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A estética da velhice
Para
Augusto Meyer (1958,
p. 50) havia
no Memorial uma “indulgência crepuscular” que tornava a obra um “livro
cinzento” e morto:
Mas a
indulgência também é sonolência, o abandono parece cansaço. Livro
cinzento, livro morto,
livro bocejado e
não escrito. Aires? Fidélia? Tristão e o casal Aguiar? Só vejo uma
personagem – o Tédio. A “letargia
indefinível” [...] tomou
conta do velho
Joaquim Maria definindo-se. É agora um imenso bocejo, capaz
de engolir o mundo.
Comparado
às demais obras de Machado de Assis, o Memorial, à primeira vista, favorece
esse tipo de leitura,
a qual é
partilhada por muitos
críticos. Márcia Lígia Guidim,
pautando-se nesse rico filão da crítica brasileira, postula que essa obra é “mal-estruturada”:
Apesar da
valorização exagerada de
Carolina como leitora
crítica na produção machadiana, considera-se que o Memorial
de Aires, iniciado após sua morte,
constitui-se numa produção arrastada e penosa, frente a um quadro rotineiro de tristeza, licenças e
consciência das restrições fisiológicas
da velhice. Embora parte da crítica considere o tom desse romance
um equilíbrio machadiano
perfeito (o que
quer que “equilíbrio” queira dizer...)
a maior parte dos críticos
(Mário Matos, Eugênio
Gomes, Mário de
Andrade) vê o
romance como obra crepuscular,
melancólica e mal-estruturada. (2000, p. 24).
Não
pretendo, neste trabalho,
defender a tese
de que o Memorial seja
a obra prima de
Machado de Assis; considero que
esse livro, em
termos de organização estrutural, nada deve às obras anteriores. O
fato de ser um livro sobre a velhice (narrado por um narrador velho e escrito por um
escritor velho) não significa, necessariamente, que a obra também seja velha. A
novidade desse livro, aliás, foi percebida, quase que intuitivamente, por Lúcia Miguel Pereira:
Agora, uma
grande conformidade lhe vinha e lhe revelava, na última hora, um dos segredos da vida: a aceitação, a
humildade do coração. E
por isso esse
livro de velhice
tem um inconfundível
acento de poesia, uma frescura orvalhada, um som claro
de cristal. (Machado de Assis, p.
206).
Apesar de
afirmar que o romance
veicula o tema da
humildade e de
ser um “livro de velhice”, Pereira chama-nos a
atenção para a sua “frescura orvalhada”, ou seja, ela
usou uma metáfora da juventude para
dizer que essa
obra está imbuída
de um elemento novo. Contudo, a idéia de que
o Memorial de Aires é uma elaboração própria da
velhice, constituiu um dos
pontos centrais na
obra Armário de Vidro,
de Márcia Lígia Guidim:
Mover-se sob ‘centros sensoriais
e existenciais’ exigiriam
também o abandono
de certos recursos
estilísticos que deram
tom e direção
à obra machadiana.
Atrás mostramos que,
em certas cartas,
Machado propunha um ‘estilo da
velhice’, baseado na contenção imagética e na restrição temática ‘para não enfarar’. (2000,
p. 78)
A contenção imagética apresenta-se
sob diferentes formas e,
de fato, pode
ser pensada como um
“estilo da velhice”. Vimos
nas análises precedentes
que o narrador evita a ênfase e busca uma tonalidade neutra.
Guidim afirma que a contenção é obtida mediante
um freio estilístico:
Há, por
essa razão, um
freio que pontua
as frases descritivas: “Vejamos
se posso...”, “sei
que não é
seguro...”, “Naturalmente...”, “como que ajuda”, “senti...”. Esse efeito se
amplia muito no parágrafo seguinte ao
primeiro que, descrevendo
os anfitriões, se
abrirá sobre eufemismos, perífrases e, sobretudo com grande
reserva para evitar a hipérbole (2000,
p. 107).
