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O cemitério dos vivos e a distinção
entre autor e personagem no campo estético
Em O
cemitério dos vivos, é narrada a desafortunada vida de Vicente Mascarenhas,
personagem que, devido às adversidades da vida social, à sua introspectividade
e ao desarticulado modo como reage a tudo, mergulha no alcoolismo e acaba por ser
internado por duas vezes, num hospício. É evidente que esse enredo mostra-se
contíguo ao que viveu Lima Barreto. Todavia, as noções relacionadas a autor e
personagem, e até mesmo o próprio texto literário em questão, auxiliam a
perceber que não se trata simplesmente de uma autobiografia.
Logo
no início da narrativa, o assunto alcoolismo é suscitado. A sociedade
representada no texto via a dipsomania como uma espécie de patologia
hereditária. O trecho a seguir não pode ser visto como uma reprodução literal
do pensamento da pessoa de Lima Barreto, e sim como um posicionamento
particular da consciência por ele criada, o narrador Vicente Mascarenhas, que,
embora possua características semelhantes às do autor, não é, sob pena de estar
sendo reducionista e incoerente na análise literária, o homem que redige o
texto:
Demais,
um vício que vem, em geral, hábito individual, como pode de fato impressionar o
aparelho das gerações, a não ser para inutilizá-lo, até o ponto de determinar
modificações transmissíveis pelas células próprias à fecundação? Por que
mecanismo iam essas modificações transformar-se em caracteres adquiridos e
capazes de se constituírem em herança? (BARRETO, 2010, p. 151).
Há,
no excerto, um deliberado questionamento do narrador-personagem Vicente. Este
age com uma consciência específica que atua no mundo interior do trabalho
estético e a ele deve estar associado. As palavras do enunciador podem até
estar em consonância com o pensamento do autor. Em todo caso, isso não é o
suficiente para dizer que o mulato carioca, por conta da execração discursiva
demonstrada pela realidade na qual estava situado, achou por bem mostrar-se
dentro de um livro. Essa consciência evidencia uma possibilidade de identificar
traços que sejam até consideráveis entre autor e personagem, mas não é Lima
Barreto falando de si mesmo.
A
análise aqui feita não ignora totalmente a semelhança aparente entre a
narrativa criada em O cemitério dos vivos e a realidade pela qual passou
o autor da obra. Apesar disso, e por isso mesmo, é que trabalhamos no sentido
de tornar claro que o texto escrito é uma criação, iniciativa estética
subjetiva, cuja realidade é apresentada de maneira própria. É este o ponto
fulcral de nossa observação. Há um matiz significativo que diferencia o
indivíduo que sofreu na pele o preconceito, um segundo, responsável por
configurar literária e melancolicamente a questão do preconceito (essa
consciência artística já não é matéria da vida real) e o personagem que trata
das agruras vivenciadas no hospício. Três consciências que não podem se
confundir.
Nesse
sentido, poder-se-ia insistir na afirmação de que, em determinados momentos, é
o próprio Lima Barreto quem parece “falar” no livro:
Sou,
e hoje posso afirmar sem temor, sujeito a certas impressões duradouras,
tenazes, que me açodem todos os dias à lembrança, por estas ou aquelas
circunstâncias aparentemente sem relação com o fundo delas. Não sei nunca
porque me ficaram e, as mais das vezes, não posso verificar o instante em que
elas me ficaram. (BARRETO, 2010, p. 153).
É de
se ver que o discurso apresentado é uma construção subjetiva, elaborada por um
autor-criador, que, utilizando-se da atividade estética, cria um personagem
detentor de uma consciência própria. O discurso, portanto, é uma objetivação da
consciência do personagem. O aspecto dessa consciência, no caso, de
narrador-personagem (relacionando, obviamente, à narrativa de O cemitério
dos vivos) expressa uma afirmação particular, fruto da influência do outro,
isto é, do meio social. Não é, mais uma vez sustentamos, uma cópia de Lima
Barreto, uma transcrição da vida para as letras. Trata-se de um procedimento particular
de uma categoria literária, o personagem, que manifesta sua percepção acerca
dos juízos de valores (vários discursos axiológicos) proferidos pelo outro e
constrói, digamos assim, em si uma ideia a partir dos outros para consigo.
A
leitura de Faraco acerca da perspectiva de Bakthin no que compete ao conteúdo
na obra estética permite-nos uma visão salutar na relação entre a criação
artística e a vida exterior, no caso, a do autor:
Segundo
ele [Bakthin], o conteúdo não deve ser entendido como uma ideia, um referente,
um tema, um conceito. É antes o modo como são ordenados pelo autor-criador os
constituintes éticos e cognitivos recortados (isolados), transpostos para o
plano estético e consumado numa nova unidade de sentidos. (FARACO, 2009, p.
