20/11/2013

O Ermitão do Muquém, de Bernardo Guimarães

 Bernardo Guimaraes - O Ermitao do Muquem - Iba Mendes
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O Ermitão do Muquém: O Sertanejo sobrepuja o Índio


O romance O ermitão do Muquém (1972) inaugura em 1858 o regionalismo em nossa literatura. É um romance singelo de narrativa fascinante, em virtude das inúmeras  aventuras e peripécias do personagem. Inicia-se em 1ª pessoa, indo depois para 3ª pessoa  até o final da narrativa, há a presença do espaço urbano e do campo, sendo que a maior  parte da narrativa acontece no meio da floresta. São três espaços que devem ser percebidos  para melhor entendermos o personagem: o espaço do sertão, de discórdias e rixas na cidade  de   Vila  Boa;   o  espaço  indígena  na   floresta;   e  novamente  o  espaço   do  sertão,  só  que  ascético.

Os personagens do primeiro espaço são Gonçalo, o protagonista; Maria, ou Maroca,  moça de comportamento leviano e causador da briga que resulta no primeiro assassinato da  trama, de Reinaldo, o namorado de Maroca, que é morto por Gonçalo em um duelo. Além  desses temos ainda no espaço urbano de Vila Boa o mestre Mateus e sua esposa, donos da  casa onde acontece uma festa no início da narrativa.

No espaço indígena temos Gonçalo, nessa fase com o nome de Itagiba; Guaraciaba,  a índia filha do cacique que se apaixona por Gonçalo; Inimá, o noivo de Guaraciaba, que  ao ver-se preterido vinga-se; Oriçanga,  o cacique  da tribo;  Andiara o pajé da tribo, e  Anhanbira, o irmão de Guaraciaba, que aparece apenas no final da trama.

No   terceiro   espaço   temos   novamente   Gonçalo,   mas   agora   conhecido   como   “o  ermitão”, mestre Mateus, sua esposa, e Maroca que vão até a ermida à procura de milagres.

Os três espaços estão em posição ascendente, pois se inicia em um sertão de crimes  e violência, passa pelo espaço indígena onde se desenvolvem relações de amizade, amor,  momentos de vitórias, mas também atingido por intrigas e inveja, e por fim o espaço ideal,  o ascético em que o homem pecador encontra-se com a divindade e redimi-se. Até mesmo  as mulheres que aparecem nesses três espaços obedecem a essa ascendência: Maroca é a  mulher leviana, provocante e até certo ponto lasciva; Guaraciaba é a índia gentil e meiga,  mas também leviana, pois se deixa levar por um amor que desde o início era cercado de  maus presságios; e por fim o ideal de mulher, Nossa Senhora, que sem mácula alguma  conduz o bandoleiro Gonçalo à redenção.

É   importante   observar   Gonçalo,   personagem   principal,   sob   o   aspecto   dos   três  diferentes espaços que ele ocupa no desenvolver da narrativa. O espaço físico, quando  Gonçalo ainda é sertanejo; o espaço cultural, ou de uma nova cultura que não a branca, a  indígena, quando Gonçalo está na tribo; e por fim o espaço “branco” quando Gonçalo se  torna eremita. Esse último pode ser nomeado também de espaço ascético. Nele temos o  auge da narrativa, a redenção do homem em direção a Deus.

É no segundo espaço, o espaço indígena, que protagonista abandona a “roupagem”  de homem bruto do sertão e veste a de um “bom selvagem” a partir do momento em que  passa a conviver com os índios. Muda o nome Gonçalo, que quer dizer “invulnerável na  guerra” (p. 191), para ser Itagiba o “braço de ferro” (p. 191), ao conquistar a confiança e a  admiração de uns: “Itagiba tu és um bravo, e as façanhas que tens praticado são dignas dos  mais   valentes   caciques”   (p.   191);   e   o   ódio   e   o   ciúme   de   outros   “Naquele   mísero  estrangeiro, que derrubara a um golpe de seu tacape... [Inimá] via surgir um temível e  poderoso rival a suas ambiciosas esperanças de amor e poder” (p. 211).

