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Drama romântico
Afirma-se que há muita
violação do gosto nas tragédias inglesas e alemãs. As francesas são somente uma única grande violação. Pois o que
pode ser mais contra o gosto que escrever e representar inteiramente fora da
natureza? (August Wilhelm Schlegel)
Destruamos as teorias,
as poéticas e os sistemas. (Victor Hugo)
É no gênero dramático que se dá com maior
força o embate entre românticos e clássicos, já que esse ocupava lugar central
no Classicismo, “como o seu gênero mais precioso,
aquele em que os modernos haviam alcançado ou mesmo se avantajado aos gregos (...)”. Fazia-se como que ponto de honra para
o poeta romântico o exercitar-se no drama, de forma a estabelecer aí suas
próprias regras, saídas de sua visão pessoal do teatro, e, portanto, desafiadoras da tradição clássica, que
entendia o drama como uma técnica imitada dos mestres. “Todos, poetas, romancistas, podiam
escrever para o teatro, e o fizeram com prodigalidade,
usando a imaginação para alargar os limites materialmente estreitos do palco, ainda que sob o risco de escreverem peças
irrepresentáveis, irredutíveis à cena.” Os problemas suscitados pela representação cênica
de um texto passam, automaticamente, para segundo plano, já que o que interessa é a
expressão do sentimento, do temperamento autoral. Contra a objetividade e a exterioridade
inerentes ao teatro (em que falam os personagens), choca-se o subjetivismo introspectivo do texto
romântico (em que, de um modo ou de outro, fala sempre o autor). Chegamos, novamente, a
uma substituição da noção de gênero, enquanto
forma necessária à existência mesma do texto, por algo que deve poder conter
todas as manifestações da inquietude
interior do “gênio”. Chegamos ao drama romântico, em que devem conviver o realismo cênico e o lirismo
subjetivo, o lance dramático e o questionamento filosófico do mundo.
Historicamente localizado, portanto, no centro
da querela entre o mundo clássico
(devemos pensar aqui na rígida divisão entre tragédia e comédia, com suas
unidades e tons adequados) e a nova
visão romântica, o drama romântico tem suas bases conceituais na mesma procura por um gênero novo que
determinou as discussões e experimentalismos com o fragmento
e o romance. Para os românticos alemães, inclusive, no gênero dramático seria ainda
mais fácil explicitar os recursos reflexivos da ironia, como atestava o teatro
de Tieck (um dos integrantes do grupo de
Jena), que convidava o espectador a participar da ação juntamente com os atores e o autor, apagando
as diferenças entre palco e platéia, quebrando o princípio teatral da ilusão. “A forma
dramática deixa-se ironizar em maior medida do que as demais e de modo mais marcante, porque ela
abarca em maior medida a força ilusória e, deste modo, pode suportar a ironia
em maior escala sem se dissolver por completo”, diz Walter Benjamin em seu já citado texto, enfatizando a
força do gênero dramático. Exatamente por possuir uma codificação tão sólida, o drama
suporta os maiores abusos e desmandos do autor romântico, que o deforma de acordo com suas
necessidades de expressão. O anti-ilusionismo, ferramenta da ironia romântica, quando
aplicado ao texto dramático, não se arrisca jamais a destruí-lo; ao contrário, torna-o texto
crítico ao desvelar os “limites da obra visível”, ou forma-de-exposição, “além dos quais abre-se o
âmbito da obra invisível, da Idéia da arte.” O teatro difere do romance,
segundo Friedrich Schlegel, pelo modo de exposição: destina-se a uma platéia,
enquanto o romance destina-se à leitura, mas ambos devem ser românticos em sua relação com uma
ordem superior, espiritual, que paira acima da norma da letra – “com a qual ele (o romance)
freqüentemente não se deve importar”. Assim também o drama deve desconhecer as regras
impositivas dos gêneros para se apegar à verdade histórica, isto é, à disposição do sujeito,
como o fez o mestre dos românticos, Shakespeare. Em seus
dramas, o dramaturgo elisabetano teria desconhecido as hierarquias do teatro
