20/11/2013

Macário, de Álvares de Azevedo

 Alvares de Azevedo - Macario - Iba Mendes
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Drama romântico


Afirma-se que há muita violação do gosto nas tragédias inglesas e alemãs. As francesas são  somente uma única grande violação. Pois o que pode ser mais contra o gosto que escrever e representar inteiramente fora da natureza? (August Wilhelm Schlegel)

Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas. (Victor Hugo)


  É no gênero dramático que se dá com maior força o embate entre românticos e clássicos, já que esse ocupava lugar central no Classicismo, “como o seu gênero mais  precioso, aquele em que os modernos haviam alcançado ou mesmo se avantajado aos gregos  (...)”. Fazia-se como que ponto de honra para o poeta romântico o exercitar-se no drama, de forma a estabelecer aí suas próprias regras, saídas de sua visão pessoal do teatro, e, portanto,  desafiadoras da tradição clássica, que entendia o drama como uma técnica imitada dos  mestres. “Todos, poetas, romancistas, podiam escrever para o teatro, e o fizeram com  prodigalidade, usando a imaginação para alargar os limites materialmente estreitos do palco,  ainda que sob o risco de escreverem peças irrepresentáveis, irredutíveis à cena.” Os  problemas suscitados pela representação cênica de um texto passam, automaticamente, para  segundo plano, já que o que interessa é a expressão do sentimento, do temperamento autoral.  Contra a objetividade e a exterioridade inerentes ao teatro (em que falam os personagens),  choca-se o subjetivismo introspectivo do texto romântico (em que, de um modo ou de outro,  fala sempre o autor). Chegamos, novamente, a uma substituição da noção de gênero,  enquanto forma necessária à existência mesma do texto, por algo que deve poder conter todas  as manifestações da inquietude interior do “gênio”. Chegamos ao drama romântico, em que  devem conviver o realismo cênico e o lirismo subjetivo, o lance dramático e o questionamento filosófico do mundo.

 Historicamente localizado, portanto, no centro da querela entre o mundo  clássico (devemos pensar aqui na rígida divisão entre tragédia e comédia, com suas unidades e  tons adequados) e a nova visão romântica, o drama romântico tem suas bases conceituais na  mesma procura por um gênero novo que determinou as discussões e experimentalismos com o   fragmento e o romance. Para os românticos alemães, inclusive, no gênero dramático seria ainda mais fácil explicitar os recursos reflexivos da ironia, como atestava o teatro de Tieck  (um dos integrantes do grupo de Jena), que convidava o espectador a participar da ação  juntamente com os atores e o autor, apagando as diferenças entre palco e platéia, quebrando o  princípio teatral da ilusão. “A forma dramática deixa-se ironizar em maior medida do que as  demais e de modo mais marcante, porque ela abarca em maior medida a força ilusória e, deste modo, pode suportar a ironia em maior escala sem se dissolver por completo”, diz Walter  Benjamin em seu já citado texto, enfatizando a força do gênero dramático. Exatamente por  possuir uma codificação tão sólida, o drama suporta os maiores abusos e desmandos do autor  romântico, que o deforma de acordo com suas necessidades de expressão. O anti-ilusionismo,  ferramenta da ironia romântica, quando aplicado ao texto dramático, não se arrisca jamais a  destruí-lo; ao contrário, torna-o texto crítico ao desvelar os “limites da obra visível”, ou  forma-de-exposição, “além dos quais abre-se o âmbito da obra invisível, da Idéia da arte.” O teatro difere do romance, segundo Friedrich Schlegel, pelo modo de exposição: destina-se a uma platéia, enquanto o romance destina-se à leitura, mas ambos  devem ser românticos em sua relação com uma ordem superior, espiritual, que paira acima da  norma da letra – “com a qual ele (o romance) freqüentemente não se deve importar”. Assim  também o drama deve desconhecer as regras impositivas dos gêneros para se apegar à verdade  histórica, isto é, à disposição do sujeito, como o fez o mestre dos românticos, Shakespeare.   Em seus dramas, o dramaturgo elisabetano teria desconhecido as hierarquias do teatro clássico  para privilegiar enredos fantasiosos, caóticos, cheios de vida e humor, verdadeiras  representações de sua época e do temperamento do autor. É sempre bom ter em mente o  quanto há de “equívoco” histórico na apreciação romântica de Shakespeare, considerado por  esses autores uma encarnação do gênio, criador original e revolucionário em sua  independência dos rígidos padrões clássicos da tragédia e da comédia. Por certo que o teatro  elisabetano não desconhecia totalmente a tradição, digamos, aristotélica, do gênero dramático,  mas sua índole é outra, e outras são as regras e normas de seu teatro, em grande parte ainda preso a uma visão de mundo medieval, cristã e fantasiosa. Na verdade, o teatro de Shakespeare, se lido dentro da tradição elisabetana, não tem a menor preocupação com a  originalidade, seja formal ou de temas. Estes também, como se sabe, não se originavam nunca  do gênio shakespeareano, e eram antes colhidos pelo bardo dentre as crônicas históricas e as  coleções populares das mais belas narrativas da época. O olhar retrospectivo dos românticos  leu no texto shakespeareano, portanto, aquilo que lhes interessava de perto, deixando de lado  uma inserção historiográfica mais acurada desse teatro que foi corrente paralela, e não oposta,  ao teatro francês de índole classicista (que também, diga-se de passagem, lera  equivocadamente a teoria dramática aristotélica). Contudo, importa-nos apontar aqui o destaque que o Romantismo vai conceder às grandes figuras da vertente “sentimental” da  literatura ocidental, resgatando como valores equivalentes ao domínio do gênero literário em  si a capacidade imaginativa, o colorido da fantasia desenfreada e a mistura de estilos dos  autores do Século de Ouro espanhol, dos elisabetanos, de um Tasso ou Boccaccio, entre outros.

