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O Ermitão do Muquém: O
Sertanejo sobrepuja o Índio
O romance O ermitão do
Muquém (1972) inaugura em 1858 o regionalismo em nossa literatura. É um
romance singelo de narrativa fascinante, em virtude das inúmeras aventuras e peripécias do personagem.
Inicia-se em 1ª pessoa, indo depois para 3ª pessoa até o final da narrativa, há a presença do
espaço urbano e do campo, sendo que a maior parte da narrativa acontece no meio da
floresta. São três espaços que devem ser percebidos para melhor entendermos o personagem: o espaço
do sertão, de discórdias e rixas na cidade de
Vila Boa; o
espaço indígena na
floresta; e novamente
o espaço do
sertão, só que ascético.
Os personagens do primeiro
espaço são Gonçalo, o protagonista; Maria, ou Maroca, moça de comportamento leviano e causador da
briga que resulta no primeiro assassinato da trama, de Reinaldo, o namorado de Maroca, que
é morto por Gonçalo em um duelo. Além desses
temos ainda no espaço urbano de Vila Boa o mestre Mateus e sua esposa, donos da
casa onde acontece uma festa no início
da narrativa.
No espaço indígena temos
Gonçalo, nessa fase com o nome de Itagiba; Guaraciaba, a índia filha do cacique que se apaixona por
Gonçalo; Inimá, o noivo de Guaraciaba, que ao ver-se preterido vinga-se; Oriçanga, o cacique
da tribo; Andiara o pajé da
tribo, e Anhanbira, o irmão de
Guaraciaba, que aparece apenas no final da trama.
No terceiro
espaço temos novamente
Gonçalo, mas agora
conhecido como “o ermitão”,
mestre Mateus, sua esposa, e Maroca que vão até a ermida à procura de milagres.
Os três espaços estão em
posição ascendente, pois se inicia em um sertão de crimes e violência, passa pelo espaço indígena onde
se desenvolvem relações de amizade, amor, momentos de vitórias, mas também atingido por
intrigas e inveja, e por fim o espaço ideal, o ascético em que o homem pecador encontra-se
com a divindade e redimi-se. Até mesmo as
mulheres que aparecem nesses três espaços obedecem a essa ascendência: Maroca é
a mulher leviana, provocante e até certo
ponto lasciva; Guaraciaba é a índia gentil e meiga, mas também leviana, pois se deixa levar por um
amor que desde o início era cercado de maus
presságios; e por fim o ideal de mulher, Nossa Senhora, que sem mácula alguma conduz o bandoleiro Gonçalo à redenção.
É importante
observar Gonçalo, personagem
principal, sob o
aspecto dos três diferentes
espaços que ele ocupa no desenvolver da narrativa. O espaço físico, quando Gonçalo ainda é sertanejo; o espaço cultural,
ou de uma nova cultura que não a branca, a indígena, quando Gonçalo está na tribo; e por
fim o espaço “branco” quando Gonçalo se torna
eremita. Esse último pode ser nomeado também de espaço ascético. Nele temos o auge da narrativa, a redenção do homem em
direção a Deus.
É no segundo espaço, o
espaço indígena, que protagonista abandona a “roupagem” de homem bruto do sertão e veste a de um “bom
selvagem” a partir do momento em que passa
a conviver com os índios. Muda o nome Gonçalo, que quer dizer “invulnerável na guerra” (p. 191), para ser Itagiba o “braço de
ferro” (p. 191), ao conquistar a confiança e a admiração de uns: “Itagiba tu és um bravo, e
as façanhas que tens praticado são dignas dos mais
valentes caciques” (p.
191); e o
ódio e o
ciúme de outros
“Naquele mísero estrangeiro, que derrubara a um golpe de seu
tacape... [Inimá] via surgir um temível e poderoso rival a suas ambiciosas esperanças de
amor e poder” (p. 211).
