07/11/2013

Iaiá Garcia, de Machado de Assis

 Machado de Assis - Iaia Garcia - Iba Mendes

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Os conselhos surgem com Luís Garcia


Luís  Garcia,  41  anos,  pai  de  Estela,  funcionário  público,  cético,  de  jeito  modesto,  e  cortês, carregava em sua fisionomia traços tristes. Morava em Santa Teresa, um lugar menos  povoado, onde curtia a sua viuvez. Não era de fazer visitas e também não as recebia. Sua casa  era  de  poucos  amigos,  cercada  de  melancolia  da  solidão.  O  quintal  era  o  lugar  que  podia  chamar-se  alegre,  onde  Luís  Garcia  andava  e  regava  todas  as  manhãs.  Ele  se  afasta  da  sociedade  para  cultivar  o  seu  jardim,  assim  volta-se  para  sua  vida  privada,  seus  interesses.  Luís  Garcia  preza  a  sua  independência,  embora  tenha  uma  ligação  com  a  família  do  Desembargador por favores recebidos e prestados.

Mesmo  sendo  um  homem  recluso,  ele  “amava  a  espécie  e  aborrecia  o  indivíduo”  (MACHADO  DE  ASSIS,  2008,  p.  14).  Todos  que  solicitavam  sua  ajuda  raramente  não  obtinham  favores.  Prestava  favor  com  eficácia,  e  esquecia  os  benefícios,  antes  que  os  beneficiados  esquecessem.  Tinha  o  dom  de  observar,  era  capaz  de adivinhar por  trás  de  um  coração desenganado.

Assim  era;  a  experiência,  que  foi  precoce,  produzira  em  Luís  Garcia  um  estado  de  apatia  e  ceticismo,  com  seus  laivos  de  desdém.  O  desdém  não  se  revelava  por nenhuma  expressão  exterior,  era  a  ruga  sardônica  do  coração.  Por  fora,  havia  só  a  máscara  imóvel,  o  gesto  lento  e  as  atitudes  tranquilas.  Alguns  poderiam  temê-lo,  outros  detestá-lo,  sem  que  merecesse  execração  nem  temor.  Era  inofensivo  por  temperamento  e  por  cálculo.  Como  um  célebre  eclesiástico,  tinha  para  si  que  uma  onça de paz vale mais que uma libra de vitória. Poucos lhe queriam deveras, e esses  empregavam  mal  a  afeição,  que  ele  não  retribuía  com  afeição  igual,  salvo  duas  exceções.  Nem  por  isso  era  menos  amigo  de  obsequiar.  (MACHADO  DE  ASSIS,  2008, p. 14)

Luís  Garcia  tinha  duas  afeições,  a  primeira  era  sua  filha,  que  se  chamava  Lina,  cujo  nome  doméstico  era  Iaiá,  a  segunda  era  Raimundo,  50  anos,  “escravo  e  livre”,  tinha  Luís  como  um  filho,  por  isso,  era  submisso  e  dedicado.  O  paternalismo  está  presente  na  obra.  Raimundo  não  poderia  deixar  de  servir  Luís  Garcia  por  ter  sido  amigo  de  seu  pai  e  de  sua  família. Já, Luís Garcia “não dava ordem nenhuma; tinha tudo à hora e no lugar competente”  (MACHADO  DE ASSIS, 2008, p. 15). Não se trata de relação de trabalho, mas de um laço  afetivo  que  une  os  dois.  Simulada  a  diferença,  a  relação  de  subordinação  do  agregado  permanece. 

Iaiá  Garcia  era  alta,  delgada,  travessa,  tinha  o  hábito  de  rir.  O  pai  procurava  sempre  realizar  os  sonhos  da  filha,  como  a  de  ser  mestra  em  piano,  Iaiá  acabou  ganhando  o  instrumento.  Em  seguida,  abateu-se  por  perceber  que  tudo  na  casa  era  velho  e  somente  o  piano  novo.  Seu  pai,  mesmo  sendo  funcionário  público,  não  ganhava  bem,  tinha  que  levar  trabalho para casa para melhorar seu salário, mas jamais deixaria de fazer Iaiá feliz. Apesar de  cético, suas afeições eram fortes, não era um homem duro.   Luís Garcia tinha traços de elegância e de conselheiro e chama a atenção quando:

