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A
posição social do narrador
Lúcia Miguel-Pereira afirma, como já foi
dito anteriormente, que a trama
teria sido escrita entre Helena
e Iaiá Garcia, sendo, portanto,
uma novela fraca, com temas dos primeiros
romances: amor versus sociedade
ou satisfação pessoal versus ascensão social. A
autora afirma que
a peça é
romântica e sentimental
e, ali, encontram-se criaturas
“puras e virtuosas”
(MIGUEL-PEREIRA, 1952, p. 16). Ainda
que apontasse os
primeiros romances de
Machado de Assis, incluindo Casa Velha, como narrativas autobiográficas, Lúcia Miguel-Pereira é contundente em afirmar que as peças não têm
importância por seu “aspecto documental”,
mas sim por serem narrativas que debatem “o problema da hierarquia social”
(MIGUEL-PEREIRA, 1952, p. 20). Por isso, em seu prefácio, lemos que “Casa
Velha tem algumas
anotações bem machadianas”, e que o padre foi
desenhado com uma “sábia
arte de gradações
e nuanças” (MIGUEL-PEREIRA, 1952, p. 21). A autora
ressalta que, pelo fato de
não saber se o padre completou as palavras de Dona Antonia (que
Lalau e Félix seriam irmãos) por ciúme da menina
ou por boa-vontade para
ajudar o casal, essa passagem seria
um recurso do “bom Machado” (MIGUEL-PEREIRA, 1952, p. 24),
ou seja, o romancista teria deixado em suspenso o veredito, por oferecer
indícios da prosa madura. Assim, ela aponta que o padre teria agido,
provavelmente, de modo inconsciente por ciúmes, embora fosse uma boa pessoa.
Como
também já foi
apontado, no primeiro capítulo, John Gledson segue uma vertente histórica
e preocupa-se com o
resultado dos “objetos
realistas” (GLEDSON, 2003, p. 23)
do romancista, e analisa Casa Velha como uma alegoria política do Ancien
Régime. Quanto ao padre, o crítico
ressalta, como Miguel-Pereira, que
ele teve uma atitude
não muito clara em relação ao namoro de Lalau e Félix. No entanto, ao contrário
da crítica e biógrafa, Gledson afirma
que o padre não agiu inconscientemente, mas sim de má fé: “Com frequência, suas emoções,
pensamentos, e ações não são exatamente o que
parecem” (GLEDSON, 2003, p. 42).
É importante lembrar
que Gledson parte do princípio que Machado
constrói em sua
obra um “realismo enganoso”, ou seja, é necessário ler nas entrelinhas para
compreender o que a obra quer representar. Por isso, o autor
assegura: “Quanto mais se
investiga o caráter do narrador, mais tenebrosas
se tornam as sombras, e igualmente
percebemos a existência de mais coisas em jogo nesta história do que parece a primeira vista”
(GLEDSON, 2003, p. 46). Portanto, para ele, o cônego seria
manipulador e representaria
uma ideologia conservadora, pois é
membro da igreja
e ocupa o
cargo de cônego na
Capela Imperial. Ainda,
para Gledson Casa Velha seria
um esboço de Dom
Casmurro, e o crítico aproxima o sacerdote
de um personagem
do grande romance, José Dias. Para
aproximar os dois
personagens, ele afirma que o
padre seria a parte masculina do mantenedor da ordem na casa, ao lado de Dona
Antonia (GLEDSON, 2003, p. 61).
A partir
disso, ele estabelece uma
relação ubíqua entre
o São José e o padre, pois
este ocuparia a função daquele
na hierarquia familiar, daí, aproxima o padre
do agregado José Dias, esse sim, homônimo do santo. Essa hipótese, no entanto, nos parece
insuficiente, pois as semelhanças
dos nomes escondem diferenças de personalidade e de
representação social evidentes: o padre não é
um agregado dependente da
família proprietária, caso flagrante no personagem
de Dom Casmurro. A contradição dos argumentos
de Gledson aparece em seu
próprio texto quando, para assegurar que
Casa Velha estaria em uma segunda fase machadiana, ele
sustenta a tese
de que o padre-narrador se
comporta como um membro da
classe proprietária: “Machado descobriu que, para escrever
sobre o universo
da oligarquia, tinha
de penetrar nele, de
ser um ‘colaborador’, como o próprio padre” (GLEDSON, 2003, p. 67). Os dois
personagens pertencem, então,
a mundos
diferentes nos quais
o padre é amparado por uma
instituição e não depende de favores pessoais; já José Dias, embora estivesse encostado na família
Santiago, depende de obséquios para sobreviver.