Vale ressaltar
que a figura
do índio neste
romance de Bernardo
Guimarães é representada
como uma “ponte”
entre o sertanejo
sem escrúpulos que
estava sempre “provocando desordens, só para ter ocasião de
ostentar sua bravura e fazer sentir a algum desgraçado o seu braço-de-ferro” e que não
tinha medidas para “seus desvarios e paixões desordenadas”, e o homem santo, devoto e
penitente que “passava o tempo em contínuas penitencias, orações e exercícios piedosos
ocupado em zelar a pequena ermida, que com o auxilio dos fiéis tinha erigido à sua celestial
padroeira” (p. 254).
É na
cultura indígena que
Gonçalo começa a
ser moldado, abranda
seu temperamento, conhece a
pureza e aparentemente dá lugar em seu coração a sentimentos nobres. Dizemos “aparentemente” porque no
desenvolver da narrativa podemos encontrar situações que nos demonstram que seu caráter
ambicioso ainda o dominava e que não se operara
mudança alguma em seu caráter.
Tendo por base as
transformações pelas quais o personagem passa no decorrer da narrativa, poderíamos
dizer que nesta
obra temos uma “narrativa romântica
de transformação”, o protagonista
muda de comportamento à medida que se estabelece em espaços diferentes.
O fato
de Bernardo Guimarães
não colocar no
meio silvícola a
redenção do personagem traz a reflexão de que o autor
mineiro não apenas desloca o silvícola de seu lugar de destaque na literatura brasileira
como também sugere uma outra figura que teria toda possibilidade de ocupar o lugar do índio:
o sertanejo, e sabidamente pode-se dizer que é O ermitão do Muquém a obra que
inaugura essa linha de pensamento bernardino. Mais ainda: que esse procedimento irá influenciar a
assunção do sertanejo na literatura brasileira como sujeito capaz de representar a nossa
nacionalidade.
A obra retrata costumes e
cenas comuns do sertão de Goiás, o próprio Bernardo já abordara o tema sertão, embora com mais
lirismo que na prosa, em poesias como O ermo, Uma filha do campo, Cenas do sertão
e Saudades do sertão do oeste de Minas Gerais, nas quais poetiza com intimidade e beleza
essa região do nosso Brasil, conforme vimos no capítulo anterior.
Além de conhecedor do
sertão, era, sobretudo, um bom observador do espaço a sua volta, o que fazia muito bem em suas
viagens pela região. Como viajante aprendeu muito sobre o modo de vida dos sertanejos, seus
costumes, suas festas e suas tradições. Por isso, como conhecia bem o sertão e seus habitantes,
podia muito bem representar sem muitos idealismos
o sertanejo, que considerava figura adequada para substituir o índio na
literatura brasileira.
O sertanejo, sim, no seu
ponto de vista, tinha todos os pré-requisitos necessários para ocupar o lugar de símbolo nacional. Era
autêntico e expressão viva de uma região tão predominante no país, e tão forte, o sertão.
Esse sertanejo que Bernardo
propunha era fruto de suas observações; ao contrário do
índio que os
românticos supunham conhecer
em suas idealizações e
construções romanceadas,
Bernardo, em suas viagens, falava com os trabalhadores sertanejos, homens rudes
que trabalhavam a
terra, também rude
como eles, travando
com ela uma
luta silenciosa pela
sobrevivência. O próprio sertão era, e ainda
o é, um local de dificultosa sobrevivência,
uma natureza retorcida quase agressiva, e que exige de seu habitante força bruta e muita determinação, um lugar de muitas
histórias de brigas, confusões e rixas tão comuns ao brasileiro; para Bernardo um terreno
fértil pra colher idéias para a construção dos seus romances.
O próprio Bernardo se
considerava um sertanejo, tanto no seu modo de vestir, como na maneira de agir. Enquanto juiz da cidade
goiana de Catalão, como já foi comentado nesta dissertação, Bernardo Guimarães realizou
um ato que foi transgressor para a sua época
– soltou os prisioneiros da cadeia que estavam sob a sua jurisdição. Esse ato
foi transgressor na medida em que ele,
que era o representante do poder local, ao soltar os encarcerados, coloca em questionamento muitas
das regras de interdição e segregação em vigência na sociedade. Assim, ele operou
transgressões não só no plano da literatura, mas enquanto sujeito que vivia numa sociedade
cheia de limites e interdições. Bernardo não era dado
a cerimônias, nem
mesmo quando recebia
personalidades ilustres em
sua casa deixava de expressar o seu lado cômico e
regalado.