Não aceita  nem  recusa,  mas  se esquiva, quando  não  se atreve a formular a dúvida,  quando tenta conciliar os desejos de Valéria com a sua própria neutralidade, quando  adota  um  meio8termo,  quando  aceita  frouxamente,  quando  recusa  mas  não  pode  resistir  às  instâncias  da  viúva,  quando  examina  a  furto  a  expressão  nos  olhos  de  Jorge,  quando  procura  escapar8se  depois  da  janta  sem  falar  ao  moço,  quando  confirma  com  o  silêncio  uma  pia  fraude  de  Valéria,  quando  não  se  anima  a  perguntar, e sobretudo quando volta para casa aborrecido de tudo, da mãe, do filho,  e das circunstâncias em que se via posto.  (SCHWARZ, 2000, p. 1768177)

A vida de Luís Garcia era uniforme e pacífica. Ele não possuía ambição ou cobiça. Em  1859, perdeu sua esposa, o que acarretou uma forte dor por tê-la perdido. Casou-se porque era  amado.  Meses depois foi se esconder em Santa Teresa.   Luís  Garcia  não  pensava  no  futuro,  gostava  de  guardar  os  papéis  e  acabava  com  o  passado após muito tempo. 

Ao  pé  da  secretária  estava  uma  vasta  cesta,  transbordando  de  papéis;  sobre  a  secretária  papéis;  papéis  na  mão  de  Luís  Garcia;  outros  na  mão  de  Estela,  alguns  esparsos  no chão. Era uma liquidação  de seis anos. Luís Garcia tinha o costume de  guardar tudo, cartas, exemplares de jornais em que havia alguma coisa de interesse,  apontamentos,  simples  cópias.  De  longe  em  longe  inventariava  e  liquidava  o  passado. (MACHADO DE ASSIS, 2008, p. 97898)

Valéria  Gomes  viúva  de  um  desembargador  honorário,  recorrera  duas  ou  três  vezes  aos  serviços  de  Luís  Garcia.  Ela pediu para ele  dar  conselhos  ao  seu  filho  Jorge, para  ele  ir  para a guerra do Paraguai. Ele tentou ser neutro no pedido feito por ela, mas não adiantou e  acabou aceitando, desconfiado dos verdadeiros motivos que Valéria teria para mandar o filho  para  a  guerra.   No outro  dia, ao jantar  com  mãe e  filho, passa a  estudar  a viúva,  com  olhos  agudos da suspeita, entretanto tinha sempre um sorriso para cada coisa que ouvia, na intenção  de  agradar  e  seduzir.  Jorge  já  mostrava-se  retraído  e  mudo,  porém  ao  ficar  sozinho  com  Garcia  disse  que  iria  para  a  guerra,  mas  que  o  motivo  verdadeiro  era  por  sua  mãe  o  querer  longe de um amor proibido.  Jorge não concordou com o conselho de Luís Garcia:

Seu conselho  mostra a  diferença de  nossas idades  – disse  ele. –  Se eu  fosse  para a  Europa, que  sacrifício faria à pessoa a quem amo? Pelo contrário, a  sacrificada era  ela.  Eu ia divertir-me, passear, ver coisas novas, talvez achar novos amores. Indo à  guerra, é diferente. Sacrifico o repouso e arrisco a vida; é alguma coisa. Separados,  embora, não me negará sua estima... (MACHADO DE ASSIS, 2008, p. 29)

Luís  Garcia  disse  para  ele  descansar,  que  ele  não  ia  publicar  seus  amores.  Era  um  homem que não revelava o que os outros o confiavam. Achava apenas que ele não deveria ir  para à guerra por este motivo, e sim por outros sentimentos. Agora, a sua intenção era deixar  que  os  acontecimentos  tivessem  livre  curso,  sem  suas  intervenções.  Como  Jorge  já  estava  decidido, Luís Garcia pouco trabalho teve no ânimo de Jorge.

Luís Garcia foi a única pessoa a quem Jorge confiou metade do segredo que o levou  para a guerra. Escreveu uma carta contando o que sentia, seu amor tinha se transformado em  uma  espécie  de  adoração  mística,  mas  não  revelou  o  nome  da  pessoa.  Acabou  se  decepcionando com a resposta de Garcia, pois este deu conselhos e reflexões relativos quase  exclusivamente aos deveres de homem e soldado. Ou seja, não tocou quase nada referente à  carta de Jorge. Manteve seu gênio seco e gélido. Quando a mãe de Jorge faleceu, Luís Garcia  fez questão de avisar.

