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VIDA URBANA, MARGINÁLIA, FEIRAS E MAFUÁS A MODERNIDADE URBANA NAS CRÔNICAS DE LIMA BARRETO
Em
contrapartida, Lima Barreto propõe uma literatura militante, que desperte
reflexões no leitor sobre o que deve ser exigido para o bem-estar da
humanidade, em vez de configurar apenas um extrato do que é publicado nas
antologias. Daí, a ironia com que registra esses discursos vazios, sem
objetividade ou clareza, com intenção exclusiva de extasiar os leitores pelo
arcabouço filosófico e beletrista.
Para Arrigucci Júnior (1987: 53), “a crônica é ela própria um fato
moderno, submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imediato, às
inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à rápida transformação e à
fugacidade da vida moderna”. A crônica aproxima narrador e leitor, por meio de
um cotidiano que possa não ser vivenciado hoje, mas que se presentifica, à
medida que estabelece a sintonia entre os dois (narrador e leitor), no encontro
marcado para fazer fluir idéias e impressões evocadas pela narrativa.
O mesmo autor
afirma que “a crônica se situa bem perto do chão, no cotidiano da cidade moderna,
e escolhe a linguagem simples e comunicativa, o tom menor do bate-papo entre amigos,
para tratar das pequenas coisas que formam a vida diária, onde às vezes
encontra a mais alta poesia”. (Arrigucci Júnior, 1987: 55). No entanto, este
“tom menor” no tratamento dos temas do cotidiano exige do cronista habilidade do
domínio textual para conseguir, dentro da economia da crônica, ajustar o
enfoque, aprofundar questões, suscitar reflexões e extrair poética a partir de
um cotidiano ainda pulsante no imaginário do leitor.
É o que se
constata na crônica Os enterros de Inhaúma,
extraída do livro Feiras e mafuás, na
qual Lima Barreto (1956: 287 – 298) se posiciona entre o cômico e o satírico,
mostrando o estranho costume dos habitantes do subúrbio em desfilar com o
defunto pelas ruas locais, numa longa caminhada em direção ao Cemitério de
Inhaúma.
O subúrbio
carioca sofre há muito tempo com a proverbial incúria dos governantes, que o
consideram um não-lugar: os investimentos em obras públicas são direcionados
para áreas mais nobres, de maior visibilidade para a metrópole. Por isso, as
ruas do subúrbio são muito maltratadas e com calçamento irregular, tornando
este percurso fúnebre para o Cemitério de Inhaúma um verdadeiro caminhar para o
Calvário. O cronista narra que, num destes penosos deslocamentos, o coche que
conduzia o caixão caiu num buraco da rua, o cocheiro e o caixão foram jogados
para fora do carro fúnebre. Segundo o narrador, o defunto saltou do esquife,
indignado por ter voltado à vida, em função do desastre causado pelo descaso
municipal. Eis o discurso do ex-de cujus:
Desgraçada
municipalidade de minha terra que deixas este calçamento em tão mau estado! Eu
que ia afinal descansar, devido ao teu relaxamento volto ao mundo, para ouvir
as queixas da minha mulher por causa da carestia da vida, de que não tenho
culpa alguma; e sofrer as impertinências do meu chefe Selrão, por causa de suas
hemorróidas, pelas quais não me cabe responsabilidade qualquer! Ah! Prefeitura
de uma figa, se tivesses uma só cabeça havias de ver as forças das minhas
munhecas! Eu te esganava, maldita, que me trazes de novo à vida! (Barreto, 1956: 290).
Igualmente
hilário é o fato narrado a propósito do enterro do operário Felisberto Catarino.
Seu caixão foi levado em séqüito a pé de Engenho de Dentro até Inhaúma, com os amigos
e parentes revezando-se nas asas do caixão. Entretanto, durante o trajeto, eles
paravam várias vezes, arriavam o esquife e iam aos bares e tavernas do caminho,
a fim de tomar um trago. Já próximo ao cemitério, um grupo, após ter parado
para beber, resolveu deixar o caixão na estrada, para que o próximo grupo
cumprisse a etapa final.
