da burguesia média, para a qual o casamento era uma
transação econômica igual às demais. Se essas observações agudas de nosso autor
não são suficientes para a boa execução teatral, é fácil concluir que o
problema repousa menos nos temas do que na inconsciência dos recursos cênicos,
apresentando soluções inverossímeis, sem a clareza que a progressão das cenas
exige. As falas são tão compridas, que em A torre em concurso Felícia se perde
no próprio discurso: "...mas... a que veio isso? Ah!sim: para provar a
minha experiência;/ pois bem: com ela adivinhei...", etc. (Ato I, 2).
A "ópera" Amor e pátria, "drama em um
ato", celebração do 7 de setembro de 1822, pode bem ser compreendida como
comédia (assim como os dramas de Martins Pena são todos cômicos pela
inadequação dos procedimentos). Nela, o amor romântico de dois jovens é a outra
face do amor da pátria, misturando-se tiradas sobre "o patriota",
sobre valentia e temor, a denúncias políticas e traições pespontadas de
qüiproquós melodramáticos. No universo nacionalista, o vilão não pode deixar de
ser um "ilhéu". As peripécias se dão com velocidade, sem qualquer
preparação das cenas, por isso não podem convencer. Vale a pena transcrever
parte da última cena, de louvação a Pedro I:
Luciano — Salve! salve! o Príncipe imortal, o paladim da
liberdade chegou de S. Paulo, onde a 7 deste mês, nas margens do Ipiranga,
soltou o grito "Independência ou Morte!" grito heróico, que será
doravante a divisa de todos os Brasileiros...ouvi! ouvi! (Aclamações dentro)
Sim! "Independência ou Morte".
Não deixa de ser curioso que a última fala caiba ao
personagem poltrão, que só funciona para dar contraste, momento em que se
mostra tocado de valentia ao escutar aqueles "gritos elétricos".
A obediência aos valores patriarcais no teatro de Macedo
(religião, pureza e conformismo) perturba um dos princípios básicos da comédia,
que é justamente o advento do novo em luta com princípios ultrapassados. Ao
contrário disso, estes princípios são defendidos pelos sermões que prega sem
descanso defendendo a moralidade e arvorando-se em "realista". Mas o
alvo, de novo, não é atingido, pois falando do Brasil e indicando locais e
datas da ação, seus personagens são "o menos possível brasileiros".
Faz-se necessário frisar o mais grave: a escravidão, o ponto inflamado da
sociedade, só comparece evaporada nas comparações lingüísticas, apoiadas em
repetidas analogias. Surge assim destituída de importância, completamente
abstrata. Vejamos esses exemplos colhidos ao acaso:
Crespim — ... e corro, há dois dias, como um preto
quilombola! (A torre em concurso, ato I, cena 4).
Germano — Que posso eu fazer?...decrete, mande, como uma
soberana dá ordens a um escravo... (idem, ato II, cena 9).
Beatriz — ...ainda trabalho [...] perde-se a noite... e isto
acontece à Beatriz a formosa, por causa de um músico de meia cara!... (O primo
da Califórnia, ato I, cena 8).
O cotejo entre nossos dois comediógrafos ficará mais claro
com a comparação da paródia de Otelo que ambos escreveram: Martins Pena, Os
ciúmes de um pedestre, proibida de subir à cena pela Censura, que a achou
"imprudentíssima", e Macedo, O novo Otelo.
O ponto central das comédias apóia-se em João Caetano e em
sua celebradíssima interpretação da tragédia shakespeariana. Claro está que não
se trata da obra original, mas de sua versão neoclássica através do
"reflexo gelado" da tradução de Jean-François Ducis, retraduzida
entre nós por Gonçalves de Magalhães. De 1837 a 1860 houve 26 representações desse Otelo,
apertado nos padrões clássicos, "com exclusão do povo, do humor, da
grosseria, da sexualidade, da maldade", observa Almeida Prado. Esta foi a
interpretação que deu a João Caetano o maior prestígio de sua carreira. O
próprio Macedo escreveu que ficara impressionado "pela exageração dos
impulsos apaixonados, pelos gritos ou rugidos selvagens e desentoados".