  O procedimento de F. Schlegel, por conseguinte, ao aproximar o romance e o drama, busca ressaltar o que ambos deveriam ter em comum: “o drama tratado e tomado tão  profunda e historicamente como o faz Shakespeare, por exemplo, é o verdadeiro fundamento  do romance” – ou seja, o enredo confessional, verdadeiro ou histórico; o que, obviamente,  sobrepõe-se ao gênero literário, pois – “entre o drama e o romance há tão pouco lugar para  uma oposição (...)”. De maneira paradoxal, ao desprezá-lo, Schlegel aponta ainda para o gênero literário – tendo sempre em vista a importância do drama enquanto forma a ser  “ganha” na batalha contra os clássicos.

 August Wilhelm Schlegel, o irmão mais velho de Friedrich, desenvolverá,  também a partir da obra de Shakespeare, uma caracterização do drama moderno em oposição  às  velhas fórmulas clássicas. Para dar conta do teatro shakespeareano, e combater a acusação  clássica de sua aparente desordem e amorfia, August Schlegel distinguirá entre forma  mecânica e forma orgânica (as comparações com a biologia têm longa tradição na teoria  literária alemã – não devemos esquecer que o gênio cria de maneira análoga à natureza). A forma mecânica é imposta de fora para dentro, a partir das poéticas e manuais normativos do  cânone clássico. A forma orgânica nasce de si mesma, “ela vem de dentro e se define  simultaneamente com o pleno desenvolvimento do germe.” Ela ignora, portanto, os pilares teatrais das unidades e da separação dos gêneros, e é nesse sentido que se deve aceitar um  novo conceito de poesia, de teatro, de drama, pois há evolução tanto na natureza quanto na  arte. Esta última responde ainda às transformações históricas, que incluem a mudança do  gosto, dos temas, dos valores estéticos:

Daí que seja tão incorreto quão enganoso impor velhos nomes a novas castas de poesia. Os  termos comédia e tragédia não são aplicáveis à maior parte do drama moderno; há que chamá-lo  simplesmente romântico. O poeta clássico separava rigorosamente os elementos dissimilares,  enquanto o romântico se deleita nas misturas e contradições. O poeta clássico buscava a ordem eterna; o romântico busca o caos secreto no âmago do universo do qual surgem novas formas.

