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Oliver
Twist no
Brasil
No dia 23 de abril de 1870, o
editor do Jornal da Tarde, periódico do Rio de Janeiro,
anunciava o romance que iria suceder a publicação de Tenente Roberto:
NOVO
FOLHETIM. Começa hoje o magnífico e longo
romance do célebre – CARL DICKENS – intitulado:
OLIVEIRO TWIST. As
situações dramáticas e cômicas, os lances
inexperados, as aventuras surpreendentes de que este romance está cheio, dão a
esperança de que terá um sucesso ainda maior que o do – Tenente
Roberto. (Jornal da Tarde, ano I, nº 150, p.1, grifos no texto)
Trata-se da
tradução de Oliver Twist de Charles Dickens. Interessante
notar que apenas o autor do
romance consta do anúncio no periódico. Como se saberia, então,
que Machado de
Assis é o autor
dessa tradução? No
estudo crítico e biográfico
sobre o escritor brasileiro, Lúcia Miguel Pereira (1955, pp.121-122) afirma que, em 1870, além de colaborar com a Semana Ilustrada e o Jornal das Famílias, Machado iniciou a
tradução de um folhetim para o Jornal da Tarde – não concluída pelo autor. Em nota explicativa, Pereira
esclarece:
Em
carta conservada no
arquivo da Academia
Brasileira de Letras
e publicada por Fernando Néri,
alude Machado de Assis a esse trabalho sem lhe
mencionar o nome; entretanto,
o folhetim publicado
no momento pelo Jornal
da Tarde, o Oliver
Twist, de Dickens,
não sofreu nenhuma interrupção.
Será essa a
tradução de que
fala? Terá sido
acabada por outro?
Deve ter sido,
porque é a
única do jornal
no momento. (PEREIRA, 1955, p.122)
De fato, como se pode verificar no Jornal da Tarde, Oliveiro Twist
permanece no folhetim
do periódico até 23 de
agosto de 1870,
quando se publica
o último capítulo,
o capítulo de
número cinquenta e
três, que revela
o destino de
cada personagem da
trama. Segundo Jean-Michel
Massa (1965, p.
529), não se
pode duvidar de que pelo menos
vinte e oito capítulos dessa tradução, compilados por ele em Dispersos de Machado
de Assis, tenham sido
feitos por Machado de
Assis.
Prova disso é uma carta encaminhada
pelo próprio Machado aos diretores do jornal,
na qual o escritor brasileiro comunica a desistência do trabalho que fazia para
o periódico:
Era resolução minha [de Machado],
de acordo com o recado que de V. Ex. recebi,
por intermédio de
nosso comum amigo, o
doutor França, esperar a chegada
do sr. Oliveira
para nos entendermos
todos três a
respeito do trabalho
que faço para
o Jornal da
Tarde como tradutor do
folhetim. Nisto atendia
eu à consideração
devida para com
os dignos proprietários do Jornal da
Tarde. – Sobreveio
porém uma circunstância
que me obriga
a modificar aquela resolução,
e dizer a V.
Ex., que não
posso continuar a traduzir o folhetim, como até agora fazia. Não
querendo pôr embaraços ao Jornal da
Tarde, continuarei a
tradução até sábado,
18. (GALANTE DE SOUSA, J., 1955,
p. 452 apud LÍSIAS, R., 2002, p. 16)
Com
esse comunicado, Machado
teria encerrado sua
contribuição como tradutor
do romance de
Dickens quase ao final
do capítulo vinte
e oito; capítulo publicado no nº 197 do Jornal da Tarde, sábado, 18 de junho de 1870. No mínimo é curioso encontrar no nº 198, segunda-feira,
20 de junho de 1870, e, portanto, após o
comunicado de Machado,
a continuação do
capítulo vinte e
oito, intitulado “Prosseguem
as aventuras de Oliveiro”. No
entanto, conforme argumenta
Jean-Michel Massa, Machado encerra de
fato sua colaboração
a partir do capítulo XXVIII, pois
o tom da tradução
é diferente, com erros
de interpretação que
só se explicam
pelo desconhecimento das
páginas já traduzidas
pelo novo tradutor.
Por exemplo, onde Machado
de Assis emprega
nas formas de
tratamento a terceira pessoa,
ou “você”, o novo
tradutor emprega a segunda pessoa
do plural ou do singular. (MASSA, 2008, p. 67)
Cabe, ademais, retomar o que já foi
dito pela crítica com relação ao que teria sido o texto-fonte para Machado
realizar a tradução do romance dickensiano e, com isso, seu suposto
conhecimento da língua inglesa.
