16/11/2013

O Teatro Completo de Joaquim Manuel de Macedo

 Joaquim Manuel de Macedo - Teatro Completo - Iba Mendes
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O Teatro de Joaquim Manuel de Macedo


Tendo passado "sem muita convicção ou força" por todos os gêneros teatrais disponíveis no momento, Macedo se achava mais à vontade na comédia, que abarcava outros gêneros, fossem "inspirados no francês" (O primo da Califórnia), fossem as chamadas "óperas" (O fantasma branco), a comédia burlesca (A torre em concurso), fosse o drama realista (Luxo e vaidade), a comédia realista (Cincinato Quebra-Louça) ou o vaudeville (O macaco do vizinho), em que à semelhança de Martins Pena (Os ciúmes de um pedestre) descobria-se que a mulher podia enganar também o marido e não somente o pai, perigo já apontado pelo Otelo shakespeariano no século XVI. A diferença é que na peça de Pena a mulher realmente se envolve com outro, que penetra em sua casa durante a ausência do marido, e em O macaco do vizinho o adultério é apenas uma possibilidade.

Assim vemos que as fronteiras da comédia de Macedo podem estar entre as de Martins Pena e as comédias de José de Alencar. Mas colocar os dois primeiros lado a lado, como faço neste artigo, torna clara a diferença entre ambos. A distância diz também respeito aos círculos que freqüentaram, segundo a proximidade ou distância do poder político, segundo a vida privada, e ao empenho em relação ao palco.

Apenas cinco anos mais novo que Martins Pena, nosso autor sobreviveu a este em 34 anos, tempo que ultrapassa os 33 vividos pelo autor de Quem casa quer casa. No entanto, à variação e ao desenvolvimento da obra de Pena em direção à conquista da técnica teatral corresponde o molde mais ou menos invariável dos textos de Macedo, sejam ficção, crônica ou teatro, o que permite com freqüência uma forma escorregar para outra: teatralização de romances (A moreninha), ficção atravessando as crônicas e virando teatro no final (Romance de uma velha). Não se trata de moldar uma estrutura ficcional para as crônicas, recurso usado por Martins Pena nos Folhetins, mas de emparelhar uma forma com a outra, perfeitamente nítidas as duas.

Adiantamos que a chave dessa volubilidade apóia-se formalmente no que o próprio Macedo chamou de trocadilho, largamente usado por ele, menos no sentido do jogo interno de palavras (parecidas no som e diferentes no significado) do que na equivalência entre frases ou sintagmas diversos, na maioria das vezes arbitrária e referente a coisas incompatíveis. Analogia talvez fosse o termo mais adequado. Esse tipo de composição acaba por ajudar o ritmo digressivo do autor. Às vezes são meras transposições, comuns na retórica do melodrama, o "mundo" e o "abismo", por exemplo, mas com esse volteio jocoso tudo se torna vagamente intercambiável, pouco diferenciável, raso. É comum o recurso alongar as frases, tornando o texto meio frouxo. Um exemplo no Labirinto de 20 de maio de 1860, em que "artigos jornalísticos" e "governos" são equiparados: "Começar um artigo não é empresa assim tão fácil; é como o começar o seu governo para ministros novos [...]".

Em O novo Otelo, a suposta versatilidade teatral, isto é, a possibilidade de um ator desempenhar vários papéis, é definida em termos de acumulação de empregos (cena 2):

Antonio — Então eu sou tanta coisa ao mesmo tempo?

Calisto — Não faz mal: está no sistema de acumulações de empregos.

Em A torre em concurso, a divisão política entre conservadores e liberais é equiparada à rivalidade entre dois falsos engenheiros seguidos de seus admiradores. Um deles se veste de vermelho, outro de amarelo, formando dois partidos rivais mas em tudo coincidentes, o que gera as alusões políticas e as brincadeiras cênicas de praxe. O tema foi também admiravelmente desenvolvido por Machado de Assis em Esaú e Jacó, conforme observa Márcio Jabur Yunes, em seu excelente prefácio à obra de Macedo.