Martins Pena desloca as altas razões da honra e os motivos
da bravura da peça original, com a transformação do "fero africano"
em nosso pedestre, policial subalterno, que merece dele minuciosa definição:
sua limitação intelectual, sua desonestidade, sua bazófia, seu autoritarismo.
Desse ponto de vista e adiantando conclusões, a comédia frisa que na
"tapera de Santa Cruz" o amor e o problema social são um caso de
polícia. Mas a lei clássica da comédia, que sempre derrota os tolos, transforma
o esforço policial numa "inútil precaução".
Várias vezes a figura do pedestre vem citada nos Folhetins,
pois tinha a função dupla e paradoxal de caçar escravos fugidos e ao mesmo
tempo controlar desordens nas representações teatrais. Talvez por isso Os
ciúmes de um pedestre se organizem formalmente aludindo incansavelmente ao
próprio palco, cujo espaço sempre versátil na comédia é reforçado com a
multiplicação de saídas e entradas, incontáveis chaves guardadas dentro de
quartos por sua vez trancados, etc. No final nos é sugerido que estamos mesmo
num teatro, quando um dos personagens, ao se encerrar a ação, e olhando tudo de
"um buraco", afirma que já vai dormir "que já deu uma
hora".
O nervo da questão é a discussão sobre a liberdade, a
opressão e a maneira de resistir a ela. "Pensa meu marido que se prende
uma mulher prendendo-a a sete chaves! Simplório!", diz uma das duas
encarceradas. Particularizando-se na família, o tema da escravidão atinge o
aspecto mais amplo social.
Desde o início o mote é dado pelo pedestre, em resposta às
amargas queixas da mulher, que aspira à fuga "desta casa, onde vivo como
miserável escrava": "Até agora tenho te tratado como um fidalgo, nada
te tem faltado, a não ser a liberdade..." ( cena 8).
Se a redefinição de fidalguia implica a escravização do
outro, ela também arrasta a um novo entendimento o poder de castigar, que se
aproxima agora do delírio sádico. Por exemplo, o pretendente da filha do
protagonista se disfarça pintando-se de preto, como muitas vezes faziam os
atores a fim de ficarem "tisnados" para a representação de Otelo;
agarrando-o ao supô-lo um escravo fugido, assim diz o pedestre: "[...] vem
cá, negrinho de minha alma [...] meu negrinho, hei de te dar uma reverendíssima
maçada de pau bem repinicadinha... Vem cá, meu negrinho..." (cena 6).
No mesmo ato, à filha que pede perdão de joelhos, o
pedestre, com a palmatória nas mãos, também implora transtornado : "Só
quatro dúzias, só quatro dúzias".
Mas se Os ciúmes de um pedestre em grande parte giram ao
redor da paródia de Otelo na interpretação de João Caetano, também incluem
outros dramas e melodramas, como o famoso Pedro-Sem com seu fim delirante, o
fait-divers nacional, e a "inútil precaução" do Barbeiro de Sevilha,
que ronda a peça. Os fios das várias tramas e o jogo das distorções causado
pelos recursos paródicos são de extrema complexidade. É importante lembrar que
existiram muitas paródias das versões melodramáticas de Shakespeare no século
XIX, não só aqui, mas também na Inglaterra e em Portugal, onde encontramos uma
paródia da peça de autoria de Garrett, além do entremez Otelo tocador de
realejo, que corria anônimo.
Os censores da obra de Pena não se irritaram somente com as
alusões "ao único ator brasileiro que entre nós tem representado o papel
de Otelo", pois Martins Pena completou o quadro com dois acontecimentos
constrangedores da época: o achado do cadáver de um negro assassinado, dentro
de um saco, para ser jogado ao mar, e a deportação de figura "de família
respeitada, um dos nossos mais modernos consócios" que, apaixonado por uma
jovem, "subiu ao telhado e desceu as escadas de um sótão para lhe
falar". O texto dos censores é explícito: mais do que ameaçar a obra de
Shakespeare/Ducis na interpretação de João Caetano, a paródia também atingia a
"moral familiar".
"Deus me dê paciência com a Censura!", desabafou
Martins Pena em carta a um amigo, acrescentando que os censores deviam estar
com "catarata na inteligência", inclusive por desconhecerem que
paródias eram admitidas "em todas as partes do mundo civilizado".
O novo Otelo de Macedo passa longe dessas atribulações.
