29/11/2013

Marginália, de Lima Barreto

 Lima Barreto - Marginalia - Iba Mendes
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VIDA URBANA, MARGINÁLIA, FEIRAS E MAFUÁS A MODERNIDADE URBANA NAS CRÔNICAS DE LIMA BARRETO

Em contrapartida, Lima Barreto propõe uma literatura militante, que desperte reflexões no leitor sobre o que deve ser exigido para o bem-estar da humanidade, em vez de configurar apenas um extrato do que é publicado nas antologias. Daí, a ironia com que registra esses discursos vazios, sem objetividade ou clareza, com intenção exclusiva de extasiar os leitores pelo arcabouço filosófico e beletrista.
Para Arrigucci Júnior (1987: 53), “a crônica é ela própria um fato moderno, submetendo-se aos choques da novidade, ao consumo imediato, às inquietações de um desejo sempre insatisfeito, à rápida transformação e à fugacidade da vida moderna”. A crônica aproxima narrador e leitor, por meio de um cotidiano que possa não ser vivenciado hoje, mas que se presentifica, à medida que estabelece a sintonia entre os dois (narrador e leitor), no encontro marcado para fazer fluir idéias e impressões evocadas pela narrativa.
O mesmo autor afirma que “a crônica se situa bem perto do chão, no cotidiano da cidade moderna, e escolhe a linguagem simples e comunicativa, o tom menor do bate-papo entre amigos, para tratar das pequenas coisas que formam a vida diária, onde às vezes encontra a mais alta poesia”. (Arrigucci Júnior, 1987: 55). No entanto, este “tom menor” no tratamento dos temas do cotidiano exige do cronista habilidade do domínio textual para conseguir, dentro da economia da crônica, ajustar o enfoque, aprofundar questões, suscitar reflexões e extrair poética a partir de um cotidiano ainda pulsante no imaginário do leitor.
É o que se constata na crônica Os enterros de Inhaúma, extraída do livro Feiras e mafuás, na qual Lima Barreto (1956: 287 – 298) se posiciona entre o cômico e o satírico, mostrando o estranho costume dos habitantes do subúrbio em desfilar com o defunto pelas ruas locais, numa longa caminhada em direção ao Cemitério de Inhaúma.
O subúrbio carioca sofre há muito tempo com a proverbial incúria dos governantes, que o consideram um não-lugar: os investimentos em obras públicas são direcionados para áreas mais nobres, de maior visibilidade para a metrópole. Por isso, as ruas do subúrbio são muito maltratadas e com calçamento irregular, tornando este percurso fúnebre para o Cemitério de Inhaúma um verdadeiro caminhar para o Calvário. O cronista narra que, num destes penosos deslocamentos, o coche que conduzia o caixão caiu num buraco da rua, o cocheiro e o caixão foram jogados para fora do carro fúnebre. Segundo o narrador, o defunto saltou do esquife, indignado por ter voltado à vida, em função do desastre causado pelo descaso municipal. Eis o discurso do ex-de cujus:
Desgraçada municipalidade de minha terra que deixas este calçamento em tão mau estado! Eu que ia afinal descansar, devido ao teu relaxamento volto ao mundo, para ouvir as queixas da minha mulher por causa da carestia da vida, de que não tenho culpa alguma; e sofrer as impertinências do meu chefe Selrão, por causa de suas hemorróidas, pelas quais não me cabe responsabilidade qualquer! Ah! Prefeitura de uma figa, se tivesses uma só cabeça havias de ver as forças das minhas munhecas! Eu te esganava, maldita, que me trazes de novo à vida! (Barreto, 1956: 290).
Igualmente hilário é o fato narrado a propósito do enterro do operário Felisberto Catarino. Seu caixão foi levado em séqüito a pé de Engenho de Dentro até Inhaúma, com os amigos e parentes revezando-se nas asas do caixão. Entretanto, durante o trajeto, eles paravam várias vezes, arriavam o esquife e iam aos bares e tavernas do caminho, a fim de tomar um trago. Já próximo ao cemitério, um grupo, após ter parado para beber, resolveu deixar o caixão na estrada, para que o próximo grupo cumprisse a etapa final.
Na porta do cemitério todos ficaram esperando o caixão, que demorava a chegar, quando deram conta de que ele ficara perdido no meio do caminho, sendo necessário que o fossem procurar e trazê-lo para a morada final. O autor encerra a crônica filosoficamente:
Tristes enterros de Inhaúma! Não fossem essas tinturas pinturescas e pitorescas de que vos revestis de quando em quando de quanta reflexão acabrunhadora não havíeis de sugerir aos que vos vêem passar; e como não convenceríeis também a eles que a maior dor dessa vida não é morrer... (Barreto, 1956: 291-292).
Quando enuncia que “a maior dor dessa vida não é morrer”, Lima Barreto abandona repentinamente o lado humorístico com que acompanha os enterros de Inhaúma para revelar o sentimento de impotência, fracasso e dor dos habitantes dos subúrbios – despersonalizados em vida, esquecidos na morte. A “reflexão acabrunhadora” se manifesta pela própria situação do subúrbio, tão abandonado à própria sorte quanto o caixão de Felisberto Catarino deixado na estrada a caminho do cemitério.
O esquife abandonado do operário do Engenho de Dentro simboliza a ausência do poder público no subúrbio: muitos são os políticos que declaram querer conduzi-lo para a modernidade, mediante o progresso, mas como o fardo é pesado demais, torna-se mais fácil deixá-lo para o próximo que também não o carrega e assim por diante. A alegoria faz perceber que nem a morte estanca o descaso dos governantes com relação ao subúrbio. Ao contrário: perpetua-o.
Quando se analisam estes textos de Lima Barreto, em que se evidencia o universo suburbano, o leitor pode ficar com a impressão errônea de haver algum travo de censura na observação crítica do autor. Entretanto, estes flashes do cotidiano da gente do subúrbio são, na realidade, retalhos de uma parte da cidade do Rio de Janeiro que sempre ficou segregada a um plano inferior, vez que, desde o Império e a Primeira República, a literatura urbana narrava o centro da cidade, Botafogo, Glória, Largo do Machado etc.