 Esse novo conceito de beleza funda-se não na observância do texto “bem-feito”,  em seu uso de matrizes pré-estabelecidas, mas antes procura em si mesmo o reflexo de um  plano talvez superior: busca a unidade entre obra e autor, entre a obra e o plano da Idéia das  formas. Isso, segundo August Schlegel, através da convivência de elementos dissonantes e  realidades opostas, criando um teatro da imaginação, poético e livre de imposições exteriores  (como a cenografia exagerada, a mudança repetida de cenários, a imposição de um único tom  próprio ao gênero representado, entre outras).

  Ainda outro grande admirador de Shakespeare (e leitor das teorias alemãs),  Victor Hugo será responsável pelo texto fundamental para a compreensão do drama  romântico: o famoso “Prefácio”, escrito pelo poeta em 1827 para sua peça Cromwell. Como  figura mais dinâmica do Romantismo francês, Hugo introduzirá em seu país o pensamento  propriamente crítico do movimento, o que pode ser percebido no “Prefácio” pelo uso de termos e conceitos devedores das discussões do grupo de Jena, tais como a harmonia dos  contrários, a especificidade de um gênero romântico, a presença do grotesco na arte  moderna. Através de Hugo, as preocupações do Romantismo crítico se espalham por toda a  Europa, sofrendo, é claro, adaptações de acordo com a mentalidade encontrada em cada país  no qual se desenvolveu a escola. O próprio Hugo tornará menos abstrata a subjetividade  alemã, conformando-a ao pragmatismo da mentalidade francesa: sua percepção de ironia  romântica, por exemplo, será simplificada na convivência de elementos opostos dentro de uma mesma obra.

  O “Prefácio” inicia o percurso que aqui nos interessa com a procura de uma  poética própria aos tempos modernos, ou românticos (classificação que Hugo aceita de má  vontade, pois resiste a um rótulo para sua época), que vem a ser a poética do drama. O drama  agrupa, dentro de si, sob a forma de obra de arte, todos os elementos constitutivos do homem e de sua época. Ele é produto de uma civilização cristã, por isso baseia-se num sistema dual,  de coexistência de contrários: espírito e corpo, luz e sombra, sublime e grotesco. Só assim o  drama pode aspirar a ser verdade, em consonância com o ideal romântico de arte reflexiva, e  não apenas arte-reflexo:

A poesia nascida do cristianismo, a poesia de nosso tempo é, pois, o drama; o caráter do drama  é o real; o real resulta da combinação bem natural de dois tipos, o sublime e o grotesco, que se  cruzam no drama, como se cruzam na vida e na criação. Porque a verdadeira poesia, a poesia  completa, está na harmonia dos contrários. Depois, é tempo de dizê-lo em voz alta, e é aqui  sobretudo que as exceções confirmariam a regra, tudo o que está na natureza está na arte.