clássico para privilegiar enredos
fantasiosos, caóticos, cheios de vida e humor, verdadeiras representações de sua época e do temperamento
do autor. É sempre bom ter em mente o quanto
há de “equívoco” histórico na apreciação romântica de Shakespeare, considerado
por esses autores uma encarnação do
gênio, criador original e revolucionário em sua independência dos rígidos padrões clássicos da
tragédia e da comédia. Por certo que o teatro elisabetano não desconhecia totalmente a
tradição, digamos, aristotélica, do gênero dramático, mas sua índole é outra, e outras são as regras
e normas de seu teatro, em grande parte ainda preso a uma visão de mundo
medieval, cristã e fantasiosa. Na verdade, o teatro de Shakespeare, se lido
dentro da tradição elisabetana, não tem a menor preocupação com a originalidade, seja formal ou de temas. Estes
também, como se sabe, não se originavam nunca do gênio shakespeareano, e eram antes colhidos
pelo bardo dentre as crônicas históricas e as coleções populares das mais belas narrativas
da época. O olhar retrospectivo dos românticos leu no texto shakespeareano, portanto, aquilo
que lhes interessava de perto, deixando de lado uma inserção historiográfica mais acurada
desse teatro que foi corrente paralela, e não oposta, ao teatro francês de índole classicista (que
também, diga-se de passagem, lera equivocadamente
a teoria dramática aristotélica). Contudo, importa-nos apontar aqui o destaque
que o Romantismo vai conceder às grandes figuras da vertente “sentimental” da literatura ocidental, resgatando como valores
equivalentes ao domínio do gênero literário em si a capacidade imaginativa, o colorido da
fantasia desenfreada e a mistura de estilos dos autores do Século de Ouro espanhol, dos
elisabetanos, de um Tasso ou Boccaccio, entre outros.
O procedimento de F. Schlegel, por
conseguinte, ao aproximar o romance e o drama, busca ressaltar o que ambos
deveriam ter em comum: “o drama tratado e tomado tão profunda e historicamente como o faz
Shakespeare, por exemplo, é o verdadeiro fundamento do romance” – ou seja, o enredo confessional,
verdadeiro ou histórico; o que, obviamente, sobrepõe-se ao gênero literário, pois – “entre
o drama e o romance há tão pouco lugar para uma oposição (...)”. De maneira paradoxal, ao
desprezá-lo, Schlegel aponta ainda para o gênero literário – tendo sempre em
vista a importância do drama enquanto forma a ser “ganha” na batalha contra os clássicos.
August Wilhelm Schlegel, o irmão mais velho de
Friedrich, desenvolverá, também a partir
da obra de Shakespeare, uma caracterização do drama moderno em oposição às velhas
fórmulas clássicas. Para dar conta do teatro shakespeareano, e combater a
acusação clássica de sua aparente
desordem e amorfia, August Schlegel distinguirá entre forma mecânica e forma orgânica (as comparações com
a biologia têm longa tradição na teoria literária
alemã – não devemos esquecer que o gênio cria de maneira análoga à natureza). A
forma mecânica é imposta de fora para dentro, a partir das poéticas e manuais
normativos do cânone clássico. A forma
orgânica nasce de si mesma, “ela vem de dentro e se define simultaneamente com o pleno desenvolvimento do
germe.” Ela ignora, portanto, os pilares teatrais das unidades e da separação
dos gêneros, e é nesse sentido que se deve aceitar um novo conceito de poesia, de teatro, de drama,
pois há evolução tanto na natureza quanto na arte. Esta última responde ainda às
transformações históricas, que incluem a mudança do gosto, dos temas, dos valores estéticos:
Daí que seja tão incorreto quão enganoso impor velhos nomes
a novas castas de poesia. Os termos
comédia e tragédia não são aplicáveis à maior parte do drama moderno; há que
chamá-lo simplesmente romântico. O poeta
clássico separava rigorosamente os elementos dissimilares, enquanto o romântico se deleita nas misturas e
contradições. O poeta clássico buscava a ordem eterna; o romântico busca o caos
secreto no âmago do universo do qual surgem novas formas.