O sertanejo, nas palavras
de Antonio Candido sobre Bernardo, “era um bruto de alma boa” (1981, p. 326), e é isso que o autor
mineiro faz na construção de personagens como o Índio Afonso e principalmente Gonçalo.
Longe de ser um “realista”,
no sentido de movimento literário, Bernardo buscava ser verossímil em suas descrições, seus
personagens eram talhados após observações que ele fazia e guardava na memória. O sertanejo
de Bernardo impressiona por isso, ele é verossímil,
muito próximo do sertanejo comum, pois Bernardo Guimarães não o veste com idealizações
tão freqüentes em
seu período, nas
formações discursivas da
estética romântica. Não há nada
de muito exagerado, como comumente se poderia observar no índio de Alencar, excessos de bondade, beleza,
honra e heroísmo.
No sertão preza-se a honra,
e às vezes, como acontece como Índio Afonso, a busca por ela se torna motivo de crimes hediondos. O
heroísmo está na própria sobrevivência, a beleza, muitas das vezes causadora de brigas e
até tragédias, obedece à simplicidade, sem exageros que em alguns autores dão ares de
deuses ao personagem.
Embora alguns críticos
assinalem José de Alencar como o precursor do sertanismo no Brasil, é fato que suas obras O
sertanejo (1875) e O gaúcho (1870), em que aparece a figura do sertanejo como herói, foram
publicadas posteriormente ao romance bernardino O ermitão do Muquém (1858), o que,
obviamente, confere ao autor ouropretano primazia no tratar do assunto (BOSI, 1980, p. 152).
A obra O ermitão de
Muquém é o primeiro romance de Bernardo e talvez por isso reflita tão bem o interesse dele em apresentar
e firmar o sertanejo como símbolo nacional dentro
da literatura brasileira,
desconstruindo e reconstruindo, assim,
os paradigmas estéticos.
O romance deve ser estudado
sob a perspectiva de que não é uma obra indianista, como infelizmente muitos críticos ainda a
enquadram até hoje. Tal erro se deve ao fato de que a obra foi editada em uma época em que o
indianismo era tema único na busca de uma literatura que tivesse a “cor” do Brasil. Mas,
como podemos observar no texto, não há indianismo, mesmo
porque o espaço
indígena é apresentado, como
já dissemos anteriormente, como
um espaço de
transição, uma ponte
entre o homem
pecador e corrompido e sua redenção.
É importante, sobretudo,
reconhecermos nessa narrativa de que forma e com que sutileza e precisão Bernardo Guimarães sugere
essa transição do herói índio, adotado pelos românticos
e questionado por
Bernardo, para o
herói sertanejo, o
qual tinha todos
os artifícios necessários para
assumir seu lugar de destaque em nossa literatura.
Desde o prefácio da obra, o
autor já explica ao leitor que seu romance é baseado em uma “tradição mui real conhecida na província
de Goiás” (p. 133). Bernardo já demonstra sua bagagem de conhecimento, fruto de suas
andanças a cavalo. O fato de apresentar uma lenda que é de conhecimento de muitos já
aproxima o texto do leitor da época; não é apenas uma história que o autor imaginou e
construiu, mas é baseada em uma outra história conhecida por muitos no interior de Goiás.
Uma das primeiras
explicações que Bernardo faz sobre o romance é de que ele tem três
partes muito diferentes
no seu enredamento, os
três espaços que
já assinalei anteriormente. A decisão do autor por abordar
tais espaços foi fruto de uma necessidade que ele encontrou para melhor trabalhar como o
espaço sertanejo em dois momentos, do sertão
bruto e violento e o sertão do ascetismo, é em sua complexidade diferente do
espaço indígena. Para cada fase que o
autor propõe ao seu personagem-título informa que usará “estilos” diferentes, indo do grotesco,
passando pelo lírico e finalizando no sublime.