Como forma capaz de abarcar toda a gama de tonalidades do real, o drama  aspira a ser totalidade, isto é, obra universal, ou “poesia completa”. Contém em si, além de  todas as manifestações da subjetividade humana, a ode e a epopéia, “uma e outra, em  desenvolvimento” – vem a ser poesia progressiva. É multiforme, nunca se fixa e exprime-se  pelo paradoxo. Em relação aos gêneros clássicos, o drama não quer apenas minar a segurança  da tragédia e estabelecer a superioridade da comédia: propõe-se como terceiro gênero,  sintético e superior, pois ciente de que se aproxima mais da verdade pela via da convivência  entre sublime e grotesco. Para Hugo, muitas vezes o grotesco se apresenta meramente como o feio, oposto, em sua multiplicidade de formas, à unidade do belo. Unidade, harmonia e  equilíbrio que geram monotonia só quebrada pela presença lúcida do elemento dissonante. De fato, para o poeta francês, o belo (sublime) e o feio (grotesco) parecem trocar de lugares na  hierarquia artística; mas, num exame mais acurado, percebe-se que grotesco é, além do feio,  uma postura de criticidade, um efeito anti-ilusionista dentro da obra. Desestabilizador, atua por contraste, criando o efeito de luz e sombra tão caro ao imaginário romântico. É um  fragmento de algo maior, por isso defeituoso, oposto à totalidade da beleza: “O que  chamamos o feio (...) é um pormenor de um grande conjunto que nos escapa, e que se  harmoniza, não com o homem, mas com toda a criação. É por isso que ele nos apresenta, sem  cessar, aspectos novos, mas incompletos.” O sublime permanece como objetivo supremo,  mas difícil de ser alcançado, pois sua natureza é a da quase impossibilidade, e aqui o grotesco,  com seu tom desafinado, ajuda a suportar o silêncio imposto pelo sublime. Se não é possível  contemplar o Ideal, pode-se vislumbrá-lo; o drama, em sua mobilidade de gênero aberto,  franqueia uma janela para a ordem superior à letra que o constitui – ordem que, em última  instância, encontra-se alojada dentro do próprio Eu.

  Um Eu que, simplificado por Hugo na figura humana empírica, constitui-se de  elementos díspares, muitas vezes opostos, que se traduzem nas obras por ele criadas. Não  saímos, portanto, da esfera romântica subjetivista, que subordina a imitação à expressão. A  insistência de Hugo na natureza e no real revela-se, enfim, como um voltar-se para si mesmo;  o poeta deve escutar o seu gênio antes de tudo e nele encontrar as regras e as formas para a  expressão artística. Por isso a realidade da arte não se confunde com a realidade da natureza,  já que são inerentes à arte “formas, meios de execução, todo um material para pôr em  movimento. Para o gênio, são instrumentos; para a mediocridade, ferramentas.” É  próprio do drama concentrar e exagerar a natureza, como uma lente de aumento, e não apenas refleti-la, como um espelho. E tal concentração, é claro, põe em evidência tanto a beleza quanto os  defeitos daquilo que serve de tema ao drama – determinando-o, assim, enquanto forma  problemática, fruto antes de reflexão excessiva do que da tentativa fiel de representação da natureza: “Só então o drama é arte.”

  Como decorrência do que foi exposto acima, o drama romântico não pode respeitar as sagradas unidades do teatro clássico (o ataque de Hugo se dirige principalmente à  regra das unidades de Boileau, expressas em sua Arte Poética, de 1674, que Hugo classifica  de “código pseudo-aristotélico”), pois estas se chocam contra a liberdade criativa e contra a própria verossimilhança. Hugo salvaguarda apenas a unidade de ação (a unidade de ação, aliás,  fora sempre aceita pelos teóricos alemães), a que ele chama “unidade de conjunto”, admitindo  aí inclusive uma série de ações secundárias em torno do eixo principal, à maneira de  Shakespeare – de forma que não se confundam unidade e simplicidade de ação. As unidades  de tempo e local parecem-lhe completamente absurdas, pois não resistem a uma comparação  com o real: “O que há de estranho, é que os rotineiros pretendem apoiar sua regra das duas  unidades na verossimilhança, ao passo que é precisamente o real que a mata.” Já em termos  de linguagem, Hugo prefere o drama em verso, e defende este aparente conservadorismo  como única forma de proteger a arte do comum, que se insinuava então com os primeiros  traços do Realismo abominado por Hugo, já que esta escola pregava o oposto de sua estética  do exagero, do particular e característico.

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Fonte:
Andrea Sirihal Werkema: “Macário, ou, Do drama romântico em Álvares de Azevedo”. (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Minas  Gerais, como parte dos requisitos para a obtenção  do grau de Doutor em Letras: Estudos Literários.  Área de Concentração: Literatura Brasileira.  Orientadora: Profa. Dra. Leda Maria Martins.) Belo Horizonte, 2007.

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