Para baixar este livro gratuitamente em formato PDF, acessar
o site do “Projeto Livro Livre”:
Os livros estão em ordem alfabética: autor/título (coluna
à esquerda) e título/autor (coluna à direita).
---
Uma crônica aguda
O
folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular
do sério,
consorciado com o frívolo. Estes dois elementos arredados como pólos heterogêneos como água e fogo casam-se
perfeitamente na organização do novo animal.
[...]
Em geral o
folhetinista aqui é todo parisiense; torce-se por um estilo estranho, e esquece-se,
nas suas divagações sobre o boulevard e café Tortoni, de que está sobre
um mac-adam lamacento e com uma grossa tenda lírica no
meio do deserto.
[...]
Força é
dizê-lo: a cor nacional, em raríssimas exceções, tem tomado o folhetinista entre nós. Escrever folhetim e ficar
brasileiro é na verdade difícil. (Obra
completa, vol.III, p.
958)
A opinião é
de um jovem de vinte anos no seu segundo emprego. Compreende-se. Não faz ainda
um ano que começou a escrever nos jornais de sua cidade provinciana e já
proclama verdades. Algumas idéias são boas, outras nem tanto, mas talvez o
maior problema seja o tom entusiasmado com que investe contra os folhetins, um modismo que começara havia vinte
ou trinta anos e que viria para ficar. O jovem articulista ainda não sabe (está
nas primeiras edições), mas suas teses serão cabalmente derrubadas por outro
folhetinista mais experiente e menos apaixonado, que escreverá por décadas nos folhetins da mesma
cidade. A réplica não será assim ostensiva, pois o velho folhetinista, ao
contrário do jovem, tem horror a polêmicas. O velho – aliás, aposentado do
serviço público, para desespero do jovem que vociferou contra essa classe no
seu último artigo – demolirá as idéias do moço não com argumentos, embora ele
sempre os tenha, mas demonstrando com seus textos que, nas crônicas, não faltam a cor nacional e que elas
podem ser muito úteis e pouco fúteis. O velho, assim como o jovem, chama-se
Machado de Assis e se, segundo dizem, o menino é o pai do homem, nesse caso as
semelhanças não são tão evidentes, embora um olhar mais atento possa denunciar
a preferência de ambos pela ambigüidade e pela ambivalência das coisas.
Em A vida ao
rés-do-chão, Antonio CANDIDO sugere que talvez a crônica seja mesmo um
gênero menor, para concluir: Graças a Deus se for mesmo assim, pois com
isso a literatura se torna mais próxima da gente, perde aquele ar sério e ganha
um jeito de coisa brasileira, bem
familiar. E a graça seria a habilidade desse gênero em pegar a “pobre ocorrência do nada”,
como diria o folhetinista do parágrafo anterior, e mostrar a grandeza e, quem sabe, o lirismo aí
existente. Constituída de anedotas, de críticas de costumes, geralmente
bem-humorada e muitíssimo leve, a crônica não tem a pretensão de durar mais do que a folha de
jornal em que foi impressa e que, como lembra CANDIDO, no dia seguinte já
estará forrando o chão da cozinha. A crônica não foi feita para durar, mas,
apesar disso, muitas têm conseguido sobreviver muito bem à passagem dos anos. É que, por trás do jeito de
conversa fiada que todas têm, na intimidade
e no tom corriqueiro da conversa do cronista com seu leitor se esconde muita coisa
séria, singular, que subverte a vocação inicial da crônica para o passatempo e
para a diversão passageira e faz que ela acabe ganhando uma vida bem mais
longa, sem que a idade a faça perder seu viço e seu jeito alegre e
debochado.
Claro que
nem sempre foi assim. A crônica nasceu com a história e era coisa muita séria;
afinal, o “cronista oficial” (cargo reservado apenas aos mais letrados) devia registrar
em ata toda a história de um rei, de um reino, de um povo, além de fazê-lo de forma que a posteridade tivesse a melhor
imagem dos dias e das pessoas que a antecederam. Mas o tempo passou e mudou
também a crônica, que abandonou a torre ou o livro oficial e foi morar no
jornal. Perdeu títulos, é verdade, mas ganhou manchetes e aos poucos foi, literalmente, conquistando
mais espaço no dia-a-dia e nos diários. Se, ao abandonar sua vocação inicial de
ata do tempo, ela perdera um pouco da longevidade, agora, em sua versão mais
caseira, ganha novo fôlego e vence os anos, não mais com aquela cara sisuda de
coisa oficial (que freqüentemente se torna sua primeira vítima), mas com um
jeito brejeiro e muito brasileiro; afinal, foi aqui que ela encontrou seu novo
lar, abrasileirando-se, na melhor acepção do termo, e tornando-se praticamente um gênero literário. Sem esquecer o hoje e o
ontem, a crônica passou a querer também perscrutar o futuro, ao procurar, nos
fatos comezinhos que comenta, o germe dos dias que virão.