Ao volver seu olhar para o subúrbio, Lima Barreto não poderia fazê-lo senão da maneira mais autêntica possível, de acordo com seus princípios: era um habitante do subúrbio, mas um pensador brasileiro. Por isso, suas reflexões se projetam desde o subúrbio para todas as contradições da cultura brasileira, desconhecendo fronteiras que pudessem restringir a sinceridade.
Ao enfocar o subúrbio, ampliando a visão das contradições existentes na cidade e das aspirações e dos desejos que marcam o cotidiano dos seus moradores, Lima Barreto contribui para sua inclusão na modernidade. É assim o artesanato da crônica: o circunstancial nunca é simplório e o fragmentário encontra, na imaginação do leitor, a lógica da organização que se rebate no seu cotidiano, nas suas histórias de vida, nas narrativas que se desenrolam no seu ambiente. Como afirma Beatriz Resende, “na produção de Lima Barreto, são eliminados os limites rígidos entre o literário e o jornalístico” (Resende, 1993: 80), pois os recursos estéticos de um meio são inteiramente aproveitados em outro, completamente integrados em sua escritura.
Outro aspecto que marca a crônica é a expressividade de suas imagens. É dessa época a chegada da caricatura para ilustrar as folhas, abrindo uma nova forma de expressão que começa a fazer parte do texto jornalístico. A caricatura dá maior impacto ao texto, à medida que proporciona uma imediata identificação do leitor com a situação e os personagens retratados, influenciando também o texto, numa relação simbiótica. Assim, há uma significativa transformação da linguagem, da temática e até mesmo do apelo mediante o qual o jornalista pretende chegar ao leitor, na instantaneidade dos fatos (Borelli, 1996: 72).
Tal presença é freqüente nas crônicas, quando o narrador, ainda no microcosmo suburbano descreve os usuários da estação de trem. Nas horas de maior movimento, a estação adquire vida com o elenco de personagens que por ela circula cotidianamente. É uma clientela formada de funcionários públicos, pequenos advogados, bacharéis de pouca expressão, literatos sem fama, estudantes, operários, desocupados e muitos outros.
Esses personagens são o alvo predileto do olhar crítico de Lima Barreto, pois, à proporção que observa seu comportamento, esboça um quadro sintético do universo cultural suburbano. É um verdadeiro exercício etnográfico. O autor age como um observador crítico, munido de olhar pan-óptico, que procura colher nos gestos, nas atitudes e nas falas dos personagens a argamassa do seu comportamento, conforme se segue:
Então, é de ver e ouvir as palestras e as opiniões daquela gente toda, sempre a lastimar-se de Deus e dos governos, gente em cuja mente a monotonia do ofício e as preocupações domésticas tiraram toda e qualquer manifestação de inteligência, de gosto e interesse espiritual, enfim, uma larga visão do mundo.
[...]
Não se abeira de uma roda, quer seja de civis, quer de militares, que não se ouçam queixas contra o governo, objurgatórias contra o congresso, porque não lhes aumenta o ordenado. (Barreto, 1956: 148-149).
Ao traçar o perfil destes personagens, o autor também reconstrói o subúrbio, com suas inspirações e interesses. Ali, naquela estação de trem, o mais simples contínuo ganha foros de chefe de repartição, o mais humilde burocrata torna-se tão importante quanto um diretor de departamento. Na fantasia de sua importância nas repartições públicas, dão despachos que impactam os destinos do país, obtêm informações inacessíveis aos comuns dos mortais, e isso lhes credencia para manter o status de superioridade diante dos demais passageiros que esperam o trem:
Quanto mais modesta for a categoria do empregado – no subúrbio pelo menos – mais enfatuado ele se mostra. Um velho contínuo tem-se na conta de grande e imensa coisa, só pelo fado de ser funcionário do Estado, para carregar papéis de um lado para outro; e um simples terceiro oficial, que a isso chegou por trapaças de transferências e artigos capciosos nas reformas, partindo de “servente adido à escrita”, impa que nem um diretor notável, quando compra, se o faz a passagem no guichet da estação. Empurra brutalmente os outros, olha com desdém os mal vestidos, bate nervosamente com os níqueis... A sua pessoinha vaidosa e ignorante não pode esperar que uma pobre preta velha compre uma passagem de segunda classe. Tem tal pressa, a ponto de pensarmos que, se ele não for atendido logo, o Brasil estoura, chega-lhe mesmo a esperada bancarrota... (Barreto, 1956: 150-151).
Em casos análogos, a afirmação de status se dá pelo poder do pseudoconhecimento. Mediante a imagem estampada por Lima Barreto, esses personagens se enquadram nos arquétipos do falso burguês e da intelectualidade vazia que grassavam pelos cafés e salões do Rio de Janeiro da época, deitando erudição por onde passasse, apesar de não terem nenhum embasamento para tanto:
Outra mania dos burocratas, e que eles exibem na estação é a sabença e a formatura. Todos eles têm em alta conta o seu saber, principalmente em português. Lêem esses anarquistas da língua receituários gramaticais, que os jornais trazem, e saem de palmatória em punho a emendar toda a gente. (Barreto, 1956: 151).


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Fonte:
José Luiz Matias (UERJ): “Vida Urbana, Marginália, feiras e mafuás a modernidade urbana nas crônicas de Lima Barreto”. www.filologia.org.br

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