104).
Partindo
desse princípio, no momento em que os prováveis fatos da vida do próprio autor,
no caso, Lima Barreto, são recortados e abordados no plano estético, eles
passam por uma reconfiguração, pois já não são os mesmos da vida real e serão
contemplados agora em outro plano.
No
trabalho de construção artística, reside o fato de que há um elemento, uma
base, responsável por permitir uma associação entre a arte e tantas outras
formas sociais. Abordar questões relacionadas à vida é uma possibilidade que,
no mínimo, não revela nenhuma estranheza no entendimento de um material
estético. Entretanto, as diferenças concernentes aos constituintes
arquitetônicos de uma produção ficcional, por exemplo, em comparação com a
realidade objetiva passível de observação devem ser consideradas, haja vista
esta não ser, de todo, equivalente àqueles.
Para
Volochinov/Bakhtin (2012, p. 3):
a
comunicação artística deriva da base comum a ela e a outras formas sociais,
mas, ao mesmo tempo, ela retém, como todas as outras formas, sua própria
singularidade; ela é um tipo especial de comunicação, possuindo uma forma
própria peculiar. Compreender esta forma especial de comunicação realizada e
fixada no material de uma obra de arte – eis aí precisamente a tarefa da poética
sociológica.
O
fruto da elaboração estética é composto em situações particulares e provido de
características estritamente pertinentes ao campo da atividade artística
humana, sendo esta um ato subjetivo e singular não apenas por conta dos fatores
circunstanciais que a englobam, mas também pela própria essência da atividade
em si. Distinguir os fatores sociais dos componentes intrínsecos a uma obra,
que, apesar disso, podem remeter a uma forma social da realidade objetiva,
afasta a equivocada transposição do plano artístico para o real ou deste para
aquele.
Alertar-se
para uma leitura cautelosa em que determinadas peculiaridades composicionais da
obra são percebidas dá ao entendimento do texto literário, enquanto material
estético, uma profundidade técnica que não subsume, em hipótese alguma, a
perspectiva subjetiva e contemplativa da produção.
O
cemitério dos vivos está perpassado
por aspectos que entrecruzam fatos análogos aos da vida real de Lima Barreto e
situações ficcionais arquitetadas.
Contudo,
é justamente por serem apenas análogas às situações da vida que não se pode
atribuir um caráter documental à narrativa de Vicente:
Como
ia dizendo, porém, continuei a emprestar livros a dona Efigênia e mesmo lia
alguns dos que emprestava, para poder conversar com ela sobre as leituras.
Assim, pouco a pouco, fui vencendo o fingido desprezo que tinha pela
literatura; e, quase sem sentir, dei em me interessar pelas suas coisas. Deixei
aquela falsa e tola atitude positiva de só falar em Shakespeare, Dante e
Molière; e falei sem fingido pudor em outros autores, alguns menores, mas
alguns tão grandes quanto aqueles. (BARRETO, 2010, p. 163)
Quanto
ao trecho supracitado, percebemos uma atitude confessada pelo
narrador-personagem. No mais das contas, esboça uma crítica à postura do senso
comum de prestigiar apenas os cânones literários. Esse trecho mostra uma ideia
estabelecida pelo autor-criador e não pelo autor-pessoa, Lima Barreto. Há algo
de mais abstrato. É um procedimento estético da consciência de um autor-criador
que possui uma visão apurada em relação ao personagem. Não significa, pois, uma
“vingança” do escritor carioca contra os indivíduos do mundo exterior, da vida
propriamente dita, que não o liam.
Até
mesmo o próprio aspecto da loucura deve ser visto em O cemitério dos vivos com
certa ressalva. Citemos essa situação marcadamente significativa como algo que
se configura e tem resultados diferentes de acordo com cada plano de
profundidade aspectual em que se observa. A esses planos correspondem as três
noções já apresentadas, isto é, o autor-pessoa, item não considerado como
intrínseco à obra; o autor-criador, plano cuja consciência enforma
arquitetonicamente a obra; e o personagem, instância verossímil da obra
literária em si. No livro, podemos afirmar que a forma com que Vicente relata a
repugnância do meio social, no que diz respeito aos estereótipos, por exemplo,
os estrangeiros e os rotulados na relação cor e condição das faculdades
mentais, revela um eu indivíduo manifestando uma ideia a partir de suas
próprias impressões. Isso não é necessariamente uma expressão do pensamento de
Lima Barreto colocado no papel:
A
polícia, não sei como porquê, adquiriu a mania das generalizações, e as mais
infantis. Suspeita de todo o sujeito estrangeiro com nome arrevesado, assim os
russos, os polacos, romanos são para ela forçosamente caftens; todo cidadão de
cor há de ser por força um malandro; e todos os loucos hão de ser por força
furiosos e só transportados em carros blindados. (BARRETO, 2010, p. 178).