As
figuras de retórica
utilizadas são brandas e deixam evidente
o desejo de comedimento e, como
vimos, mesmo quando há ênfase, essa é rapidamente submetida a uma releitura mais branda. Além desse recurso,
Guidim salienta, também, que o “estilo de velhice”
pode ser percebido,
ainda, na ausência
da ironia aguda
(2000, p.78), “rebarbativa, espalhafatosa e violenta” (2000,
p. 150). Os argumentos feitos pela autora são praticamente os
mesmos por nós
enfatizados ao longo deste estudo e,
de fato, podem ser usados para justificar a presença de
um estilo de velhice. No entanto, essas constatações,
de natureza estilística,
não servem de
base para algumas
afirmações lastreadas na
biografia de Machado de
Assis: “Seu último romance ...
padece, pelos temas,
forma e estilo,
da melancolia típica
do escritor que não
mais vibra com a criação”
(2000, p. 80). Guidim, não hesita em apontar defeitos na obra:
A fase
tardia machadiana se mostrará, para falar como Adorno, pouco elaborada do ponto de vista técnico, da
condução estilística da frase, do enfoque
narrativo subordinado à
escolha do gênero
literário e do tratamento
temático de questões sobre a velhice
e a morte. (2000, p. 147).
Guidim parece
estar pensando de acordo
com os
pressupostos da estilística tradicional a qual, de acordo com Bakhtin, não
é adequada para o estudo do romance. Percebe-se
isso, sobretudo, quando ela ironiza o equilíbrio machadiano: “[...] o que quer que “equilíbrio” queira
dizer...” (2002, p.24)
e também quando se
refere às análises feitas
pela “crítica tradicional”:
“A rigor, a
crítica tradicional tem
tido dificuldade de analisar a obra somente sob critérios
estéticos e tem preferido colocar o romance quase na
fronteira de documento”.
Vimos, ao longo deste estudo,
que o estilo de qualquer romance
é determinado pela orquestração entre as
diferentes unidades de
estilo (que chamamos de poética
do romance) e não pelo
estilo de uma determinada
voz (da personagem,
do narrador, de um
gênero literário). Por conseguinte
a poética do Memorial
não é obtida por um determinado estilo; não se trata, apenas, de uma poesia que se apresenta isolada no interior do
enunciado, mas de uma poética que se faz aflorar pela articulação entre as vozes dos diferentes
sujeitos que povoam o romance; por isso, é que se pode afirmar que a poética do
Memorial se situa no nível metadiscursivo:
O nível
metadiscursivo torna evidente
a significação paradoxal,
pois os enunciados
do narrador propõem
duas vias de
apreensão: entrevistos sob
a perspectiva do
senso comum, eles
se encaminham para um sentido único e conclusivo;
visualizados pela contradição que os caracteriza,
introduzem significações múltiplas.
Entretanto, a aceitação do
significado literal dos
enunciados só pode
ocorrer na medida
em que se
desconsidera a contradição
que lhes é
inerente quando contrapostos uns
aos outros; reconhecida a antilogia, ou seja, o caráter
opositivo dos enunciados,
que, apesar disso,
validam tanto a afirmação quanto
a negação, institui-se
o movimento circular
do paradoxo. (SARAIVA, 1993, p.
184).
É justamente
por isso que podemos
afirmar que a poética do romance no Memorial
de Aires está a serviço da poesia e não do plurilingüismo, pois como
salienta Saraiva, a perspectiva
paradoxal introduz a polissemia. Discordamos, do mesmo modo, quando Guidim
afirma que o “enfoque narrativo”
é pouco elaborado porque
estaria “subordinado à escolha
do gênero literário”. Ora,
Machado não utiliza o diário de um modo convencional, caso contrário, o Memorial
deveria ser
pautado pelos clichês comuns
aos romances autobiográficos (forte
subjetivismo; sentimentalismo
derramado; focalização única;
narrativa com começo meio e fim, entre outros). O que vemos
no Memorial é um aproveitamento das potencialidades do diário, ou seja, Machado de
Assis deixa o gênero falar: é
esse tom menor que é fundamental
e que possibilita a articulação harmoniosa entre as diferentes vozes.