Pode-se
dizer que o estudo de Lúcia Miguel-Pereira aponta questões importantes sobre o
padre como o fato de ele
agir de maneira
inconsciente, não apenas como um tipo, mas como um personagem profundo, um caractér.
Porém, a leitura da
autora não intenciona chegar à
totalidade da obra. No caso de John Gledson, o seu estudo se afasta de
uma procura pela
forma (ainda que
esse fosse o intento dele) e
encontra mais um paralelismo
ilustrativo, ou como afirma Roberto
Schwarz sobre o crítico, há
nele “a tentação de
deixar a análise
formal pela caçada
às alusões históricas, ou, de outro ângulo,
o risco de preferir as intenções do Autor ao resultado efetivamente
artístico, isto é, transfigurado
pela organização ficcional” (SCHWARZ, 1991, p. 73). De modo diferente
dos estudos apontados aqui, nosso interesse é analisar a forma de Casa Velha
e o seu entrelaçamento com a
sociedade do século XIX, a
começar pelo ponto de vista que
a história é contada.
Para compreender
o desenvolvimento do cônego na
peça, é preciso que o vejamos
como um ser social, isto é, observar que,
por meio de sua
narração, vai transparecer
o seu modo de pensar e de agir. O
estudo no seminário era
socialmente bem visto, a
educação era vasta e a disciplina
era rígida. Ali estudaram
Gregório de Matos, Bento
Teixeira, Cláudio Manuel da Costa,
entre outros, “grandes figuras
da política, das letras
e das ciências
brasileiras” (FREYRE, 1968,
p.77). Muitos alunos desse
sistema de ensino eram
considerados precoces, pois apresentavam
um amadurecimento tanto no modo
de se comportar como no conhecimento adquirido. De certo modo, nota-se essa afirmação nas
palavras do cônego que, no início da trama, diz ter
sido visto como um sábio na
casa, um grande conhecedor
de variados temas
e autores: “Creram-me
naturalmente sábio, tanto
mais digno de admiração, quanto que contava
apenas trinta e dois anos. A
verdade é que era tão-somente um homem lido e curioso” (ASSIS, 2004, p. 18). O estudo em um
seminário oferecia uma vasta gama de conteúdo
e cultura, ou seja, uma formação de letrado, “com os conhecimentos de base para todas as categorias profissionais e
ornamentais” (FAORO, 1976, p. 465).
Essa forma
de sociabilidade, no entanto,
é bem
mais complexa, porque ela reproduz
as estruturas de classe e a divisão de poder econômico, político e ideológico. Em alguns estudos, como o de Maria Beatriz
Nizza da Silva que aborda a época de Dom João VI, vemos
que a igreja
recebia, em seus
seminários, apenas meninos da
classe abastada os quais que ali
aprimoram seus conhecimentos e inscrevem-se posteriormente nessa
estrutura social referida. Sendo assim, para garantir
os meios de
reprodução de assimetria social,
seria apenas o filho da elite que conseguiria ordenar-se e tornar-se um membro clerical, porque “a
igreja não acolhia no seu seio indivíduos destituído de recursos” (SILVA, s/d, p. 71). Poderíamos
inferir, então, que o ponto de vista do cônego de Casa Velha
estaria próximo do da classe senhorial.
Sob o ponto
de vista em que a história é contada, o assunto é mais complexo e não é tão simples assegurar a afirmação
anterior, pois a igreja também recebeu, em seus seminários, meninos que
não eram da classe
proprietária, ou seja, jovens
que, muitas vezes, eram de
classes menos favorecidas (FAORO, 1976, p. 457). Certamente, eles não chegavam a uma posição de
destaque como os filhos
da elite, mas, ainda assim, uma parte dos sacerdotes foi formada por moços de
origem humilde. Não podemos assegurar que o cônego da
trama é ou foi
membro da classe mais
baixa, pois não há
nenhuma referência a isso. Alguns
aspectos de seu comportamento se aproximam de um modo de agir e de pensar da classe inferior. Sendo
assim, quando ele entra pela primeira vez na casa e descreve-a como uma construção suntuosa
diz: “A verdade é que sentia tolhido. Casa, hábitos, pessoas davam-me
ares de outro tempo, exalavam um
cheiro de vida clássica”
(ASSIS, 2004, p. 12). Pode-se concluir que, de certo, ele não estava habituado a
frequentar ambiente mais sofisticado.