Lembrar e
escrever. Conforme ensina ARRIGUCCI, a crônica é fusão e produto desses dois
atos. O cronista, em sua origem, era o guardião da história do povo, dos momentos que mereciam ser registrados para
a posteridade. Cedendo o lugar para o historiador, ele passou a se ocupar do
rés-do-chão da história e do jornal. Não são mais os feitos dos heróis, as guerras e conquistas
de um povo que interessam, mas a nova peça de teatro, a facada anônima, a
chegada dos bondes e mesmo a Proclamação da República. O cronista continuou a ser o
narrador por excelência, mas tornou-se o contador de casos, aquele que
transforma a história do indivíduo ou da coletividade em ficção e com isso
confere-lhes uma universalidade e uma perenidade que não tinham em seu estágio inicial. Talvez seja o caso de
dizer que o cronista foi promovido de historiador
a contador de histórias (ou estórias, como prefere o Guimarães), pois agora as
fábulas do cotidiano é que são colocadas em ata, registradas e resgatadas do
turbilhão do tempo para adquirirem diversos, múltiplos significados, desde que
a crônica consiga superar seu consorte e
adversário: o tempo. Ele, que de tão presente na crônica chega a fazer parte do
seu nome, parece querer castigá-la por tê-lo aprisionado, fazendo-a voltar a
ser efêmera. Talvez isso explique por que a relação da crônica com o fato que
lhe serve de referência seja tão ambígua, como bem assinalou ARRIGUCCI. É que,
ao mesmo tempo que a crônica anseia pelo banal, pelo pequeno, ela deve saber
superá-lo e, nas palavras de Manuel Bandeira, outro grande cronista, procurar
extrair toda a poesia que existe em um
par de chinelos ou no beco e, com essas coisas tão passageiras, vencer o tempo,
seu confidente e opositor.
De fato é
uma situação incômoda a do cronista: de um lado, deve se ocupar do frívolo,
para usar os termos do jovem cronista, mas, de outro, deve também alcançar o
sério; de forma que o seu tema nunca, pelo menos no caso dos grandes cronistas,
será aquilo que parece ser. E aí começa-se a perceber que essa dicotomia entre
essência e aparência talvez esteja mesmo no cerne desse gênero, chegando a ser
o que o mantém vivo. Nesse processo há
um novo distanciamento da história e um retorno ao lar, pois, ao vencer o
tempo, a crônica também deixa o jornal e retorna ao livro. Torna-se literatura, sem que isso signifique perder o
jeito leve. Machado compreendia bem o dilema e fez dele muita vez o tema das
suas crônicas: com um olho no jornal e outro muito além dele, o bruxo
contador de histórias sabia como poucos fazer a banalidade tornar-se “rara e preciosa” para com
isso ir além da “pobre ocorrência do nada” e mostrar ao homem a
história, como nenhum historiador poderia fazê-lo. Conforme se verá, a sua
relação com o fato banal do cotidiano é difícil: ela está lá para quem quiser ver,
mas o olhar mais atento perceberá algo de perturbador nessa relação; verá que o
fato referido, não importando se é a Revolta da Armada, um anúncio de jornal ou
a morte de odaliscas turcas, é
apenas um pretexto para a discussão de outros temas que não estão sujeitos ao
aqui e ao agora do cronista. Nesse ponto há quase uma volta às origens, não
porque a crônica de Machado se torne história como suas ancestrais ou porque
registre a anedota dos seus dias, mas porque ela se impregna do seu próprio tempo,
que passa a fazer parte de sua carne: a materialidade do texto, mais do que seu
referente, exibe as marcas do tempo. Como bem percebeu ARRIGUCCI, a
crônica [...] ganha ainda, dentro da obra machadiana,
outra significação. Como os romances, a que elas se
ligam por vários lados, e provavelmente também como os contos, fazem parte de um projeto literário e histórico mais
vasto e coerente, que Machado teria concebido,
levado pela intenção realista de retratar a natureza e o desenvolvimento da sociedade
em que vivia. São, portanto, um elo valioso nas relações entre história e
ficçãono universo machadiano. (Boletim
Bibliográfico da Biblioteca Mário de Andrade, vol. 46 no1/4 de
01.12.85, p. 49)
O que se
pretende mostrar nas páginas seguintes é que as crônicas de fato fazem parte de
