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O homem que sabia javanês
Talvez um dos melhores contos de
Lima Barreto, "O homem que sabia javanês"
fala da trajetória de um cônsul que chegou à posição fazendo crer a todos que sabia falar javanês. Mais que isso, logrou ser
tomado como um expert na literatura
de Java e por conta desse inusitado
conhecimento ascende socialmente de forma meteórica.
Como em "Teoria do
medalhão", o autor optou pelo formato do "diálogo", embora, como no primeiro caso, a narrativa lembre mais
um monólogo, visto que as interferências
do interlocutor são mínimas e sobretudo com a função de dar continuidade ao discurso do narrador.
Em uma situação financeira
difícil, o narrador-personagem se decide, por desespero de causa, a se passar por professor
de javanês e responde a um anúncio de jornal
que procurava um profissional desse tipo. Embora nada soubesse da língua, aprendeu o alfabeto e algumas poucas palavras
em javanês, o bastante para simular certo
conhecimento e impressionar seu "aluno" que, como o leitor comprova
mais tarde, desconhecia totalmente o
idioma. Em um ambiente em que o javanês era absolutamente ignorado, seu estratagema não somente funciona
como faz dele uma celebridade no assunto.
Por meio da manipulação e de
atitudes bem calculadas, Castelo, o pretenso professor de javanês, ganha respeitabilidade,
reconhecimento público e atinge altos cargos
com direito a regalias especiais, como viajar a Europa para representar o
Brasil num congresso de linguística.
Ele, protagonista-narrador do conto, descreve seus truques de esperteza para manter o status que
conquistou à custa de uma farsa, protegida pelo fato de possuir um conhecimento
inacessível à maioria. Além disso, também investe em duplicar suas pretensas
habilidades, tratando de promovê-las, como no episódio em que faz publicar e circular um
artigo acerca de si próprio, durante sua estada na Europa. Como bom discípulo da teoria
do medalhão, Castelo põe em prática um
de seus mandamentos: "Uma notícia traz outra: cinco, dez, vinte vezes põe
o teu nome ante os olhos do mundo".
O conteúdo crítico desse conto
não é raro na obra de Lima Barreto. De uma forma geral, ilustra sua conhecida aversão ao
culto ao "doutor" no Brasil de seu tempo, como também serve como comentário à sua eterna
crítica à imprensa supérflua, pródiga em
promover um grupo de pessoas de acordo com seus próprios interesses e sem quaisquer compromissos com a verdade. Muitas
de suas obras, aliás, tocam nessas duas questões
como temas principais. É o caso de Numa e a ninfa e Recordações do escrivão Isaías
Caminha, ou ainda do conto "O jornalista", mas de fato são temas
recorrentes na maioria de seus
trabalhos, incluindo crônicas e artigos de opinião, nos quais, como se vê
a seguir, ele costumava ser
bastante ácido:
Essa birra do "doutor" não é só minha, mas poucos têm a
coragem de manifestá-la. Ninguém se
anima a dizer que eles não têm direitos a prerrogativas e isenções porque a maioria
deles é de ignorantes. E que só os
sábios, os estudiosos, doutores ou não, é que merecem as atenções que vão em geral para os cretinos,
cheios de anéis e empáfia.
A denúncia de Lima Barreto contra
os privilégios oferecidos aos detentores de títulos universitários quase sempre vem
carregada de uma mágoa perceptível, mesmo ao leitor mais desatento. Por isso, aos críticos
que buscam explicações em sua conturbada biografia, resta sempre a suspeita de que
algumas de suas ideias sejam deturpadas pelo despeito, pela infelicidade de ele
próprio não ter conseguido concluir os estudos a que um dia teve acesso. Por outro lado, também é
fácil deduzir que muitos de seus artigos, ainda os mais fundamentados, não eram caros a
pessoas importantes que, vendo a si mesmas
como alvo de tal crítica, menos abririam as portas ao escritor, numa sociedade acostumada ao binômio bajuladores e pistolões.
Para Sevcenko, a investida de Lima
Barreto contra a imprensa, já em seu primeiro
livro publicado (Recordações do escrivão Isaías Caminha), era parte de um projeto literário deliberado, não mero
ressentimento de alguém que teria sido rejeitado por esse grupo:
O desígnio maior de sua obra parece ter sido exatamente esse de desvendar o jogo de desmaracamentos que
envolvia por completo tanto o âmbito
político quanto a cena literária brasileira. [...] O escritor, em suma, fez a mais contundente
crítica às instituições ocas, com que se
travestia o regime de autoritarismo, conluios secretos, brutalidade e segregação social e étnica,
conhecido com a Primeira República.
A forma cômica com que a crítica se apresenta
no conto aqui analisado e as vestes
metáfóricas do falso professor de javanês, por sua vez, convidam a uma reflexão
mais direta e contundente sobre o seu
ponto de vista tantas vezes demonstrado e a uma comparação inevitável aos fatos que
cotidianamente ocorriam no Rio de Janeiro, ou no Brasil, de então. Sem se referir a esta ou a
aquela personalidade nominalmente, Lima aborda
a mentalidade geral que dominava repartições de governo, instâncias burocráticas, imprensa e mesmo os seletos
grupos intelectuais.
Ao lado do Castelo do conto, há
outros lendários personagens, como por exemplo
o russo Dr. Bogaloff. O tom caricatural de tais personagens tinha por trás uma análise sensata, que joga por terra a ideia
simplista de que sua crítica reflete tão somente uma mágoa pessoal contra muitos de seus
antigos colegas de Politécnica que se tornaram
figuras de prestígio na sociedade carioca. Lima Barreto, na realidade, demonstra ter uma visão mais ampla desses
problemas. A propósito dos estabelecimentos
de ensino universitário no Brasil, por exemplo, diz:
[S]ão verdadeiras oficinas de enobrecimento, para dar títulos, pergaminhos – como o povo chama os seus
diplomas, o que lhes vai a calhar – aos
bem nascidos pela fortuna ou pela posição dos pais. [...] Armados com as tais cartas, os jovens doutores
podem se encher de várias prosápias e
afastar concorrentes mais capazes.
A crítica de Lima Barreto insistentemente
chama a atenção para denominações errôneas,
que constroem celebridades sem conteúdo ou base. A aversão aos títulos estende-se ainda à mania de chamar aos médicos
ou engenheiros de cientistas. Segundo ele,
esses profissionais são práticos de ofícios que se valem de dados de "tais
ou quais ciências", o que não
significa absolutamente que sejam cientistas, algo muito diverso.
O fato é que como pouco se sabia
sobre o verdadeiro trabalho científico, um grupo poderia se apropriar do termo e do prestígio a
ele associado, tanto quanto o fez Castelo com o idioma javanês.
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Fonte:
Selma Vital: “O medalhão que sabia javanês: uma leitura comparativa entre Machado de Assis e Lima Barreto”. Machado de Assis em linha, ano 2, número 3, junho 2009.
Fonte:
Selma Vital: “O medalhão que sabia javanês: uma leitura comparativa entre Machado de Assis e Lima Barreto”. Machado de Assis em linha, ano 2, número 3, junho 2009.
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