Julgo que a epígrafe introdutória da primeira edição de A moreninha, pela Garnier, retirada de um poema de Gresset, ilumina toda a produção literária e teatral de Macedo: "Trop occuper pour corriger/ Je vous livre mês rêveries/ [...] J' en fais pour me désennuyer". Nada mais sincero e mais verdadeiro, apesar da pretendida seriedade dos conselhos e sermões que recheiam a obra, causando desequilíbrio no conjunto. Vejamos um pequeno trecho de Luxo e vaidade, considerada muitas vezes sua obra-prima:

Anastácio — Aqueles que negam a primazia à virtude, são uns miseráveis. Já se foi o tempo em que um sandeu valia mais do que um sábio; um depravado mais do que o homem honesto, quando o homem sábio ou honesto era filho de um sapateiro, e o acaso dera ao depravado meia dúzia de avós, falsa ou realmente ilustres. Não temos senão uma nobreza, a nobreza da constituição, que é a do merecimento e das virtudes. Já não se reconhece [sic] privilégios, graças a Deus, e as portas das grandezas sociais estão abertas a todos os que sabem merecê-las: nobre é o estadista que se consagra aos serviço da pátria; [...] nobres são todos aqueles que ilustram e honram a nação, e nobre é, principalmente a virtude, a virtude que é a sublime benemérita aos olhos do Senhor!...

Leonina — Oh! E como há então pessoas que olham com desprezo para um artista? (Com viveza) O artista não pode também chegar a ser nobre, meu padrinho?

Temos de convir, saltando as ilusões políticas e convicções pessoais, além do tópico da nobreza do artista, que o peso dessa fala atravanca e rompe qualquer equilíbrio possível numa comédia de entrecho convencional: livrar uma mocinha de um casamento com um velho rico para salvar os pais da bancarrota. Acrescente-se aqui a qualidade do universo fortemente contrastivo, entre o vício (esbanjamento, esnobismo social, vida na cidade, dinheiro) e a virtude (economia que leva à riqueza, ausência de preconceito de classe, vida na roça, arte).

José Veríssimo apontou a monotonia da obra macediana, sua ingenuidade parelha a uma sociedade "chã e matuta", a sentimentalidade que beira a pieguice, a filosofia banal, tudo embrulhado numa moral de catecismo "para uso vulgar". O crítico também identifica com acerto a inclinação dramática de Macedo, dirigida a fazer de sua arte um divertimento para moralizar risonhamente seus contemporâneos. Antonio Candido completa o perfil da produção longa e prolixa de nosso autor (vinte romances, doze peças de teatro, um "poema-romance", e mais de dez volumes de variedades), afirmando que "o bom e simpático Macedo" sempre cedeu ao impulso da tagarelice "de alguém muito conversador, cheio de casos e novidades". Sua popularidade junto aos leitores baseava-se na criação de cenários e personagens familiares, a que se acrescentava a oralidade da língua. Além disso, as peripécias "e sentimentos enredados e poéticos" garantiam "as necessidades médias de sonho e aventura".

Yunes acrescenta outras observações às anteriores: numa época de nacionalismo exacerbado, anos 1860-70, contraditoriamente banhada do fascínio "ainda forte demais" pelas modas e maneiras européias, o dramaturgo se vinga, transformando em clowns dois europeus, a serviço de um brasileiro (os criados em Luxo e vaidade), fazendo o mesmo com os falsos ingleses de A torre em concurso.

Mas ao contrário de Martins Pena, os estrangeiros em Macedo são utilizados basicamente como ocasião para a comicidade provocada pela língua portuguesa estropiada, à maneira do entremez. Julgo que o detalhe verdadeiramente cômico é que não haja escravos nas salas brasileiras e, sim, criados europeus. Em outras palavras, a crítica dos costumes é feita, paradoxalmente deixando intactos os valores básicos da sociedade e às vezes criando aporias na argumentação. Por exemplo, se Macedo, que conhecia bem o assunto, pinta o casamento como mercado lucrativo, segundo a lei da oferta e da procura tal qual se via nos salões, é o dinheiro muitas vezes que resolve os problemas dos enamorados.