Na porta do
cemitério todos ficaram esperando o caixão, que demorava a chegar, quando deram
conta de que ele ficara perdido no meio do caminho, sendo necessário que o
fossem procurar e trazê-lo para a morada final. O autor encerra a crônica
filosoficamente:
Tristes
enterros de Inhaúma! Não fossem essas tinturas pinturescas e pitorescas de que
vos revestis de quando em quando de quanta reflexão acabrunhadora não havíeis
de sugerir aos que vos vêem passar; e como não convenceríeis também a eles que
a maior dor dessa vida não é morrer...
(Barreto, 1956: 291-292).
Quando
enuncia que “a maior dor dessa vida não é morrer”, Lima Barreto abandona repentinamente
o lado humorístico com que acompanha os enterros de Inhaúma para revelar o sentimento
de impotência, fracasso e dor dos habitantes dos subúrbios – despersonalizados
em vida, esquecidos na morte. A “reflexão acabrunhadora” se manifesta pela
própria situação do subúrbio, tão abandonado à própria sorte quanto o caixão de
Felisberto Catarino deixado na estrada a caminho do cemitério.
O esquife
abandonado do operário do Engenho de Dentro simboliza a ausência do poder público
no subúrbio: muitos são os políticos que declaram querer conduzi-lo para a
modernidade, mediante o progresso, mas como o fardo é pesado demais, torna-se
mais fácil deixá-lo para o próximo que também não o carrega e assim por diante.
A alegoria faz perceber que nem a morte estanca o descaso dos governantes com
relação ao subúrbio. Ao contrário: perpetua-o.
Quando se
analisam estes textos de Lima Barreto, em que se evidencia o universo suburbano,
o leitor pode ficar com a impressão errônea de haver algum travo de censura na
observação crítica do autor. Entretanto, estes flashes do cotidiano da gente do subúrbio são, na realidade,
retalhos de uma parte da cidade do Rio de Janeiro que sempre ficou segregada a
um plano inferior, vez que, desde o Império e a Primeira República, a
literatura urbana narrava o centro da cidade, Botafogo, Glória, Largo do
Machado etc.
Ao volver seu olhar para o subúrbio, Lima Barreto
não poderia fazê-lo senão da maneira mais autêntica possível, de acordo com
seus princípios: era um habitante do subúrbio, mas um pensador brasileiro. Por
isso, suas reflexões se projetam desde o subúrbio para todas as contradições da
cultura brasileira, desconhecendo fronteiras que pudessem restringir a sinceridade.
Ao enfocar o subúrbio, ampliando a visão das contradições existentes na
cidade e das aspirações e dos desejos que marcam o cotidiano dos seus
moradores, Lima Barreto contribui para sua inclusão na modernidade. É assim o
artesanato da crônica: o circunstancial nunca é simplório e o fragmentário
encontra, na imaginação do leitor, a lógica da organização que se rebate no seu
cotidiano, nas suas histórias de vida, nas narrativas que se desenrolam no seu
ambiente. Como afirma Beatriz Resende, “na produção de Lima Barreto, são
eliminados os limites rígidos entre o literário e o jornalístico” (Resende,
1993: 80), pois os recursos estéticos de um meio são inteiramente aproveitados
em outro, completamente integrados em sua escritura.
Outro aspecto que marca a crônica é a expressividade de suas imagens. É
dessa época a chegada da caricatura para ilustrar as folhas, abrindo uma nova
forma de expressão que começa a fazer parte do texto jornalístico. A caricatura
dá maior impacto ao texto, à medida que proporciona uma imediata identificação
do leitor com a situação e os personagens retratados, influenciando também o
texto, numa relação simbiótica. Assim, há uma significativa transformação da
linguagem, da temática e até mesmo do apelo mediante o qual o jornalista pretende
chegar ao leitor, na instantaneidade dos fatos (Borelli, 1996: 72).