O primeiro espaço será
aquele em que se “representa a vida dos homens no sertão”. E sobre essa
parte que tratará do espaço sertanejo o autor já dá, de
forma sutil, uma pincelada
sobre sua preferência por esse espacial e cultural, isso porque ele afirma que descreverá o homem sertanejo “de há um século” (p. 133), mas que ao
leitor não será difícil compreendê-lo,
uma vez que não há variações no comportamento desse habitante do sertão, ele é o mesmo de tempos atrás. Como o
próprio Bernardo afirma, no sertão os “costumes
e usanças se conservam inalteráveis durante séculos” (p. 133). O fato de o
autor dizer que o sertão não muda
aumenta sua credibilidade em defender o sertanismo. Ora, na ótica bernardina, se não há variação, se o que
temos é um ambiente e seu habitante que juntos
perpassam tempos sem sofrerem alterações, estaria aqui um legítimo
representante de nosso país. Não caberia
idealização, portanto, na descrição do sertanejo, não há o que idealizar, há, sim, o que observar, descrever
e narrar. E foi observando a vida, os costumes, as tradições religiosas, as brigas do
sertanejo do interior do Brasil que Bernardo construiu um
personagem que nada
tem de idealizado,
mas que é
totalmente identificável nos sertanejos
do Brasil.
O segundo espaço é definido
como aquele onde será apresentada “a vida selvática no seio das florestas” (p.
133). Aqui já delineamos a crítica de Bernardo, desde o prefácio, onde ele já reafirma a sua opinião de que a
idealização do índio é, no seu todo, muito ilusória. O autor adverte que essa segunda
parte será um tanto lírica, o que é necessário, segundo ele, pois “os usos e costumes dos
povos indígenas do Brasil estão envoltos em trevas” (p. 133), ou seja, como pouco se sabe
sobre esses povos, o que é possível fazer é uma idealização, e por vezes muito distante da
realidade brasileira. Em outras palavras, Bernardo Guimarães defende que tudo o que já
tinha sido escrito sobre o índio era pura idealização não havia o que observar faltava
assunto, portanto cabia imaginar.
Nesse sentido, o horizonte
estético do romance de Bernardo Guimarães distancia-se do horizonte de expectativas do leitor e da
crítica literária da época. O posicionamento de Bernardo Guimarães, crítico em relação à
representação literária romântica, afasta-o da formação discursiva do Romantismo e remete ao
que Emile Zola defendeu para a estética realista. Zola
criticava a escrita romântica
pela sua qualidade mestra
de invenção – a imaginação – e propôs que o romance realista
deveria ter como foco estético a observação:
O mais belo elogio que se podia fazer a um romancista,
outrora, era dizer: ‘Ele tem imaginação.’ Hoje
esse elogio seria
visto quase como
uma crítica. É
que todas as
condições do romance mudaram. A imaginação já não é a qualidade
mestra do romancista. (...) Visto que a imaginação não é a qualidade mestra do romancista, o que,
então, a substitui? É preciso sempre uma qualidade mestra. Hoje a qualidade mestra do romancista
é o senso do real. (...) O senso do real é sentir a natureza e representá-la tal como ela é.
Todavia, ver não é tudo, é preciso reproduzir. É por isso que, depois do senso do real, há a personalidade do
escritor. Um grande romancista deve ter o senso do real e a expressão pessoal (ZOLA, 1995, p. 23-8).
Nessa proposta do pai do
naturalismo, tem-se clara a manifestação daquilo que seria defendido por Bernardo Guimarães: no
lugar da imaginação, a observação para a captação do senso do real.
O fato
de Bernardo Guimarães
querer fazer com
que o leitor
perceba sua não idealização
do índio é justificável, pois construir sua história carece de muita imaginação
ou mesmo invenção, o que representa uma
critica à imagem do silvícola construída pelos românticos que adotavam o indianismo como
temática. Ora, se “sua [do povo indígena] história é quase nenhuma” (p. 133) o que é
possível fazer, segundo o autor, é simplesmente imaginar. O que há sobre o índio, segundo
Bernardo, é puro idealismo, vago e ficcional.
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Fonte:
Fonte:
Poliana Gonçalves Lima: “A visão bernardina do
índio n'O Ermitão do Muquém”. Dissertação (Mestrado)-Universidade
Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2009.
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