É igual a conclusão de Gilda de Mello e Souza: Macedo refletia a opinião da burguesia média, para a qual o casamento era uma transação econômica igual às demais. Se essas observações agudas de nosso autor não são suficientes para a boa execução teatral, é fácil concluir que o problema repousa menos nos temas do que na inconsciência dos recursos cênicos, apresentando soluções inverossímeis, sem a clareza que a progressão das cenas exige. As falas são tão compridas, que em A torre em concurso Felícia se perde no próprio discurso: "...mas... a que veio isso? Ah!sim: para provar a minha experiência;/ pois bem: com ela adivinhei...", etc. (Ato I, 2).

A "ópera" Amor e pátria, "drama em um ato", celebração do 7 de setembro de 1822, pode bem ser compreendida como comédia (assim como os dramas de Martins Pena são todos cômicos pela inadequação dos procedimentos). Nela, o amor romântico de dois jovens é a outra face do amor da pátria, misturando-se tiradas sobre "o patriota", sobre valentia e temor, a denúncias políticas e traições pespontadas de qüiproquós melodramáticos. No universo nacionalista, o vilão não pode deixar de ser um "ilhéu". As peripécias se dão com velocidade, sem qualquer preparação das cenas, por isso não podem convencer. Vale a pena transcrever parte da última cena, de louvação a Pedro I:

Luciano — Salve! salve! o Príncipe imortal, o paladim da liberdade chegou de S. Paulo, onde a 7 deste mês, nas margens do Ipiranga, soltou o grito "Independência ou Morte!" grito heróico, que será doravante a divisa de todos os Brasileiros...ouvi! ouvi! (Aclamações dentro) Sim! ­"Independência ou Morte".

Não deixa de ser curioso que a última fala caiba ao personagem poltrão, que só funciona para dar contraste, momento em que se mostra tocado de valentia ao escutar aqueles "gritos elétricos".

A obediência aos valores patriarcais no teatro de Macedo (religião, pureza e conformismo) perturba um dos princípios básicos da comédia, que é justamente o advento do novo em luta com princípios ultrapassados. Ao contrário disso, estes princípios são defendidos pelos sermões que prega sem descanso defendendo a moralidade e arvorando-se em "realista". Mas o alvo, de novo, não é atingido, pois falando do Brasil e indicando locais e datas da ação, seus personagens são "o menos possível brasileiros". Faz-se necessário frisar o mais grave: a escravidão, o ponto inflamado da sociedade, só comparece evaporada nas comparações lingüísticas, apoiadas em repetidas analogias. Surge assim destituída de importância, completamente abstrata. Vejamos esses exemplos colhidos ao acaso:

Crespim — ... e corro, há dois dias, como um preto quilombola! (A torre em concurso, ato I, cena 4).

Germano — Que posso eu fazer?...decrete, mande, como uma soberana dá ordens a um escravo... (idem, ato II, cena 9).

Beatriz — ...ainda trabalho [...] perde-se a noite... e isto acontece à Beatriz a formosa, por causa de um músico de meia cara!... (O primo da Califórnia, ato I, cena 8).

O cotejo entre nossos dois comediógrafos ficará mais claro com a comparação da paródia de Otelo que ambos escreveram: Martins Pena, Os ciúmes de um pedestre, proibida de subir à cena pela Censura, que a achou "imprudentíssima", e Macedo, O novo Otelo.

O ponto central das comédias apóia-se em João Caetano e em sua celebradíssima interpretação da tragédia shakespeariana. Claro está que não se trata da obra original, mas de sua versão neoclássica através do "reflexo gelado" da tradução de Jean-François Ducis, retraduzida entre nós por Gonçalves de Magalhães. De 1837 a 1860 houve 26 representações desse Otelo, apertado nos padrões clássicos, "com exclusão do povo, do humor, da grosseria, da sexualidade, da maldade", observa Almeida Prado. Esta foi a interpretação que deu a João Caetano o maior prestígio de sua carreira. O próprio Macedo escreveu que ficara impressionado "pela exageração dos impulsos apaixonados, pelos gritos ou rugidos selvagens e desentoados".