um projeto que visava a fundir literatura e história em uma obra única que
tivesse como contrapartida a fusão entre ficção e realidade. Nas palavras de ARRIGUCCI,
essas crônicas são um elo valioso das relações entre ficção e história e, como
tal, não visavam à identificação de uma ou de outra parte que unia, mas à compreensão
dos fatos que permitiam a transmutação de ambas. Para Machado, seria de pouca
importância saber se o mote de sua narrativa tinha acontecido ou não, da mesma forma que, para Bentinho, a verdade era
secundária ou talvez um mito. Tanto faz se a crônica tem por referente uma
República conturbada e o conto, uma outra sereníssima; o fato é que ambos
encerram não só o seu tempo e espaço, mas também o porvir. Literatura e
história ficam assim entrelaçadas e a crônica, ora se enquadrando em uma categoria, ora em outra, seria o campo ideal
para estudar as relações entre ambas. O tema, aliás, já ocupava a atenção de
Machado muito antes do início da publicação de A Semana. Veja-se por
exemplo, a crônica de 15.03.18776, em que Machado já discutia as relações
entre os dois tipos de crônica, a histórica e a jornalística, e os tênues
limites entre ficção e realidade. Para embaralhar tudo, é claro:
Mais dia
menos dia, demito-me deste lugar. Um historiador de quinzena, que passa os dias no fundo de um gabinete escuro e
solitário, que não vai às touradas, às câmaras, à Rua do Ouvidor, um
historiador assim é um puro contador de histórias.
E repare o
leitor como a língua brasileira portuguesa é engenhosa. Um contador de histórias é justamente o contrário de
historiador, não sendo um historiador, afinal de contas,
mais que um contador de histórias? Por que essa diferença? Simples, leitor,
nada mais simples. O historiador foi inventado por ti, homem culto, letrado,
humanista; o contador de histórias foi inventado pelo povo, que nunca leu Tito
Lívio, e entende que contar o
que se passou é só fantasiar.
O certo é
que se eu quiser dar uma descrição verídica da tourada de domingo passado, não poderei, porque não a vi. (Obra completa, vol. III, p. 361-362)
Como se vê,
Machado conhecia bem o dilema de ter que optar entre ser historiador e contador
de histórias. Entretanto, a dificuldade é apenas aparente, uma vez que, na
verdade, ele nunca distinguiu os dois ofícios ou gêneros literários, pois como observou
FACIOLI, a prática do ficcionista não difere da do cronista. Entretanto,
deve-se ressaltar que a semelhança não é só de estilo, mas de perspectiva, pois
o tratamento dispensado pelo cronista
aos fatos da realidade pouco difere da forma como Bentinho, por exemplo, aborda
o material de sua narrativa. Ao que parece, os dois seguem as diretrizes
propostas pelo crítico literário. No seu célebre artigo Notícia da atual literatura
brasileira – instinto de nacionalidade, publicado na revista Mundo Novo,
de 24.03.1873, Machado enfoca as
relações entre nacionalismo e literatura, discordando daqueles que consideravam
o primeiro como critério de julgamento da segunda e mostrando que a relação
entre a obra literária e a realidade não é tão simples quanto pode parecer.
Inicialmente, o autor mostra que, de maneira geral, a crítica havia se enganado
em relação ao arcadismo e, muitas vezes, confundira o nacional com o pitoresco:
[...] Há
nela (na opinião) um instinto que leva a aplaudir principalmente as obras que
trazem os toques nacionais. A juventude literária, sobretudo, faz deste ponto
uma questão de legítimo amor-próprio. Nem toda ela terá meditado os poemas de Uraguai
e Caramuru com aquela atenção que tais obras estão pedindo; mas os nomes
de Basílio da Gama e Durão são citados e
amados como precursores da poesia brasileira. A razão é que eles buscaram em roda de si os elementos
de uma poesia nova, e deram os primeiros traços de nossa fisionomia literária,
enquanto que outros, Gonzaga por exemplo, respirando aliás ares da pátria, não
souberam desligar-se das faixas da Arcádia nem dos preceitos do tempo. Admira-se-lhes o talento
mas não se lhes perdoa o cajado e a pastora,
e nisto há mais erro que acerto.