De qualquer
modo, os seminaristas advindos
de famílias pobres
conseguiam, através de sua posição na igreja, um certo respeito e
prestígio, pois estava, na figura do sacerdote, uma autoridade que orienta as
pessoas sobre tudo quanto diz respeito à vida. Em outras palavras, o comportamento
de um padre, independente de qual esfera social ele tivesse vindo, era o de transmitir uma boa
conduta moral; porém, os sacerdotes da classe inferior
não se fechavam a uma idéia
de impedimento de casamentos
fora de classe:
Moralidade
que é, em
regra, o padrão social
da família, pelo que zelam,
mas sem admitir que a sociedade se feche, abertos à ascensão social, eles
próprios, muitas vezes,
frutos da escalada
de baixo para cima. Talvez
aí esteja a
raiz de sua
consciência do renovamento, contra
uma ordem social
rígida, que se enrijeceria
em castas, se o tempero desses recém elevados à casa
patriarcal não abrandassem os exclusivismos. (FAORO, 1976, p. 457).
Vemos essa
tendência no cônego-narrador.
Para ele
não seria um problema
o casamento entre integrantes de
classes diferentes. Refletindo, então, sobre Lalau e Félix, o padre diz: “Achava-os tão ajustados um ao
outro, que não acabarem ligados parecia-me
uma violação da lei divina” (ASSIS, 2004, p. 34). A discussão sobre a
diferença social aparece, mas é
contornada pela “natureza”. Desse modo, ao conversar com Félix, o padre diz: “Há grande diferença social entre
um e outro, mas a natureza assim como a sociedade a corrige,
também às vezes
corrige a sociedade”
(ASSIS, 2004, p. 50). Em grande
parte, os padres eram representados como aqueles que organizavam a sociedade, buscavam a construção familiar e eram
considerados casamenteiros, como o cônego de Casa Velha.
Seguindo
essa linha de raciocínio, vemos que os segmentos diferentes da ordem social misturam-se na vida eclesiástica e
modificam a visão ilusoriamente enrijecida das classes
sociais. Retomando algumas
considerações feitas anteriormente, vimos como Machado constrói seus
narradores segundo o princípio
da ironia e
utiliza para isso o recurso do coro. A
voz do coro – reflexiva
por excelência –
é a do cônego,
é ele o personagem
que reflete sobre
o acontecido. Tendo ele, então,
um ponto de vista diferente do
da classe senhorial. Não só não concorda com
a situação como também denuncia as mazelas sofridas pelos jovens por
terem de obedecer às vontades arbitrárias da classe proprietária.
Assim, um
dos conflitos da trama é a união do filho de Dona Antonia e Lalau, isto é, o
filho de
família rica e a jovem
pobre, e o cônego tenta mediar
esse embate. Como sacerdote, ele
não vê maiores problemas
no casamento e tenta convencer
a matriarca de
que a união
é uma boa
opção, porque a menina
tinha qualidades de uma
moça bem nascida. No entanto, o cônego
encontra-se em uma posição desconfortável, pois
sua postura não é
contrária à união,
ele até tenta
ajudá-los, contudo a viúva não aceita. Em uma passagem, o padre diz à
matriarca que seu filho deveria se casar com a moça, mas Dona Antonia não aceita a sugestão e
pede para mudar de assunto. Assim, lemos:
“Não minha senhora, falemos disto mesmo” (ASSIS, 2004, p. 58). O sacerdote assegura
que era a
primeira vez que
alguém a enfrentara
desde a morte
do marido. Ninguém, até ali, tinha
discordado de alguma
decisão sua. O cônego, portanto, encontra-se bem no núcleo do embate em Casa
Velha: de um lado está Dona Antonia, pertencente à
classe dominante; do outro,
Lalau, a agregada que
pretende desposar o filho
da viúva. À primeira
vista, a trama aponta
que o problema estaria
no casamento entre pessoas de
classes sociais diferentes, mais, especificamente, a menina
pobre em busca da ascensão social. Contudo, ao lermos a
narrativa com mais atenção, vemos que o
problema abordado é outro, porque não se trata apenas de um problema familiar,
mas sim
de uma característica da
sociedade brasileira do período. Através do olhar
do cônego, acerca das mulheres
da peça – Dona
Antonia (a proprietária)
e Lalau (a dependente)
– compreenderemos a representação da sociedade
e o favor em Casa
Velha.
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Fonte:
Tatiana Camila Nogueira: “A trama e a sua forma: uma leitura de Casa Velha, de Machado de Assis”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Estudos Literários. Área de concentração: Literatura Brasileira. Orientador: Dr. Marcos Rogério Cordeiro Fernandes). Belo Horizonte, 2010.
Tatiana Camila Nogueira: “A trama e a sua forma: uma leitura de Casa Velha, de Machado de Assis”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Estudos Literários da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de mestre em Estudos Literários. Área de concentração: Literatura Brasileira. Orientador: Dr. Marcos Rogério Cordeiro Fernandes). Belo Horizonte, 2010.
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