30/11/2013

Contos Completos de Lima Barreto

 Lima Barreto - Aventuras do Dr. Bogoloff - Iba Mendes
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O homem que sabia javanês

Talvez um dos melhores contos de Lima Barreto, "O homem que sabia  javanês" fala da trajetória de um cônsul que chegou à posição fazendo crer a todos que  sabia falar javanês. Mais que isso, logrou ser tomado como um expert na literatura de  Java e por conta desse inusitado conhecimento ascende socialmente de forma meteórica.

Como em "Teoria do medalhão", o autor optou pelo formato do "diálogo", embora,  como no primeiro caso, a narrativa lembre mais um monólogo, visto que as  interferências do interlocutor são mínimas e sobretudo com a função de dar  continuidade ao discurso do narrador.

Em uma situação financeira difícil, o narrador-personagem se decide, por  desespero de causa, a se passar por professor de javanês e responde a um anúncio de  jornal que procurava um profissional desse tipo. Embora nada soubesse da língua,  aprendeu o alfabeto e algumas poucas palavras em javanês, o bastante para simular  certo conhecimento e impressionar seu "aluno" que, como o leitor comprova mais tarde,  desconhecia totalmente o idioma. Em um ambiente em que o javanês era absolutamente  ignorado, seu estratagema não somente funciona como faz dele uma celebridade no  assunto.
Por meio da manipulação e de atitudes bem calculadas, Castelo, o pretenso  professor de javanês, ganha respeitabilidade, reconhecimento público e atinge altos  cargos com direito a regalias especiais, como viajar a Europa para representar o Brasil  num congresso de linguística. Ele, protagonista-narrador do conto, descreve seus  truques de esperteza para manter o status que conquistou à custa de uma farsa, protegida  pelo fato de possuir um conhecimento inacessível à maioria. Além disso, também  investe em duplicar suas pretensas habilidades, tratando de promovê-las, como no  episódio em que faz publicar e circular um artigo acerca de si próprio, durante sua  estada na Europa. Como bom discípulo da teoria do medalhão, Castelo põe em prática  um de seus mandamentos: "Uma notícia traz outra: cinco, dez, vinte vezes põe o teu  nome ante os olhos do mundo".

O conteúdo crítico desse conto não é raro na obra de Lima Barreto. De uma  forma geral, ilustra sua conhecida aversão ao culto ao "doutor" no Brasil de seu tempo,  como também serve como comentário à sua eterna crítica à imprensa supérflua, pródiga  em promover um grupo de pessoas de acordo com seus próprios interesses e sem  quaisquer compromissos com a verdade. Muitas de suas obras, aliás, tocam nessas duas  questões como temas principais. É o caso de Numa e a ninfa e Recordações do escrivão Isaías Caminha, ou ainda do conto "O jornalista", mas de fato são temas recorrentes na  maioria de seus trabalhos, incluindo crônicas e artigos de opinião, nos quais, como se vê
a seguir, ele costumava ser bastante ácido:

Essa birra do "doutor" não é só minha, mas poucos têm a coragem de  manifestá-la. Ninguém se anima a dizer que eles não têm direitos a  prerrogativas e isenções porque a maioria deles é de ignorantes. E que  só os sábios, os estudiosos, doutores ou não, é que merecem as  atenções que vão em geral para os cretinos, cheios de anéis e  empáfia.

A denúncia de Lima Barreto contra os privilégios oferecidos aos detentores de  títulos universitários quase sempre vem carregada de uma mágoa perceptível, mesmo ao  leitor mais desatento. Por isso, aos críticos que buscam explicações em sua conturbada  biografia, resta sempre a suspeita de que algumas de suas ideias sejam deturpadas pelo despeito, pela infelicidade de ele próprio não ter conseguido concluir os estudos a que  um dia teve acesso. Por outro lado, também é fácil deduzir que muitos de seus artigos,  ainda os mais fundamentados, não eram caros a pessoas importantes que, vendo a si  mesmas como alvo de tal crítica, menos abririam as portas ao escritor, numa sociedade  acostumada ao binômio bajuladores e pistolões.

Para Sevcenko, a investida de Lima Barreto contra a imprensa, já em seu  primeiro livro publicado (Recordações do escrivão Isaías Caminha), era parte de um  projeto literário deliberado, não mero ressentimento de alguém que teria sido rejeitado  por esse grupo:

O desígnio maior de sua obra parece ter sido exatamente esse de  desvendar o jogo de desmaracamentos que envolvia por completo  tanto o âmbito político quanto a cena literária brasileira. [...] O  escritor, em suma, fez a mais contundente crítica às instituições ocas,  com que se travestia o regime de autoritarismo, conluios secretos,  brutalidade e segregação social e étnica, conhecido com a Primeira  República.

 A forma cômica com que a crítica se apresenta no conto aqui analisado e as  vestes metáfóricas do falso professor de javanês, por sua vez, convidam a uma reflexão  mais direta e contundente sobre o seu ponto de vista tantas vezes demonstrado e a uma  comparação inevitável aos fatos que cotidianamente ocorriam no Rio de Janeiro, ou no  Brasil, de então. Sem se referir a esta ou a aquela personalidade nominalmente, Lima  aborda a mentalidade geral que dominava repartições de governo, instâncias  burocráticas, imprensa e mesmo os seletos grupos intelectuais.

Ao lado do Castelo do conto, há outros lendários personagens, como por  exemplo o russo Dr. Bogaloff. O tom caricatural de tais personagens tinha por trás uma  análise sensata, que joga por terra a ideia simplista de que sua crítica reflete tão somente  uma mágoa pessoal contra muitos de seus antigos colegas de Politécnica que se  tornaram figuras de prestígio na sociedade carioca. Lima Barreto, na realidade,  demonstra ter uma visão mais ampla desses problemas. A propósito dos  estabelecimentos de ensino universitário no Brasil, por exemplo, diz:

[S]ão verdadeiras oficinas de enobrecimento, para dar títulos,  pergaminhos – como o povo chama os seus diplomas, o que lhes vai a  calhar – aos bem nascidos pela fortuna ou pela posição dos pais. [...]  Armados com as tais cartas, os jovens doutores podem se encher de  várias prosápias e afastar concorrentes mais capazes.

 A crítica de Lima Barreto insistentemente chama a atenção para denominações  errôneas, que constroem celebridades sem conteúdo ou base. A aversão aos títulos  estende-se ainda à mania de chamar aos médicos ou engenheiros de cientistas. Segundo  ele, esses profissionais são práticos de ofícios que se valem de dados de "tais ou quais  ciências", o que não significa absolutamente que sejam cientistas, algo muito diverso.

O fato é que como pouco se sabia sobre o verdadeiro trabalho científico, um grupo  poderia se apropriar do termo e do prestígio a ele associado, tanto quanto o fez Castelo  com o idioma javanês.


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Fonte:
Selma Vital: “O medalhão que sabia javanês: uma leitura comparativa  entre Machado de Assis e Lima Barreto”. Machado de Assis em linha,  ano 2, número 3, junho 2009.

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