Vale   ressaltar   que   a   figura   do   índio   neste   romance   de   Bernardo   Guimarães   é  representada   como   uma   “ponte”   entre   o   sertanejo   sem   escrúpulos   que   estava   sempre  “provocando desordens, só para ter ocasião de ostentar sua bravura e fazer sentir a algum  desgraçado o seu braço-de-ferro” e que não tinha medidas para “seus desvarios e paixões  desordenadas”, e o homem santo, devoto e penitente que “passava o tempo em contínuas  penitencias, orações e exercícios piedosos ocupado em zelar a pequena ermida, que com o  auxilio dos fiéis tinha erigido à sua celestial padroeira” (p. 254).

É   na   cultura   indígena   que   Gonçalo   começa   a   ser   moldado,   abranda   seu  temperamento, conhece a pureza e aparentemente dá lugar em seu coração a sentimentos  nobres. Dizemos “aparentemente” porque no desenvolver da narrativa podemos encontrar  situações que nos demonstram que seu caráter ambicioso ainda o dominava e que não se  operara mudança alguma em seu caráter.

Tendo por base as transformações pelas quais o personagem passa no decorrer da  narrativa,   poderíamos   dizer   que   nesta   obra   temos   uma   “narrativa   romântica   de  transformação”, o protagonista muda de comportamento à medida que se estabelece em  espaços diferentes.

O   fato   de   Bernardo   Guimarães   não   colocar   no   meio   silvícola   a   redenção   do  personagem traz a reflexão de que o autor mineiro não apenas desloca o silvícola de seu  lugar de destaque na literatura brasileira como também sugere uma outra figura que teria  toda possibilidade de ocupar o lugar do índio: o sertanejo, e sabidamente pode-se dizer que  é O ermitão do Muquém a obra que inaugura essa linha de pensamento bernardino. Mais  ainda: que esse procedimento irá influenciar a assunção do sertanejo na literatura brasileira  como sujeito capaz de representar a nossa nacionalidade.

A obra retrata costumes e cenas comuns do sertão de Goiás, o próprio Bernardo já  abordara o tema sertão, embora com mais lirismo que na prosa, em poesias como O ermo,  Uma filha do campo, Cenas do sertão e Saudades do sertão do oeste de Minas Gerais,  nas quais poetiza com intimidade e beleza essa região do nosso Brasil, conforme vimos no  capítulo anterior.

Além de conhecedor do sertão, era, sobretudo, um bom observador do espaço a sua  volta, o que fazia muito bem em suas viagens pela região. Como viajante aprendeu muito  sobre o modo de vida dos sertanejos, seus costumes, suas festas e suas tradições. Por isso,  como conhecia bem o sertão e seus habitantes, podia muito bem representar sem muitos  idealismos o sertanejo, que considerava figura adequada para substituir o índio na literatura  brasileira.

O sertanejo, sim, no seu ponto de vista, tinha todos os pré-requisitos necessários  para ocupar o lugar de símbolo nacional. Era autêntico e expressão viva de uma região tão  predominante no país, e tão forte, o sertão.

Esse sertanejo que Bernardo propunha era fruto de suas observações; ao contrário  do   índio   que   os   românticos   supunham   conhecer   em   suas   idealizações   e   construções  romanceadas, Bernardo, em suas viagens, falava com os trabalhadores sertanejos, homens  rudes   que   trabalhavam   a   terra,   também   rude   como   eles,   travando   com   ela   uma   luta  silenciosa pela sobrevivência. O próprio sertão era, e ainda o é, um local de dificultosa  sobrevivência, uma natureza retorcida quase agressiva, e que exige de seu habitante força  bruta e muita determinação, um lugar de muitas histórias de brigas, confusões e rixas tão  comuns ao brasileiro; para Bernardo um terreno fértil pra colher idéias para a construção  dos seus romances.

O próprio Bernardo se considerava um sertanejo, tanto no seu modo de vestir, como  na maneira de agir. Enquanto juiz da cidade goiana de Catalão, como já foi comentado  nesta dissertação, Bernardo Guimarães realizou um ato que foi transgressor para a sua  época – soltou os prisioneiros da cadeia que estavam sob a sua jurisdição. Esse ato foi  transgressor na medida em que ele, que era o representante do poder local, ao soltar os  encarcerados, coloca em questionamento muitas das regras de interdição e segregação em  vigência na sociedade. Assim, ele operou transgressões não só no plano da literatura, mas  enquanto sujeito que vivia numa sociedade cheia de limites e interdições. Bernardo não era  dado   a   cerimônias,   nem   mesmo   quando   recebia   personalidades   ilustres   em   sua   casa  deixava de expressar o seu lado cômico e regalado.