Estela, o amor de Jorge, acabou casando-se com Luís Garcia. Via-o como um homem  de  afeições  plácidas,  medíocres,  mas  sinceras.  Falava  pouco,  era  respeitoso,  vivia  para  si  e  para a filha, gostou da ideia de se casar com ele, mesmo que tivessem diferenças. Apesar de  não  ter  vocação  para  o  casamento,  Luís  Garcia  acabou  cedendo:  “Parece  que  em  geral  os  casamentos começam pelo amor e acabam pela estima; nós começamos pela estima; é muito  mais seguro” (MACHADO DE ASSIS, 2008, p. 70).  

Quando  Jorge  retornou  da  guerra,  Luís  Garcia  o  visitou.  Neste  momento,  Garcia  o  agradeceu pelo  que  sua mãe  havia  feito em  sua vida, ajudando-o  a casar.  Jorge  o  felicitou e  ouviu: “Se eu tivesse o sestro de dar conselhos, dir-lhe-ia que se  casasse” (MACHADO  DE  ASSIS, 2008, p. 73).

Após algum tempo, Luís Garcia ficou doente e Jorge passou a visitá-lo. Ao pensar em  sua  morte,  pediu  para  Jorge  ser  o  tutor  moral  de  sua  esposa  e  filha.  Jorge  prometeu  que  cumpriria  seu  pedido.  Ambos  tinham  como  distração  o  jogo  de  xadrez  e  alguns  passeios.  Distrações brandas  e  pausadas  como  Luís  Garcia.  Jorge  aproveitava  os  momentos  e  os  dois  trocavam  ideias.  Luís  Garcia  era  um  homem  de  pouca  cultura,  mas  através  de  sua  solidão  aprendeu a refletir. Jorge emprestava-lhe livros de sua casa para ele ler:

A necessidade intelectual de Luís Garcia contribuiu assim para tornar mais íntima a  convivência, única exceção na vida reclusa que ele continuava a ter, ainda depois de  casado.  Jorge  pela  sua  parte  não  desmentia  até  ali  o  bom  conceito  que  o  outro  formava de suas qualidades; e a família viu lentamente estabelecer-se a intimidade e  a estima entre os dois homens. Uma noite, saindo Jorge da casa de Luís Garcia, este  e  a  mulher  ficaram  no  jardim  algum  tempo.  Luís  Garcia  disse  algumas  palavras  a  respeito do filho de Valéria.  – Pode ser que eu me engane – concluiu o cético –, mas persuado8me que é um bom  rapaz. (MACHADO DE ASSIS, 2008, p. 89)


A família retirada e obscura, agora via a mudança de comportamento de Luís Garcia.  Um  homem  seco  com  as  pessoas,  que  era  expansivo  somente  com  os  familiares,  abriu  uma  exceção para Jorge. Luís Garcia confiava e demonstrou isto para Jorge, reforçou em seu leito  de morte:

Peço  que  não  desampares  os  meus.  Sei  que  morro,  e  quero  ter  certeza  de  que  só  deixo  algumas  saudades.  O  senhor  vai  casar  com  minha  filha;  nada  me  inquieta  a  esse  respeito.  Mas  Estela,  que  não  é  mãe  de  Iaiá,  ou  é  somente  mãe  de  coração,  Estela  vai  ficar  só,  e  eu  não  quisera  morrer  com  a  ideia  de  que  a  deixo  infeliz.  Promete-me  que  não  a  desamparará  nunca?  Jorge  prometeu.  (MACHADO  DE  ASSIS, 2008, p. 164)

Luís  Garcia  deixa  a  reclusão  para  entregar  os  cuidados  de  sua  família  a  Jorge.  Ele  percebe  que  é  necessário  abrir  uma  exceção  para  morrer  em  paz.  Assim,  parte  tranquilo,  sabendo que os seus não ficarão desamparados.  

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Fonte:
Luciane da Rocha Franzoni Reinke: “Iaiá Garcia, Esaú e Jacó e Memorial de Aires: A Construção de  um Narrador”. (Dissertação  de  Mestrado  em  Literatura  Brasileira,  apresentada  como  requisito  parcial  para  a  obtenção  do  título  de  Mestre  pelo  Programa  de  Pós-Graduação  em  Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.  Orientador: Prof. Dr. Antônio Marcos Vieira Sanseverino). Porto Alegre, 2012

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