Trata-se de uma peça em um ato e nove cenas, o que conta ponto para Macedo,
pois a brevidade ajuda a concentração que lhe era tão difícil. Quatro
personagens contracenam, mais um cachorrinho chamado Querido. Este animal de
estimação é o pivô do qüiproquó, por ser equivocadamente considerado um rival
por Calisto, dono de um armarinho, pretendente de uma das jovens. Também ator
em um teatrinho particular onde representa Otelo, esse enamorado fica obcecado
pelo personagem, por isso deseja sentir ciúmes para desempenhar bem o papel.
Calisto — Adoro esta rapariga tanto, como a minha parte de
Otelo... sim... [...] Oh! Se fosse ela que fizesse o papel de Hedelmonda... com
que prazer e arrebatamento eu lhe daria a punhalada do quinto ato! Ao menos
porém deve aparecer algum ímpeto de ciúme [...] é preciso que eu me exaspere,
que eu esbraveje mordido pelo ímpeto do ciúme [...] ou então não passarei de um
Mouro de Veneza muito ordinário. Se eu apanhasse um pretexto... (cena 3)
Não é difícil perceber que o querer sentir ciúmes baixa a
temperatura do delírio do personagem, não o afastando demasiado das margens da
normalidade e da pura brincadeira. Apesar das alfinetadas no governo e na
política, sempre pelo recurso do trocadilho, o texto aconselha sem ironia, tem
um ar cordial e amigo. Além disso, o texto de Shakespeare/Ducis não é
transformado por dentro, desviando-se do sentido original; ao contrário,
comparece entre aspas na comédia de Macedo, que por isso mesmo funciona mais
como apoio jocoso do que paródia.
Mas a forma caseira também tem sua eficácia e a crítica a
João Caetano, pairando por sobre o texto, transfere-se para a tolice do
protagonista Calisto, que julga infantilmente poder imitar o grande ator num
teatrinho de bairro. A afirmação explícita de que sua interpretação ficava
"dez furos acima do João Caetano", quando vemos essa mesma personagem
mergulhada na própria mediocridade e falta de discernimento, produz o efeito
oposto, isto é, o de preservar a glória de nosso trágico. Além disso, a
inverossimilhança da confusão do cachorrinho da amada com um amante tira o
ponto de apoio da pretendida caricatura, que se volta contra seu autor,
concluindo-se o texto pela costumeira harmonização das diferenças. Mais uma vez
a pecinha de Macedo deixava intocados os valores básicos do que supostamente
pretendia criticar. Apesar disso não podemos negar algumas tiradas
espirituosas, principalmente no diálogo inicial entre Calisto e o pai de sua
amada, ou na metamorfose do "punhal de Otelo", tantas vezes repetido,
numa inofensiva vela de cera.
Para resumir essas observações sobre a obra de Pena e
Macedo, podemos dizer que entre os vários aspectos em que se diferenciam o mais
importante diz respeito ao aspecto formal, que deforma ou ajusta o tema
tratado. Em Pena assistimos ao aprendizado da forma encaminhando-se sempre ao
controle dos procedimentos teatrais, afinal atingido com originalidade; em
Macedo, no retraçar de alguns temas comuns, não existe grande preocupação ou consciência
em relação à pesquisa estética, apresentando-se os problemas sempre diluídos ou
equalizados por meio dos mesmos recursos. Ora, essa forma tendia à harmonização
de todos os termos, fossem estéticos ou ideológicos, como observamos no
tratamento dado à escravidão.