O sertanejo, nas palavras de Antonio Candido sobre Bernardo, “era um bruto de  alma boa” (1981, p. 326), e é isso que o autor mineiro faz na construção de personagens  como o Índio Afonso e principalmente Gonçalo.

Longe de ser um “realista”, no sentido de movimento literário, Bernardo buscava  ser verossímil em suas descrições, seus personagens eram talhados após observações que  ele fazia e guardava na memória. O sertanejo de Bernardo impressiona por isso, ele é  verossímil, muito próximo do sertanejo comum, pois Bernardo Guimarães não o veste com  idealizações   tão   freqüentes   em   seu   período,   nas   formações   discursivas   da   estética  romântica. Não há nada de muito exagerado, como comumente se poderia observar no  índio de Alencar, excessos de bondade, beleza, honra e heroísmo.

No sertão preza-se a honra, e às vezes, como acontece como Índio Afonso, a busca  por ela se torna motivo de crimes hediondos. O heroísmo está na própria sobrevivência, a  beleza, muitas das vezes causadora de brigas e até tragédias, obedece à simplicidade, sem  exageros que em alguns autores dão ares de deuses ao personagem.

Embora alguns críticos assinalem José de Alencar como o precursor do sertanismo  no Brasil, é fato que suas obras O sertanejo (1875) e O gaúcho (1870), em que aparece a  figura do sertanejo como herói, foram publicadas posteriormente ao romance bernardino O  ermitão do Muquém (1858), o que, obviamente, confere ao autor ouropretano primazia  no tratar do assunto (BOSI, 1980, p. 152).

A obra O ermitão de Muquém é o primeiro romance de Bernardo e talvez por isso  reflita tão bem o interesse dele em apresentar e firmar o sertanejo como símbolo nacional  dentro   da   literatura   brasileira,   desconstruindo   e   reconstruindo,   assim,   os   paradigmas  estéticos.

O romance deve ser estudado sob a perspectiva de que não é uma obra indianista,  como infelizmente muitos críticos ainda a enquadram até hoje. Tal erro se deve ao fato de  que a obra foi editada em uma época em que o indianismo era tema único na busca de uma  literatura que tivesse a “cor” do Brasil. Mas, como podemos observar no texto, não há  indianismo,   mesmo   porque   o   espaço   indígena   é   apresentado,   como   já   dissemos  anteriormente,   como   um   espaço   de   transição,   uma   ponte   entre   o   homem   pecador   e  corrompido e sua redenção.

É importante, sobretudo, reconhecermos nessa narrativa de que forma e com que  sutileza e precisão Bernardo Guimarães sugere essa transição do herói índio, adotado pelos  românticos  e   questionado   por  Bernardo,  para   o  herói  sertanejo,  o  qual   tinha   todos   os  artifícios necessários para assumir seu lugar de destaque em nossa literatura.

Desde o prefácio da obra, o autor já explica ao leitor que seu romance é baseado em  uma “tradição mui real conhecida na província de Goiás” (p. 133). Bernardo já demonstra  sua bagagem de conhecimento, fruto de suas andanças a cavalo. O fato de apresentar uma  lenda que é de conhecimento de muitos já aproxima o texto do leitor da época; não é  apenas uma história que o autor imaginou e construiu, mas é baseada em uma outra história  conhecida por muitos no interior de Goiás.

Uma das primeiras explicações que Bernardo faz sobre o romance é de que ele tem  três   partes   muito   diferentes   no   seu   enredamento,   os   três   espaços   que   já   assinalei  anteriormente. A decisão do autor por abordar tais espaços foi fruto de uma necessidade  que ele encontrou para melhor trabalhar como o espaço sertanejo em dois momentos, do  sertão bruto e violento e o sertão do ascetismo, é em sua complexidade diferente do espaço  indígena. Para cada fase que o autor propõe ao seu personagem-título informa que usará  “estilos” diferentes, indo do grotesco, passando pelo lírico e finalizando no sublime.

