08/11/2013

Esaú e Jacó, de Machado de Assis

 Machado de Assis - Esau e Jaco - Iba Mendes
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A identidade do narrador



Ao examinarmos a identidade do narrador, constatamos que, em Esaú e Jacó, ela se mostra um tanto ambígua. Na leitura do romance podemos distinguir um narrador que se reconhece como não onisciente, mas que apresenta laivos de onisciência, por meio de incursões esporádicas ao íntimo de certas personagens.

Um narrador que se diferencia de Aires, mas que chega a se fundir com ele. É o que podemos observar ao compararmos a descrição do conselheiro com aquela que o narrador faz de si mesmo. Vejamos como isso ocorre ao ser descrito o comportamento de Aires:

Hás de lembrar-te que ele usava sempre concordar com o interlocutor, não por desdém da pessoa, mas para não dissentir nem brigar. Tinha observado que as convicções, quando contrariadas, descompõem o rosto à gente, e não queria ver  a cara dos outros assim, nem dar à sua um aspecto abominável. Se lucrasse alguma cousa, vá; mas não lucrando nada, preferia ficar em paz com Deus e os homens. [EJ, 182] (grifos nossos)

E agora vejamos a maneira como o narrador se descreve:

 “Quando um não quer, dous não brigam”, tal é o velho provérbio que ouvi em rapaz, a melhor idade para ouvir provérbios. Na idade madura eles devem já  fazer parte da bagagem da vida, frutos da experiência antiga e comum. Eu cria neste; mas não foi ele que me deu a resolução de não brigar nunca. Foi por achá-lo em mim que lhe dei crédito. Ainda que não existisse, era a mesma  cousa. Quanto ao modo de não querer, não respondo, não sei. Ninguém me  constrangia. Todos os temperamentos iam comigo; poucas divergências tive, e perdi só uma ou duas amizades, tão pacificamente aliás, que os amigos perdidos não deixaram de me tirar o chapéu. Um deles pediu-me perdão no testamento. [EJ, 221-222] (grifos nossos)  

 Mas a ambigüidade não pára por aí. Observamos também que o narrador procura conferir uma maior liberdade de leitura ao leitor, mas por vezes parece cerceá-lo. Além disso, o narrador se nega a falar de si mesmo. No entanto, introduzindo no relato suas próprias opiniões, não mantém a promessa, marcando, de qualquer modo, presença ao longo de todo o texto.

Assim, a incongruência da atitude do narrador é relativa ao próprio ato de narrar ou  transparece nas orientações de leitura. Por outro lado, deve-se ressaltar que o narrador de Esaú e Jacó não apresenta a volubilidade e “impudícia” de um Brás Cubas, sendo mais  comedido e fiel a determinados preceitos, reconhecendo por vezes não saber tudo,   hesitando ao relatar os fatos na busca pelo estabelecimento da verdade, como se estivesse realmente preocupado com uma certa correção de ordem técnica, ou uma certa uniformidade de postura ética. 

Na verdade pode-se supor que haja um desdobramento de Aires, uma unidade que se duplica através do romance, se respeitarmos o que fica estabelecido na “Advertência”. O  narrador-Aires e Aires-personagem se confundem e se distanciam num jogo constante, de ajuda mútua e de estranhamento. E talvez aí tenhamos encontrado a razão da impossibilidade da onisciência sem furos, pois o narrador tem que pagar um preço pelo outro eu semelhante que ingressa na galeria das personagens. Ou então toda a arte está em  descobrir e encobrir, como ele mesmo reconhece ao descrever seu duplo:

− Para onde? perguntou Flora ansiosa.
E ficou a olhar, esperando. Não tinha casa amiga, ou não se lembrava, e queria que ele mesmo escolhesse alguma, onde quer que fosse, e quanto mais  longe, melhor. Foi o que ele leu nos olhos parados. É ler muito, mas os bons  diplomatas guardam o talento de saber tudo o que lhes diz um rosto calado, e até  o contrário. Aires fora diplomata excelente, apesar da aventura de Caracas, se não é que essa mesma lhe aguçou a vocação de descobrir e encobrir. Toda a diplomacia está nestes dous verbos parentes. [EJ, 202-203]

Também a identidade do narrador se faz notar através das marcas de oralidade, a saber as repetições, o emprego do imperativo, as exclamações e as apóstrofes dirigidas ao leitor. Entretanto, se o discurso do narrador se assemelha ao discurso oral, ele apresenta um vínculo estreitíssimo com a escrita, especialmente ao referir-se às diferentes partes, de diferentes dimensões, que compõem a tessitura do romance.

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Fonte:
Pedro Armando de Almeida Magalhães: “Repensar o Romance Histórico: leituras de Esaú e Jacó de Machado de Assis e L’Œuvre au Noir de Marguerite  Yourcenar”.  (Tese de Doutorado apresentada ao curso de  Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, como requisito para obtenção do grau de doutor em Literatura Comparada. Orientador: João Cezar de Castro Rocha). Rio de Janeiro, 2007.

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