Martins Pena desloca as altas razões da honra e os motivos da bravura da peça original, com a transformação do "fero africano" em nosso pedestre, policial subalterno, que merece dele minuciosa definição: sua limitação intelectual, sua desonestidade, sua bazófia, seu autoritarismo. Desse ponto de vista e adiantando conclusões, a comédia frisa que na "tapera de Santa Cruz" o amor e o problema social são um caso de polícia. Mas a lei clássica da comédia, que sempre derrota os tolos, transforma o esforço policial numa "inútil precaução".

Várias vezes a figura do pedestre vem citada nos Folhetins, pois tinha a função dupla e paradoxal de caçar escravos fugidos e ao mesmo tempo controlar desordens nas representações teatrais. Talvez por isso Os ciúmes de um pedestre se organizem formalmente aludindo incansavelmente ao próprio palco, cujo espaço sempre versátil na comédia é reforçado com a multiplicação de saídas e entradas, incontáveis chaves guardadas dentro de quartos por sua vez trancados, etc. No final nos é sugerido que estamos mesmo num teatro, quando um dos personagens, ao se encerrar a ação, e olhando tudo de "um buraco", afirma que já vai dormir "que já deu uma hora".

O nervo da questão é a discussão sobre a liberdade, a opressão e a maneira de resistir a ela. "Pensa meu marido que se prende uma mulher prendendo-a a sete chaves! Simplório!", diz uma das duas encarceradas. Particularizando-se na família, o tema da escravidão atinge o aspecto mais amplo social.

Desde o início o mote é dado pelo pedestre, em resposta às amargas queixas da mulher, que aspira à fuga "desta casa, onde vivo como miserável escrava": "Até agora tenho te tratado como um fidalgo, nada te tem faltado, a não ser a liberdade..." ( cena 8).

Se a redefinição de fidalguia implica a escravização do outro, ela também arrasta a um novo entendimento o poder de castigar, que se aproxima agora do delírio sádico. Por exemplo, o pretendente da filha do protagonista se disfarça pintando-se de preto, como muitas vezes faziam os atores a fim de ficarem "tisnados" para a representação de Otelo; agarrando-o ao supô-lo um escravo fugido, assim diz o pedestre: "[...] vem cá, negrinho de minha alma [...] meu negrinho, hei de te dar uma reverendíssima maçada de pau bem repinicadinha... Vem cá, meu negrinho..." (cena 6).

No mesmo ato, à filha que pede perdão de joelhos, o pedestre, com a palmatória nas mãos, também implora transtornado : "Só quatro dúzias, só quatro dúzias".

Mas se Os ciúmes de um pedestre em grande parte giram ao redor da paródia de Otelo na interpretação de João Caetano, também incluem outros dramas e melodramas, como o famoso Pedro-Sem com seu fim delirante, o fait-divers nacional, e a "inútil precaução" do Barbeiro de Sevilha, que ronda a peça. Os fios das várias tramas e o jogo das distorções causado pelos recursos paródicos são de extrema complexidade. É importante lembrar que existiram muitas paródias das versões melodramáticas de Shakespeare no século XIX, não só aqui, mas também na Inglaterra e em Portugal, onde encontramos uma paródia da peça de autoria de Garrett, além do entremez Otelo tocador de realejo, que corria anônimo.

Os censores da obra de Pena não se irritaram somente com as alusões "ao único ator brasileiro que entre nós tem representado o papel de Otelo", pois Martins Pena completou o quadro com dois acontecimentos constrangedores da época: o achado do cadáver de um negro assassinado, dentro de um saco, para ser jogado ao mar, e a deportação de figura "de família respeitada, um dos nossos mais modernos consócios" que, apaixonado por uma jovem, "subiu ao telhado e desceu as escadas de um sótão para lhe falar". O texto dos censores é explícito: mais do que ameaçar a obra de Shakespeare/Ducis na interpretação de João Caetano, a paródia também atingia a "moral familiar".

"Deus me dê paciência com a Censura!", desabafou Martins Pena em carta a um amigo, acrescentando que os censores deviam estar com "catarata na inteligência", inclusive por desconhecerem que paródias eram admitidas "em todas as partes do mundo civilizado".