Ora,
não está sendo dito aqui com esse trecho, e na perspectiva argumentativa
defendida, que Lima Barreto não tenha deixado transparecer nada de seu
sofrimento de vida em sua obra. Muitos são os textos que englobam situações
pelas quais o homem Lima Barreto passou (o conto Como o “homem” chegou,
por exemplo, aborda esse rigor e desprezo da polícia em relação aos insanos).
Todavia, é mais válido dizer que a consciência estética do mulato enquanto
escritor elabora personagens de si mesmo (e aí já não o é mais) para
representar analogamente fatos que, mesmo sendo redundante, é importante dizer,
na realidade, foram vividos por uma pessoa, mas na literatura eles são uma
manifestação simbólica cuja base é a vida real.
A
entrada no hospício por conta do alcoolismo e das alucinações deu à consciência
criadora de Lima Barreto uma profundidade perceptiva dos sofrimentos humanos. A
consequência para tal fato refletiu-se figurativamente numa espécie de
construção romântica do sofrimento e da dor, claro, num sentido de
introspectividade e subjetivismo melancólico. Essa reação, porém, não se
manifesta no texto como sendo do dipsomaníaco delirante, até porque não é, e
sim do personagem que sente as dores e o sofrimento da reclusão:
Em
tal estado de espírito, penetrado de um profundo niilismo intelectual, foi que
penetrei no Hospício, pela primeira vez; e o grosso espetáculo doloroso da
loucura mais arraigou no espírito essa concepção de um mundo brumoso, quase
mergulhado nas trevas, sendo unicamente perceptível o sofrimento, a dor, a
miséria, e a tristeza a envolver tudo, tristeza que nada pode espantar ou
reduzir. Entretanto, pareceu-me que ver a vida assim era vê-la bela, pois
acreditei que só a tristeza, só o sofrimento, só a dor faziam com que nós nos
comunicássemos com o Logos, com a Origem das Coisas e de lá trouxéssemos alguma
coisa transcendente e divina. Shelley, se bem me recordo já dizia: “os nossos
mais belos contos são aqueles que falam de pensamentos tristes”. (BARRETO,
2010, p. 189).
A
ênfase nos termos de carga semântica negativa, sofrimento, dor, miséria
e tristeza, pode até revelar uma semelhança com o estado de espírito
no qual o escritor se encontrava. Mesmo assim, atribuir a ele o discurso do
personagem que perdera a esposa e acabara num hospício é confundir a existência
material com a figuração literária.
Trazer
à tona outra consideração de Volochinov/Bakhtin contribui no esclarecimento da
estratégia organizacional de escolha dos termos utilizados pelo autor do texto:
Julgamentos
de valor, antes de tudo, determinam a seleção de palavras do autor e a
recepção desta seleção (a co-seleção) pelo ouvinte. O poeta, afinal, seleciona
palavras não do dicionário, mas do contexto da vida onde as palavras forma
embebidas e se impregnaram de valor. (VOLOCHINOV/BAKHTIN, 2012, p. 10).
Ora,
se o contexto significativo em que as palavras adquiriram especial valor é
importante para delimitar, até certo ponto, que termo vai ou não vai ser
escrito num texto, é possível inferir a intensa carga de verossimilhança dos
termos selecionados por Lima Barreto para representar, e não retratar, o seu
sofrimento. Dessa forma, esse recurso intencionalmente utilizado não tem um fim
em si mesmo, no sentido de apenas “expressar” os sentimentos do escrevente, e
sim de suscitar determinada empatia do interlocutor, a partir de uma
sensibilidade estética arquitetonicamente elaborada.
Dentre
os fatores voltados à distinção entre autor e personagem no texto de O
cemitério dos vivos, faz-se necessário estabelecer uma reflexão a partir
das observações onomásticas contidas na obra, com foco específico no personagem
central da trama.
De
início, é óbvia a similitude entre o nome do personagem responsável por
vivenciar as desventuras da narrativa, Vicente Mascarenhas, e a rua em que Lima
Barreto morava, Major Mascarenhas, no tempo. Considerar esse recurso de
elaboração como um procedimento estético de aproveitamento da realidade, de
reconfiguração singular de um elemento da vida, não envolve em si a ideia de
transmissão literal de um campo, o do mundo, para outro, o da arte.