Como já havia apontado Lúcia Miguel
Pereira (1955, p. 119), “ao se casar, já devia ele conhecer o inglês, pois há
nos seus livros dessa época várias citações de Shakespeare no original, e é
provável que tenha começado, em 1870, uma tradução do Oliver Twist de Dickens”.
Pois bem, a carta
enviada pelo próprio
Machado aos diretores do Jornal
da Tarde confirma que
ele traduzia o
folhetim que estava
em curso naquele momento
no periódico. E foi isso
que levou a
crítica a concluir
que Machado conhecia bem a língua
inglesa, uma vez que, como se chegou a apontar, o romance
de Dickens não era
texto para tradutores principiantes (MASSA,
2008, p. 53). Acerca desse
imbróglio, Jean-Michel Massa concluiu que, aos vinte e sete anos, com facilidade
ou dificuldade (não
se sabe), Machado
lia em inglês,
seja por necessidade profissional
seja por prazer
(Ibid., p. 53).
Com efeito, um
novo inventário da biblioteca de Machado de Assis feito por Gloria
Vianna (2001, pp. 99-274) mostra que
há livros ingleses no original
com marcas de manuseio
tais como anotações, marcações de leitura, observações, etc. Cito, a
exemplo disso, os livros de número 278 e 313 do inventário de Vianna, a
saber, The history of the rebellion and civil wars in England
together with an historical view of the affairs of Ireland, de Edward Earl of
Clarendon, publicado em
1849, com chave
no primeiro parágrafo
e sublinhado no segundo;
e The
beauties of Shakespeare, de 1839,
livro muito manuseado, com
o prefácio assinalado,
páginas dobradas, riscos na
margem no sentido vertical
em várias páginas. Há
inclusive The
works of Charles
Dickens
no original, mas trata-se de
uma edição de
1880, doada a
Machado de Assis por Salvador de
Mendonça em 19 de agosto
de 1881, como
consta da dedicatória (VIANNA, 2001, pp. 213-218).
Cumpre considerar, no entanto, que
o fato de Machado ler em inglês aos vinte e sete anos, ou seja, em 1866, não
significa que ele tenha traduzido o romance de Dickens obrigatoriamente a
partir do original
(MASSA, 2008, p.
47). Assim, considerando outra hipótese, Jean-Michel
Massa comparou uma
tradução francesa de Oliver Twist com a
tradução machadiana. O
cotejo dos dois textos resulta, segundo
o autor, em provas irrefutáveis de que Machado não traduziu o romance de Dickens
a partir do texto original:
En
effet, sans jamais
se reporter au texte
original, ainsi que le démontrent les notes,
il utilise pour traduire
Oliver Twist [...] une
version française. Il retraduit le
texte procuré par Alfred
Gérardin, publié en 1864.
(MASSA, 1965, p. xli)
As notas que apresenta Massa em Dispersos de Machado de Assis (1965, pp.
529-554) compreendem
exemplos com os quais o crítico
buscou mostrar a equivalência entre
trechos da tradução francesa
de Gérardin e
a tradução machadiana, indicando, também, em cada
capítulo, palavras, frases e parágrafos do texto francês que não constam
da tradução de Machado.
Mais tarde, em Machado de Assis Tradutor, Massa volta
a tratar da
tradução machadiana de Oliver
Twist, tecendo
breves considerações sobre o processo
tradutório de Machado
de Assis. Como
afirma Massa (2008,
p. 67), Machado
remodelou a obra,
suprimiu palavras, frases,
parágrafos, omitindo trechos de
violência e crueza.
Ademais, Massa questiona:
seria para
dar uma ideia menos
sombria da Inglaterra
vitoriana que ele suaviza,
através de alguns cortes significativos, a descrição dos submundos
de Londres (XXVI), ou que ele suprime
a caçoada que o autor endereça aos juízes
afetados, indiferentes ao
sofrimento humano sob
suas perucas
empoadas (III)? (MASSA, 2008, 68)
Com
devida cautela e
reconhecimento pelo que
Jean-Michel Massa já nos
apresentou acerca da tradução machadiana
de Oliver Twist, não podemos deixar de fazer
algumas observações diante do que afirma o crítico francês. Entendemos que o objetivo
de Massa ao
cotejar a tradução
francesa e a
machadiana, e apresentar notas desse cotejo
em Dispersos de Machado
de Assis, foi provar
que Machado utilizou o
texto de Gérardin
como base. Isso
explicaria o procedimento
do crítico francês, qual seja
apenas apontar semelhanças e omissões, frase por frase, capítulo a capítulo,
sem dar a
elas tratamento analítico-crítico. Quanto
a Machado
de Assis Tradutor, mesmo fazendo referência a alguns tipos de omissões feitas por
Machado e questionando-se acerca das possíveis razões que levaram a tais
omissões, Massa não mostra em
profundidade o teor
dessas alterações no texto machadiano, tampouco suas consequências. Pensamos
que é importante
desenvolver uma análise mais profunda
da tradução machadiana,
e, portanto, é
de extrema necessidade considerar
a reestruturação feita por Machado na parte da narrativa por ele traduzida.