Tal presença
é freqüente nas crônicas, quando o narrador, ainda no microcosmo suburbano
descreve os usuários da estação de trem. Nas horas de maior movimento, a
estação adquire vida com o elenco de personagens que por ela circula
cotidianamente. É uma clientela formada de funcionários públicos, pequenos
advogados, bacharéis de pouca expressão, literatos sem fama, estudantes,
operários, desocupados e muitos outros.
Esses
personagens são o alvo predileto do olhar crítico de Lima Barreto, pois, à
proporção que observa seu comportamento, esboça um quadro sintético do universo
cultural suburbano. É um verdadeiro exercício etnográfico. O autor age como um
observador crítico, munido de olhar pan-óptico, que procura colher nos gestos,
nas atitudes e nas falas dos personagens a argamassa do seu comportamento,
conforme se segue:
Então, é de
ver e ouvir as palestras e as opiniões daquela gente toda, sempre a lastimar-se
de Deus e dos governos, gente em cuja mente a monotonia do ofício e as
preocupações domésticas tiraram toda e qualquer manifestação de inteligência,
de gosto e interesse espiritual, enfim, uma larga visão do mundo.
[...]
Não se abeira
de uma roda, quer seja de civis, quer de militares, que não se ouçam queixas contra
o governo, objurgatórias contra o congresso, porque não lhes aumenta o ordenado. (Barreto, 1956: 148-149).
Ao traçar o
perfil destes personagens, o autor também reconstrói o subúrbio, com suas inspirações
e interesses. Ali, naquela estação de trem, o mais simples contínuo ganha foros
de chefe de repartição, o mais humilde burocrata torna-se tão importante quanto
um diretor de departamento. Na fantasia de sua importância nas repartições
públicas, dão despachos que impactam os destinos do país, obtêm informações
inacessíveis aos comuns dos mortais, e isso lhes credencia para manter o status de superioridade diante dos
demais passageiros que esperam o trem:
Quanto mais
modesta for a categoria do empregado – no subúrbio pelo menos – mais enfatuado
ele se mostra. Um velho contínuo tem-se na conta de grande e imensa coisa, só
pelo fado de ser funcionário do Estado, para carregar papéis de um lado para
outro; e um simples terceiro oficial, que a isso chegou por trapaças de transferências
e artigos capciosos nas reformas, partindo de “servente adido à escrita”, impa
que nem um diretor notável, quando compra, se o faz a passagem no guichet da
estação. Empurra brutalmente os outros, olha com desdém os mal vestidos, bate
nervosamente com os níqueis... A sua pessoinha vaidosa e ignorante não pode esperar
que uma pobre preta velha compre uma passagem de segunda classe. Tem tal
pressa, a ponto de pensarmos que, se ele não for atendido logo, o Brasil estoura,
chega-lhe mesmo a esperada bancarrota...
(Barreto, 1956: 150-151).
Em casos
análogos, a afirmação de status se dá
pelo poder do pseudoconhecimento. Mediante a imagem estampada por Lima Barreto,
esses personagens se enquadram nos arquétipos do falso burguês e da
intelectualidade vazia que grassavam pelos cafés e salões do Rio de Janeiro da
época, deitando erudição por onde passasse, apesar de não terem nenhum embasamento
para tanto:
Outra mania
dos burocratas, e que eles exibem na estação é a sabença e a formatura. Todos
eles têm em alta conta o seu saber, principalmente em português. Lêem
esses anarquistas da língua receituários gramaticais, que os jornais trazem, e
saem de palmatória em punho a emendar toda a gente. (Barreto, 1956: 151).
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Fonte:
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Fonte:
José Luiz Matias (UERJ): “Vida
Urbana, Marginália, feiras e mafuás a modernidade urbana nas crônicas de Lima Barreto”. www.filologia.org.br
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