Esse novo conceito de beleza funda-se não na
observância do texto “bem-feito”, em seu
uso de matrizes pré-estabelecidas, mas antes procura em si mesmo o reflexo de
um plano talvez superior: busca a
unidade entre obra e autor, entre a obra e o plano da Idéia das formas. Isso, segundo August Schlegel, através
da convivência de elementos dissonantes e realidades opostas, criando um teatro da
imaginação, poético e livre de imposições exteriores (como a cenografia exagerada, a mudança
repetida de cenários, a imposição de um único tom próprio ao gênero representado, entre outras).
Ainda outro grande admirador de Shakespeare
(e leitor das teorias alemãs), Victor
Hugo será responsável pelo texto fundamental para a compreensão do drama romântico: o famoso “Prefácio”, escrito pelo
poeta em 1827 para sua peça Cromwell. Como figura mais dinâmica do Romantismo francês,
Hugo introduzirá em seu país o pensamento propriamente crítico do movimento, o que pode
ser percebido no “Prefácio” pelo uso de termos e conceitos devedores das
discussões do grupo de Jena, tais como a harmonia dos contrários, a especificidade de um gênero
romântico, a presença do grotesco na arte moderna. Através de Hugo, as preocupações do
Romantismo crítico se espalham por toda a Europa, sofrendo, é claro, adaptações de
acordo com a mentalidade encontrada em cada país no qual se desenvolveu a escola. O próprio
Hugo tornará menos abstrata a subjetividade alemã, conformando-a ao pragmatismo da
mentalidade francesa: sua percepção de ironia romântica, por exemplo, será simplificada na
convivência de elementos opostos dentro de uma mesma obra.
O “Prefácio” inicia o percurso que aqui nos
interessa com a procura de uma poética
própria aos tempos modernos, ou românticos (classificação que Hugo aceita de má
vontade, pois resiste a um rótulo para
sua época), que vem a ser a poética do drama. O drama agrupa, dentro de si, sob a forma de obra de
arte, todos os elementos constitutivos do homem e de sua época. Ele é produto
de uma civilização cristã, por isso baseia-se num sistema dual, de coexistência de contrários: espírito e
corpo, luz e sombra, sublime e grotesco. Só assim o drama pode aspirar a ser verdade, em
consonância com o ideal romântico de arte reflexiva, e não apenas arte-reflexo:
A poesia nascida do cristianismo, a poesia de nosso tempo
é, pois, o drama; o caráter do drama é o
real; o real resulta da combinação bem natural de dois tipos, o sublime e o
grotesco, que se cruzam no drama, como
se cruzam na vida e na criação. Porque a verdadeira poesia, a poesia completa, está na harmonia dos contrários.
Depois, é tempo de dizê-lo em voz alta, e é aqui sobretudo que as exceções confirmariam a
regra, tudo o que está na natureza está na arte.