Convém, no entanto, dar o devido crédito a Massa pela descoberta do que foi o
texto-fonte para Machado de Assis traduzir o romance dickensiano. Há, de fato, evidências linguísticas no texto
machadiano que testemunham
em favor do argumento de
Massa. Apresentamos aqui
um exemplo dentre
vários. Trata-se do parágrafo
inicial do romance, já citado anteriormente.
Na
edição inglesa de
três volumes (cujo texto parece
ter sido base
para Gérardin):
Among
other public buildings in a certain town which for many reasons it will be
prudent to refrain
from mentioning, and
to which I
will assign no fictitious
name, it boasts
of one which
is common to
most towns, great
or small, to wit,
a workhouse; and
in this workhouse
was born, on
a day and date which I need not
take upon myself to repeat, inasmuch as it can be of no possible
consequence to the
reader, in this
stage of the
business at all events,
the item of mortality
whose name is
prefixed to the
head of this chapter. (DICKENS,
1839, p. 1, grifo meu)
Na tradução de Gérardin:
Parmi
les divers monuments publics qui font l’orgueil d’une ville dont, par prudence, je
tairai le nom,
et à lequelle
je ne veux
pas donner un nom imaginaire, il
en est un
commun à la
plupart des villes grandes
ou petites: c’est le dépôt de mendicité.
Un jour, dont il n’est pas nécessaire de preciser la date, l’autant plus qu’elle
n’est d’aucune importance pour le lecteur, naquit dans ce
dépôt de mendicité le petit
mortel dont on a vu le nom en tête de ce chapitre. (DICKENS,
1867, p. 1, grifo meu)
Na tradução de Machado:
Dentre os vários monumentos públicos que enobrecem uma
cidade
de Inglaterra, cujo
nome tenho a
prudência de não
dizer, e à
qual não quero dar
um nome imaginário, um existe
comum à maior parte das cidades grandes ou pequenas: é o asilo da mencididade.
Lá em certo dia,
cuja data não
é necessário indicar,
tanto mais que nenhuma
importância tem, nasceu
o pequeno mortal que
dá nome a este
livro. (DICKENS, 2002, p. 22, grifo meu)
Como mostram
os trechos grifados, é inegável
a proximidade entre
essa tradução francesa e a
machadiana, o que nos permitiria dizer que, quando Machado traduz um segmento do texto de Gérardin
(considere-se que há casos em que ele o omite ou
altera), o faz de
forma quase literal.
Daí, até onde
entendemos, Massa dizer
que a correspondência entre
o texto de
Gérardin e o
de Machado é
total, completa e absoluta
(MASSA, 1965, p. 530). De fato, as escolhas lexicais feitas por Machado
nesse trecho, a
exemplo de “asilo
da mendicidade” e “pequeno mortal”, para
citar apenas duas, não
poderiam ter resultado
da tradução direta
de “workhouse” e “item of
mortality”, mas de “dépôt
de mendicité” e “petit mortel”;
do contrário, seria
por demais coincidência o
trecho machadiano assemelhar-se ao de Gérardin sem
que aquele não
tivesse sido elaborado
a partir deste.
O fato de os trechos que são mantidos na tradução
machadiana se apresentarem de forma muito próxima
aos da tradução francesa
poderia, igualmente, reforçar
a hipótese de as omissões e
alterações existentes fazerem
parte de um
processo de seleção consciente
da parte de
Machado. Como se
verá mais adiante, as interferências feitas por Machado são
pontuais e não parecem feitas ao acaso. Antes de tratarmos delas, adentremos no mundo apresentado pelo
romance Oliver Twist.
---
Fonte:
Franciano Camelo: “MACHADO
DE ASSIS E A (RE)ESCRITA DE OLIVER
TWIST”. (Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em Letras, Área de Concentração Estudos Literários, da
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS),
como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Letras Orientadora: Profª Drª Maria
Eulália Ramicelli). Santa Maria, 2013.
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