O tratamento temático acerca da
velhice também não pode
ser visto como um modo convencional de ver o mundo: se, por um
lado, Aires aceita o papel passivo de aposentado,
por outro, o autor, o responsável último pela significação da obra, nega essa passividade
ao reproduzir, “nas
malhas do texto”, o drama
vivido por Aires; são os recursos
formais, pautados pelo paradoxo, que possibilitam a releitura desse velho tema,
ou como assevera Aires: “o drama é de
todos os dias e de todas as formas, e novo como o sol, que também é velho”. Por isso o
universo axiológico não pode ser percebido sob uma única ótica, a da resignação passiva e
benevolente de um velho:
[...] a
ideologia do cálculo,
da comédia, do
fingimento e do
favor, força vital
das Memórias, ficou
muito esmaecida no Memorial. E mais: relativizou-se o
peso tão machadiano
do egoísmo, já
que os jovens
(Fidélia e Tristão)
têm direito –
reconhecido sem chiste
pelo conselheiro –
de separar-se “alegremente
do caduco e
do extinto”. Pode-se
até perguntar ao
velho bruxo, que
sempre acreditou na gratuidade
dos gestos humanos: haverá no Memorial uma aceitação da bondade
como procedimento pessoal
e social? Parece
que sim. (GUIDIM, 2000, p.150).
Efetivamente há
uma aceitação da bondade
que muitas vezes
é afirmada sem uma
sombra de ironia, no entanto, para que essa bondade pudesse ser aceita
no universo romanesco, tornou-se necessário embaralhar a
perspectiva analítica, caso contrário, o romance
descambaria para a pieguice. Portanto, não se trata de uma volta à
convenção, como quer Guidim
(2000, p.147): trata-se
de uma técnica
inovadora que tem
por objetivo fazer aflorar
para o primeiro plano do
romance uma atmosfera
agradável e harmônica;
condição necessária à poesia
no romance. De certo modo,
Guidim acaba afirmando isso, mas, não aprofunda o seu
argumento:
Não pretendo
afirmar que, porque
ficou velho, o
escritor aceitará irrestritamente a convenção, o ajuste, os pactos sociais – o que seria temerário,
mesmo porque, na
construção dos personagens,
o conselheiro Aires, observador
arguto, passaria a ser lido como um tolo frente à Brás Cubas. A questão é, como sugere
Adorno, estrutural. Ou seja, a
velhice não transforma
mas contamina o
ponto de vista machadiano.
(2000, p.151, grifo da autora).
Ora, Guidim
afirma, juntamente com Adorno, que a velhice “contamina o ponto de
vista machadiano”; é isso
que ocorre de
fato; mas, para
se chegar lá,
sem parecer ingênuo – já
que o conselheiro Aires é
um “observador arguto”
–, foi necessário um árduo trabalho de elaboração estilística (poética
do romance). Portanto, não se
pode falar em
frouxidão no estilo do
romance, posto que essa frouxidão (que
efetivamente existe no enunciado)
é feita mediante
um trabalho de elaboração. Podemos
indagar, ainda: como se
pode falar que o Memorial é
um romance convencional
se, até hoje, depois de
atravessarmos todo o oceano
modernista ele ainda
se conserva como uma obra difícil (apesar de ser aparentemente
fácil)?
Discordamos
também que o Memorial seja
uma representação estética totalmente
fora do seu tempo, como quer Guidim:
Machado de
Assis buscou uma
representação estética para
expressar suas mórbidas
inquietações, mas, sobretudo, para aceitar sua iminente exclusão artística
e existencial de um cenário
cultural que muito ajudara
a criar no país [...] Machado de Assis ficou fora da euforia do “bota-abaixo”,
o grande plano
de urbanização do
prefeito Pereira Passos. Ficou fora da “art-nouveau”. (2000,
p.148).
Postular que o Memorial apresenta-se
como uma representação
estética das “mórbidas
inquietações” do escritor Machado de
Assis é uma
forma unilateral de interpretação que
não se sustenta,
posto que esse romance,
como já foi
enfatizado, é construído sob uma perspectiva paradoxal,
portanto, não pode ser lido, apenas, sob um único horizonte axiológico.
---
Fonte:
Lucilo
Antonio Rodrigues: “A Poesia no Romance: Memorial de Aires, Um Caso Exemplar”. ( Tese apresentada
ao Instituto de Biociências, Letras
e Ciências Exatas
da Universidade Estadual
Paulista, Câmpus de São José do
Rio Preto, para obtenção do título de
Doutor em Letras
(Área de Concentração:
Teoria da Literatura. Orientador: Prof. Dr. prof. Dr.
Aguinaldo José Gonçalves). São José do Rio Preto, 2007
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