O novo Otelo de Macedo passa longe dessas atribulações. Trata-se de uma peça em um ato e nove cenas, o que conta ponto para Macedo, pois a brevidade ajuda a concentração que lhe era tão difícil. Quatro personagens contracenam, mais um cachorrinho chamado Querido. Este animal de estimação é o pivô do qüiproquó, por ser equivocadamente considerado um rival por Calisto, dono de um armarinho, pretendente de uma das jovens. Também ator em um teatrinho particular onde representa Otelo, esse enamorado fica obcecado pelo personagem, por isso deseja sentir ciúmes para desempenhar bem o papel.

Calisto — Adoro esta rapariga tanto, como a minha parte de Otelo... sim... [...] Oh! Se fosse ela que fizesse o papel de Hedelmonda... com que prazer e arrebatamento eu lhe daria a punhalada do quinto ato! Ao menos porém deve aparecer algum ímpeto de ciúme [...] é preciso que eu me exaspere, que eu esbraveje mordido pelo ímpeto do ciúme [...] ou então não passarei de um Mouro de Veneza muito ordinário. Se eu apanhasse um pretexto... (cena 3)

Não é difícil perceber que o querer sentir ciúmes baixa a temperatura do delírio do personagem, não o afastando demasiado das margens da normalidade e da pura brincadeira. Apesar das alfinetadas no governo e na política, sempre pelo recurso do trocadilho, o texto aconselha sem ironia, tem um ar cordial e amigo. Além disso, o texto de Shakespeare/Ducis não é transformado por dentro, desviando-se do sentido original; ao contrário, comparece entre aspas na comédia de Macedo, que por isso mesmo funciona mais como apoio jocoso do que paródia.

Mas a forma caseira também tem sua eficácia e a crítica a João Caetano, pairando por sobre o texto, transfere-se para a tolice do protagonista Calisto, que julga infantilmente poder imitar o grande ator num teatrinho de bairro. A afirmação explícita de que sua interpretação ficava "dez furos acima do João Caetano", quando vemos essa mesma personagem mergulhada na própria mediocridade e falta de discernimento, produz o efeito oposto, isto é, o de preservar a glória de nosso trágico. Além disso, a inverossimilhança da confusão do cachorrinho da amada com um amante tira o ponto de apoio da pretendida caricatura, que se volta contra seu autor, concluindo-se o texto pela costumeira harmonização das diferenças. Mais uma vez a pecinha de Macedo deixava intocados os valores básicos do que supostamente pretendia criticar. Apesar disso não podemos negar algumas tiradas espirituosas, principalmente no diálogo inicial entre Calisto e o pai de sua amada, ou na metamorfose do "punhal de Otelo", tantas vezes repetido, numa inofensiva vela de cera.

Para resumir essas observações sobre a obra de Pena e Macedo, podemos dizer que entre os vários aspectos em que se diferenciam o mais importante diz respeito ao aspecto formal, que deforma ou ajusta o tema tratado. Em Pena assistimos ao aprendizado da forma encaminhando-se sempre ao controle dos procedimentos teatrais, afinal atingido com originalidade; em Macedo, no retraçar de alguns temas comuns, não existe grande preocupação ou consciência em relação à pesquisa estética, apresentando-se os problemas sempre diluídos ou equalizados por meio dos mesmos recursos. Ora, essa forma tendia à harmonização de todos os termos, fossem estéticos ou ideológicos, como observamos no tratamento dado à escravidão.

Os autores também se diferenciam quanto ao nacionalismo, isto é, à escrita das coisas locais, fundamental no romantismo, unido além disso ao patriotismo da época, exacerbado pelas circunstâncias políticas. Em Luxo e vaidade a fala de Anastácio (Ato II cena 4) é esclarecedora, pois vemos o Brasil ao alcance das conquistas do liberalismo: "Já não se reconhece [sic] privilégios, graças a Deus, e as portas das grandezas sociais estão abertas a todos os que sabem merecê-las". Em contrapartida, Martins Pena é um mal-humorado sob muitos pontos de vista. Nos Folhetins confessa que as pessoas ilustres que por acaso se sentam a seu lado no teatro estragam-lhe a noite, o grande império transforma-se na tapera de Santa Cruz, entedia-se com os elogios dramáticos e zomba da mania das cores nacionais que emocionam a rapaziada patriótica; o aniversário da abdicação merece-lhe irreverente comentário e escarnece, da maneira mais feroz, da estupidez da censura, que apenas se preocupa com o amor e os pecadinhos que ele nos faz cometer, em nome de um inexistente passado dignificante. Todos esses aspectos negativos ao espírito moderno foram abordados e criticados por Martins Pena