Os autores também se diferenciam quanto ao nacionalismo,
isto é, à escrita das coisas locais, fundamental no romantismo, unido além
disso ao patriotismo da época, exacerbado pelas circunstâncias políticas. Em
Luxo e vaidade a fala de Anastácio (Ato II cena 4) é esclarecedora, pois vemos
o Brasil ao alcance das conquistas do liberalismo: "Já não se reconhece
[sic] privilégios, graças a Deus, e as portas das grandezas sociais estão
abertas a todos os que sabem merecê-las". Em contrapartida, Martins Pena é
um mal-humorado sob muitos pontos de vista. Nos Folhetins confessa que as
pessoas ilustres que por acaso se sentam a seu lado no teatro estragam-lhe a
noite, o grande império transforma-se na tapera de Santa Cruz, entedia-se com
os elogios dramáticos e zomba da mania das cores nacionais que emocionam a
rapaziada patriótica; o aniversário da abdicação merece-lhe irreverente
comentário e escarnece, da maneira mais feroz, da estupidez da censura, que
apenas se preocupa com o amor e os pecadinhos que ele nos faz cometer, em nome
de um inexistente passado dignificante. Todos esses aspectos negativos ao
espírito moderno foram abordados e criticados por Martins Pena
O acanhamento e as contradições do meio, além das limitações
materiais do teatro, não deixaram também de constituir empecilhos à cabal
realização de cada um dos autores. É muito significativa a descrição de uma
cena na apresentação de L´Elisir d´amore que, segundo os Folhetins, se
assemelhou a "uma verdadeira patuscada": um cão latia sem parar na
platéia, um cavalo trôpego e raquítico, que puxava um carro de papelão dourado
levando três personagens, "deu com os olhos no lustre e recuou
ofuscado"; o carro, "impelido e acelerado pelo declive do tablado,
rolou com velocidade para diante". Seguiu-se uma tremenda confusão,
acompanhada de vaias da platéia; os atores saltaram do carro, os coros fugiram,
até que "um homem valente" saltou sobre o cavalo, que caiu de
focinhos, em meio a ruídos de tropel e gargalhadas. Minutos depois a ordem foi
estabelecida, a orquestra principiou a tocar, os personagens subiram no carro,
e tudo continuou como se nada houvesse acontecido.
Entre nós quase tudo precisava ser feito, do abandono das
velhas normas neoclássicas, já desgastadas, à promoção da literatura nacional,
que alguns negavam, afirmando a impossibilidade de duas literaturas numa mesma
língua. Para termos uma idéia da dificuldade da empresa, basta-nos pensar que
os jovens autores da revista Niterói não podiam conhecer bem os autores do
passado, pois era difícil localizar os textos, buscados em bibliotecas da
Itália e da França, e chegaram a procurar registros que contivessem "a
desejada poesia original dos índios". A tais dificuldades se acrescentam
os equívocos. Décio de Almeida Prado sublinha "a circunstância um tanto
estranha" das peças de Martins Pena, "as mais brasileiras que já
foram escritas entre nós", terem sido encenadas por intermédio e em
benefício de atores portugueses. Por último, a ação ininterrupta da censura era
facilitada pelos subsídios oficiais. Na mesma sessão da Câmara em que os
deputados censuraram O inglês maquinista, discutiu-se a oportunidade ou não dos
subsídios teatrais. O deputado Mendes de Almeida votava contra, pois "há
entre nós a mania de fazer o governo carregar com tudo, e assim vamos de certa
maneira caminhando para o comunismo". O senhor Rocha, contudo, desconfiado
do poder subversivo da arte cênica votava a favor, e explicava: "é
importante que haja o subsídio para a facilidade do controle sobre o teatro".
Voltando ao cotejo dos dois, a obra de Pena sem dúvida
supera a de seu colega em originalidade e conseqüência. Inaugurando o gênero
mais fecundo entre nós — a comédia de costumes —, refundiu as formas existentes
do entremez no interior de um minucioso trabalho de incorporação de outros
gêneros. Quanto a Macedo, não podemos discordar de Machado de Assis: "O
autor abre à sua musa um caminho fácil aos triunfos do dia, mas impossível às
glórias duráveis". Mas também não podemos negar sua contribuição à
linguagem teatral, fazendo a passagem da "oralidade de salão e academia,
típica do arcadismo, para a oralidade de teatro, comício, reunião política —
coisas novas no Brasil...". Por último, não podemos também esquecer o
aproveitamento que fez do tipo brasileiro, na figura da "moreninha".
Com isso revitalizou o antigo tópico que atribuía aos olhos ou cabelos negros
as qualidades da malícia ou da traição. Traduzida em forma teatral, A moreninha
foi a peça mais popular de Macedo, chegando a Portugal com o mesmo sucesso.
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Fonte:
Fonte:
Vilma Arêas: "A comédia no romantismo brasileiro
Martins Pena e Joaquim Manuel de Macedo". Novos estud. - CEBRAP no.76 São Paulo Nov. 2006, disponível
digitalmente em: http://www.scielo.br/
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