Como forma capaz de abarcar toda a gama de
tonalidades do real, o drama aspira a
ser totalidade, isto é, obra universal, ou “poesia completa”. Contém em si,
além de todas as manifestações da
subjetividade humana, a ode e a epopéia, “uma e outra, em desenvolvimento” – vem a ser poesia
progressiva. É multiforme, nunca se fixa e exprime-se pelo paradoxo. Em relação aos gêneros
clássicos, o drama não quer apenas minar a segurança da tragédia e estabelecer a superioridade da
comédia: propõe-se como terceiro gênero, sintético e superior, pois ciente de que se
aproxima mais da verdade pela via da convivência entre sublime e grotesco. Para Hugo, muitas
vezes o grotesco se apresenta meramente como o feio, oposto, em sua
multiplicidade de formas, à unidade do belo. Unidade, harmonia e equilíbrio que geram monotonia só quebrada
pela presença lúcida do elemento dissonante. De fato, para o poeta francês, o
belo (sublime) e o feio (grotesco) parecem trocar de lugares na hierarquia artística; mas, num exame mais
acurado, percebe-se que grotesco é, além do feio, uma postura de criticidade, um efeito
anti-ilusionista dentro da obra. Desestabilizador, atua por contraste, criando
o efeito de luz e sombra tão caro ao imaginário romântico. É um fragmento de algo maior, por isso defeituoso,
oposto à totalidade da beleza: “O que chamamos
o feio (...) é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se harmoniza, não com o homem, mas com toda a
criação. É por isso que ele nos apresenta, sem cessar, aspectos novos, mas incompletos.” O
sublime permanece como objetivo supremo, mas difícil de ser alcançado, pois sua
natureza é a da quase impossibilidade, e aqui o grotesco, com seu tom desafinado, ajuda a suportar o
silêncio imposto pelo sublime. Se não é possível contemplar o Ideal, pode-se vislumbrá-lo; o
drama, em sua mobilidade de gênero aberto, franqueia uma janela para a ordem superior à
letra que o constitui – ordem que, em última instância, encontra-se alojada dentro do
próprio Eu.
Um Eu que, simplificado por Hugo na figura
humana empírica, constitui-se de elementos
díspares, muitas vezes opostos, que se traduzem nas obras por ele criadas. Não saímos, portanto, da esfera romântica
subjetivista, que subordina a imitação à expressão. A insistência de Hugo na natureza e no real
revela-se, enfim, como um voltar-se para si mesmo; o poeta deve escutar o seu gênio antes de tudo
e nele encontrar as regras e as formas para a expressão artística. Por isso a realidade da
arte não se confunde com a realidade da natureza, já que são inerentes à arte “formas, meios de
execução, todo um material para pôr em movimento.
Para o gênio, são instrumentos; para a mediocridade, ferramentas.” É próprio do drama concentrar e exagerar a
natureza, como uma lente de aumento, e não apenas refleti-la, como um espelho.
E tal concentração, é claro, põe em evidência tanto a beleza quanto os defeitos daquilo que serve de tema ao drama –
determinando-o, assim, enquanto forma problemática,
fruto antes de reflexão excessiva do que da tentativa fiel de representação da natureza:
“Só então o drama é arte.”
Como decorrência do que foi exposto acima, o
drama romântico não pode respeitar as sagradas unidades do teatro clássico (o
ataque de Hugo se dirige principalmente à regra das unidades de Boileau, expressas em
sua Arte Poética, de 1674, que Hugo classifica de “código pseudo-aristotélico”), pois estas
se chocam contra a liberdade criativa e contra a própria verossimilhança. Hugo
salvaguarda apenas a unidade de ação (a unidade de ação, aliás, fora sempre aceita pelos teóricos alemães), a
que ele chama “unidade de conjunto”, admitindo aí inclusive uma série de ações secundárias em
torno do eixo principal, à maneira de Shakespeare
– de forma que não se confundam unidade e simplicidade de ação. As unidades de tempo e local parecem-lhe completamente
absurdas, pois não resistem a uma comparação com o real: “O que há de estranho, é que os
rotineiros pretendem apoiar sua regra das duas unidades na verossimilhança, ao passo que é
precisamente o real que a mata.” Já em termos de linguagem, Hugo prefere o drama em verso, e
defende este aparente conservadorismo como
única forma de proteger a arte do comum, que se insinuava então com os primeiros
traços do Realismo abominado por Hugo,
já que esta escola pregava o oposto de sua estética do exagero, do particular e característico.
[..]
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Fonte:
Fonte:
Andrea Sirihal Werkema: “Macário, ou, Do drama
romântico em Álvares de Azevedo”. (Tese apresentada
ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como parte dos requisitos para a
obtenção do grau de Doutor em Letras:
Estudos Literários. Área de
Concentração: Literatura Brasileira. Orientadora:
Profa.
Dra.
Leda Maria Martins.) Belo Horizonte, 2007.
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