O acanhamento e as contradições do meio, além das limitações materiais do teatro, não deixaram também de constituir empecilhos à cabal realização de cada um dos autores. É muito significativa a descrição de uma cena na apresentação de L´Elisir d´amore que, segundo os Folhetins, se assemelhou a "uma verdadeira patuscada": um cão latia sem parar na platéia, um cavalo trôpego e raquítico, que puxava um carro de papelão dourado levando três personagens, "deu com os olhos no lustre e recuou ofuscado"; o carro, "impelido e acelerado pelo declive do tablado, rolou com velocidade para diante". Seguiu-se uma tremenda confusão, acompanhada de vaias da platéia; os atores saltaram do carro, os coros fugiram, até que "um homem valente" saltou sobre o cavalo, que caiu de focinhos, em meio a ruídos de tropel e gargalhadas. Minutos depois a ordem foi estabelecida, a orquestra principiou a tocar, os personagens subiram no carro, e tudo continuou como se nada houvesse acontecido.

Entre nós quase tudo precisava ser feito, do abandono das velhas normas neoclássicas, já desgastadas, à promoção da literatura nacional, que alguns negavam, afirmando a impossibilidade de duas literaturas numa mesma língua. Para termos uma idéia da dificuldade da empresa, basta-nos pensar que os jovens autores da revista Niterói não podiam conhecer bem os autores do passado, pois era difícil localizar os textos, buscados em bibliotecas da Itália e da França, e chegaram a procurar registros que contivessem "a desejada poesia original dos índios". A tais dificuldades se acrescentam os equívocos. Décio de Almeida Prado sublinha "a circunstância um tanto estranha" das peças de Martins Pena, "as mais brasileiras que já foram escritas entre nós", terem sido encenadas por intermédio e em benefício de atores portugueses. Por último, a ação ininterrupta da censura era facilitada pelos subsídios oficiais. Na mesma sessão da Câmara em que os deputados censuraram O inglês maquinista, discutiu-se a oportunidade ou não dos subsídios teatrais. O deputado Mendes de Almeida votava contra, pois "há entre nós a mania de fazer o governo carregar com tudo, e assim vamos de certa maneira caminhando para o comunismo". O senhor Rocha, contudo, desconfiado do poder subversivo da arte cênica votava a favor, e explicava: "é importante que haja o subsídio para a facilidade do controle sobre o teatro".

Voltando ao cotejo dos dois, a obra de Pena sem dúvida supera a de seu colega em originalidade e conseqüência. Inaugurando o gênero mais fecundo entre nós — a comédia de costumes —, refundiu as formas existentes do entremez no interior de um minucioso trabalho de incorporação de outros gêneros. Quanto a Macedo, não podemos discordar de Machado de Assis: "O autor abre à sua musa um caminho fácil aos triunfos do dia, mas impossível às glórias duráveis". Mas também não podemos negar sua contribuição à linguagem teatral, fazendo a passagem da "oralidade de salão e academia, típica do arcadismo, para a oralidade de teatro, comício, reunião política — coisas novas no Brasil...". Por último, não podemos também esquecer o aproveitamento que fez do tipo brasileiro, na figura da "moreninha". Com isso revitalizou o antigo tópico que atribuía aos olhos ou cabelos negros as qualidades da malícia ou da traição. Traduzida em forma teatral, A moreninha foi a peça mais popular de Macedo, chegando a Portugal com o mesmo sucesso.


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Fonte:
Vilma Arêas: "A comédia no romantismo brasileiro Martins Pena e Joaquim Manuel de Macedo". Novos estud. - CEBRAP  no.76 São Paulo Nov. 2006, disponível digitalmente em: http://www.scielo.br/

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