[...] Não
me parece, todavia, justa a censura aos nossos poetas coloniais, iscados daquele mal; nem igualmente justa a de não
haverem trabalhado para a independência literária,
quando a independência política jazia ainda no ventre do futuro, e mais que tudo quando entre a metrópole e a colônia
criara a história a homogeneidade das tradições, dos costumes e da educação. As
mesmas obras de Basílio da Gama e Durão quiseram antes ostentar certa cor local
do que tornar independente a literatura brasileira, literatura que não existe
ainda, que mal poderá ir alvorecendo agora. (Obra completa, vol. III, p.
801-802)
Embora o
trecho acima fale por si, deve-se ressaltar o fato de ele evidenciar que
Machado estava ciente da inexistência, ainda, de uma literatura nacional e que buscava por algo que fosse além da
representação da cor local.
Segundo
o autor, as idéias por ele criticadas, se levadas às últimas conseqüências,
excluiriam da literatura nacional a quase totalidade da obra de autores como
Gonçalves Dias, uma vez que grande parte
dela trata de questões que dizem respeito a toda a humanidade ou mesmo a Portugal, como no caso das Sextilhas de
Frei Antão. De igual forma, o teatro do grande poeta romântico deveria ser excluído da
literatura brasileira por não ser ambientado no Brasil, e boa parte da obra de
Shakespeare deixaria de pertencer à literatura inglesa, uma vez que Hamlet, Otelo e Júlio César, entre
outros, nada têm que ver com a história daquele povo. Em seguida Machado
defende sua posição, a qual se reflete em toda a sua obra e, particularmente, nas crônicas:
Não há
dúvida que uma literatura, sobretudo uma literatura nascente, deve principalmente alimentar-se dos assuntos que
lhe oferece a sua região; mas não estabeleçamos doutrinas tão absolutas que a
empobreçam. O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento
íntimo, que o torne homem do seu tempo e do seu país, ainda quanto trate de assuntos
remotos no tempo e no espaço. Um notável crítico da França, analisando um escritor
escocês, Masson, com muito acerto dizia que do mesmo modo que se podia ser bretão sem
falar sempre de tojo, assim Masson era bem escocês, sem dizer palavra do cardo,
e explicava o dito acrescentando que havia nele um scotticismo interior,
diverso e melhor do que se fora apenas superficial. (IDEM, p. 804)
Transpostas
para a crônica, essas idéias sugerem que o cronista deveria se ocupar das manchetes dos jornais, embora,
talvez, não devesse ser muito ortodoxo em seu ofício, que devia buscar aquele
sentimento íntimo que sustenta tais notícias e que, mais do que elas próprias,
revelam seu tempo e seu espaço. Para conseguir isso, talvez fosse o caso de ir buscar assuntos remotos no
tempo e no espaço ou então, melhor ainda, fazer da crônica o seu assunto. Ela
continuaria cuidando da notícia do jornal, mas acabaria por fazer que esta
parecesse estar lá no jornal só esperando pela pena do cronista. É que as
crônicas de A Semana, sempre ancoradas nas manchetes dos jornais, buscam
conhecer o fôlego que as anima. Para tentar decifrar o projeto a que se referia
ARRIGUCCI e entender como Machado o executava, será apresentado um breve panorama
dos dias que compõem A Semana e que mostram, em contraponto ao que se afirmou
no item anterior, a sintonia desses textos com seus dias. Na seqüência, serão indicadas
algumas características que as crônicas têm em comum com os romances da fase madura de Machado e que mostram que os
elos com a ficção eram tão grandes quanto os que mantinham com a realidade. Em
conjunto, os dois itens seguintes pretendem mostrar que, para Machado, não
haveria a linha divisória entre ficção e realidade, e que tanto em uma quanto
em outra haveria não só estratégias comuns, mas objetivos também próximos.
---
Fonte:
Fonte:
Dilson Ferreira da Cruz: “Estratégias e máscaras de um fingidor a crônica de Machado de Assis”. Orientador: IzidoroBlikstein.
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2000.
Nenhum comentário:
Postar um comentário