Ao
confrontarmos o texto editado de O cemitério dos vivos com o manuscrito,
notaremos suposta proximidade entre Lima Barreto e o personagem por ele criado.
No decorrer das páginas, essa proximidade é um ponto dos mais problemáticos,
por assim dizer, do estudo.
Há
uma oscilação entre os possíveis nomes do protagonista da narrativa. O nome de
Vicente é substituído, em determinados momentos, pelo de Azevedo (p. 160 e
225), Fortunato (p. 192), Flamínio (p. 198, 209 e 231), Torres (p. 201), César
Flamínio (p. 229), Flamínio Torres (p. 249) e, um dos casos mais emblemáticos,
há a colocação, conforme o manuscrito, do próprio nome de Lima Barreto (p.
235), que depois seria substituído por Flamínio Azevedo.
A
modificação dos substantivos não explicita, de forma alguma, uma extensão
literal da vida de Lima Barreto. O processo de elaboração literária possibilita
ao autor uma atribuição onomástica que pode não ser aleatória, e, no mais das
vezes não o é, muito pelo contrário, contribui mesmo como uma espécie de pista,
isto é, de recurso valioso para o entendimento da trama.
No
caso da obra analisada, a disparidade na nomenclatura dos personagens não
permite dizer nada sobre o autor, principalmente no momento em que Lima Barreto
cita o próprio nome. Nesse instante, não é incoerente afirmar uma provável
compenetração do autor-criador no processo de elaboração e até mesmo um grau
acentuado de verossimilhança que resulta numa quase suspensão da descrença,
convertendo-se, pois, num jogo confuso no que respeita à criação do personagem.
Retomar
as palavras de Bakthin faz-se considerável na ilustração da maneira como
criador da obra estética e personagem podem ser confundidos no todo da obra.
Isso, no entanto, não exclui a diferença entre eles:
Entre
todos os valores artísticos, o biográfico é o menos transgrediente à
autoconsciência; por isso, na biografia o autor está mais próximo do herói
desta, os dois como que podem trocar de lugar, e por esta razão é possível a
coincidência pessoal entre personagem e autor além dos limites do todo
artístico. (BAKTHIN, 2010, p. 139).
Apesar
disso, é de se ver que, mesmo se Lima Barreto tivesse escrito toda a obra com o
seu próprio nome, aprofundamos mais ainda a percepção, ainda que ele tivesse
recontado toda a sua história, com os devidos participantes, pormenores e sem
contribuição de elementos ficcionais, tudo isso equivaleria a uma projeção do
autor vista a seus olhos. Em outras palavras, ele criaria um personagem para
interpretá-lo, porém, essa interpretação seria uma manifestação particular da
atividade estética, a autobiografia seria, no máximo, um constituinte do
processo de elaboração do enredo, nunca, sob hipótese de se estar travando
conflito com campos diferentes – o da vida e o da arte –, algum apreciador poderia
inferir que o homem estendesse sua vida social no papel.
O
trabalho aqui realizado não visa a uma cabal desconsideração dos elementos
semelhantes em se tratando da vida de Lima Barreto e de sua obra O cemitério
dos vivos. O foco da observação, no entanto, gira em torno da ideia de que,
ainda que sejam marcadamente fortes tais semelhanças entre o homem e o livro
por ele escrito, não há como considerar a criação estética como mera reprodução
autobiográfica do autor.
O
vivenciamento do mundo social e a gama de valores axiológicos, pelos quais o
autor Lima Barreto passou, são significativos para a constituição da sua
própria personalidade e também, de certa forma, para a construção do material
estético ao qual se propôs. Apesar disso, é de se ver que, no processo de
criação artística, o plano estético assume uma posição na qual os
acontecimentos da vida real serão trabalhados de forma a construir sentidos
específicos, cujos inúmeros propósitos estão muito além da simples ideia de
relato.
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Fonte:
SILVA, Tiago Nascimento. O cemitério dos vivos e a distinção entre autor e personagem no campo estético. Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 2, n. 1, p. 108-119, abr. 2013.
Fonte:
SILVA, Tiago Nascimento. O cemitério dos vivos e a distinção entre autor e personagem no campo estético. Miguilim – Revista Eletrônica do Netlli, Crato, v. 2, n. 1, p. 108-119, abr. 2013.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEstupenda elucidação etimiológica!
ResponderExcluirAbraços sinceros, Alécio.