O primeiro espaço será aquele em que se “representa a vida dos homens no sertão”. E sobre essa parte  que tratará  do espaço sertanejo o autor já dá, de forma  sutil,  uma  pincelada sobre sua preferência por esse espacial e cultural, isso porque ele afirma que  descreverá o homem sertanejo          “de há um século” (p. 133), mas que ao leitor não será  difícil compreendê-lo, uma vez que não há variações no comportamento desse habitante do  sertão, ele é o mesmo de tempos atrás. Como o próprio Bernardo afirma, no sertão os  “costumes e usanças se conservam inalteráveis durante séculos” (p. 133). O fato de o autor  dizer que o sertão não muda aumenta sua credibilidade em defender o sertanismo. Ora, na  ótica bernardina, se não há variação, se o que temos é um ambiente e seu habitante que  juntos perpassam tempos sem sofrerem alterações, estaria aqui um legítimo representante  de nosso país. Não caberia idealização, portanto, na descrição do sertanejo, não há o que  idealizar, há, sim, o que observar, descrever e narrar. E foi observando a vida, os costumes,  as tradições religiosas, as brigas do sertanejo do interior do Brasil que Bernardo construiu  um   personagem   que   nada   tem   de   idealizado,   mas   que   é   totalmente   identificável   nos  sertanejos do Brasil.

O segundo espaço é definido como aquele onde será apresentada “a vida selvática no seio das florestas” (p. 133). Aqui já delineamos a crítica de Bernardo, desde o prefácio,  onde ele já reafirma a sua opinião de que a idealização do índio é, no seu todo, muito  ilusória. O autor adverte que essa segunda parte será um tanto lírica, o que é necessário,  segundo ele, pois “os usos e costumes dos povos indígenas do Brasil estão envoltos em  trevas” (p. 133), ou seja, como pouco se sabe sobre esses povos, o que é possível fazer é  uma idealização, e por vezes muito distante da realidade brasileira. Em outras palavras,  Bernardo Guimarães defende que tudo o que já tinha sido escrito sobre o índio era pura  idealização não havia o que observar faltava assunto, portanto cabia imaginar.

Nesse sentido, o horizonte estético do romance de Bernardo Guimarães distancia-se  do horizonte de expectativas do leitor e da crítica literária da época. O posicionamento de  Bernardo Guimarães, crítico em relação à representação literária romântica, afasta-o da  formação discursiva do Romantismo e remete ao que Emile Zola defendeu para a estética  realista.  Zola  criticava  a escrita  romântica  pela  sua qualidade  mestra  de invenção  – a  imaginação – e propôs que o romance realista deveria ter como foco estético a observação:

O mais belo elogio que se podia fazer a um romancista, outrora, era dizer: ‘Ele tem imaginação.’  Hoje   esse   elogio   seria   visto   quase   como   uma   crítica.   É   que   todas   as   condições   do   romance  mudaram. A imaginação já não é a qualidade mestra do romancista. (...) Visto que a imaginação não  é a qualidade mestra do romancista, o que, então, a substitui? É preciso sempre uma qualidade  mestra. Hoje a qualidade mestra do romancista é o senso do real. (...) O senso do real é sentir a  natureza e representá-la tal como ela é. Todavia, ver não é tudo, é preciso reproduzir. É por isso que,  depois do senso do real, há a personalidade do escritor. Um grande romancista deve ter o senso do  real e a expressão pessoal (ZOLA, 1995, p. 23-8).

Nessa proposta do pai do naturalismo, tem-se clara a manifestação daquilo que  seria defendido por Bernardo Guimarães: no lugar da imaginação, a observação para a  captação do senso do real.

O   fato   de  Bernardo  Guimarães  querer   fazer  com   que  o  leitor  perceba  sua  não  idealização do índio é justificável, pois construir sua história carece de muita imaginação  ou mesmo invenção, o que representa uma critica à imagem do silvícola construída pelos  românticos que adotavam o indianismo como temática. Ora, se “sua [do povo indígena]  história é quase nenhuma” (p. 133) o que é possível fazer, segundo o autor, é simplesmente  imaginar. O que há sobre o índio, segundo Bernardo, é puro idealismo, vago e ficcional.
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Fonte:
Poliana Gonçalves Lima: “A visão bernardina do índio n'O Ermitão do Muquém”. Dissertação (Mestrado)-Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2009.

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