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Clara
dos Anjos, romance de Lima Barreto
Em Clara
dos Anjos, ainda que não haja uma associação (mais direta) entre escritor e
personagens principais, Lima Barreto não deixou de tematizar seus dramas
pessoais por meio de um personagem secundário: Leonardo Flores, poeta
alcoólatra que, de tempos em tempos, experimentava acessos de loucura; poeta
célebre “que o Brasil todo conhece e viveu uma vida pura, inteiramente de
sonhos”. O alcoolismo, inclusive – de certa forma definidor do destino de Lima
Barreto em seus últimos 10 anos de vida – tem participação marcante neste
último romance publicado pelo autor. Tem-se, aí, mais uma confirmação do tom
autobiográfico na obra do escritor. Quando o alcoolismo passou a ter papel
central em sua vida, o teve também em sua ficção:
Aparecia, também, em certas ocasiões, o
Leonardo Flores, poeta, um verdadeiro poeta, que tivera o seu momento de
celebridade no Brasil inteiro e cuja influência havia sido grande na geração de
poetas que se lhe seguiram. Naquela época, porém, devido ao álcool e desgostos
íntimos, nos quais predominava a loucura irremediável de um irmão, não era mais
que uma triste ruína de homem, amnésico, semi-imbecilizado, a ponto de não
poder seguir o fio da mais simples conversa. Havia publicado cerca de dez
volumes, dez sucessos, com os quais todos ganharam dinheiro, menos ele, tanto
assim que, muito pobremente, ele, mulher e filhos agora viviam com o produto de
uma mesquinha aposentadoria sua, do governo federal.
Aqui,
o tom autobiográfico na construção do personagem se mostra bastante forte.
Também Lima Barreto fora um escritor que, quando de sua estreia, chegou a
conquistar grande notoriedade, chamando atenção de grandes como Monteiro
Lobato, mas teve seu brilho ofuscado pela loucura, “herdada”de seu pai (no caso
de Flores, o irmão era quem tinha acessos de loucura, e, no caso de Lima, foi
seu pai quem teve esse destino). O fato de não ter ganhado dinheiro com suas
obras e de ter seu sustento proveniente de uma aposentadoria do governo federal
também são similaridades entre autor e personagem. Ainda que no trecho seja
mencionada apenas a loucura do irmão de Leonardo Flores, mais adiante no livro
é esclarecido que também o próprio Flores (assim como o próprio Lima Barreto)
era acometido por acessos de loucura. O episódio da morte de Meneses, o
dentista, bem ilustra este fato.
[...]
Em
Clara dos Anjos, “é possível observarmos que a ótica do autor
encontra-se sempre permeada pela percepção das profundas discriminações de
classe e étnicas que tornam impossível pensarmos numa condição feminina no
singular”. Lima Barreto conseguia perceber com bastante clareza que as condições
de gênero estavam intimamente ligadas às condições sociais e raciais. Não era
possível haver uma única luta feminista sem que antes se reconhecessem as
diferenças entre as próprias mulheres.
[...]
Outro
exemplo interessante da maneira como o escritor apropriava-se do que acontecia
na sociedade em que se inseria para construir uma história alternativa, capaz
de fornecer detalhes e explicações desconhecidos da história oficial, é a construção
do romance Clara dos Anjos. Além de mencionar costumes e questões
importantes para a sociedade da época, a trama parece ter sido inspirada por
uma história verídica de um homem que, de acordo com os jornais, “deflorou onze
moças e seduziu uma porção de senhoras”. O caso foi anotado por Lima Barreto em
1911, e se tratava de um homem de nome Assis que se comunicava com suas vítimas
por meio de cartas e as convencia de que as amava para que, assim, pudesse com
elas ter relações sexuais. A proximidade da história de Cassi com a história de
Assis é tamanha, que até mesmo as cartas enviadas por Cassi e reproduzidas no
romance são praticamente cópias das cartas originais escritas por Assis.
Vejamos trechos das cartas de Assis:
Queridinha, confesso-te que ontem quando
recebi a tua carta fiquei tão louco que confessei a mamãe que lhe amava
loucamente e fazia por você as maiores violências. Ficaram todos contra mim, e
a razão por que previno-te que não ligues ao que lhe disserem, por isso peço-te
que pese bem o meu sofrimento e escreva-me dizendo o que passou-se durante as
últimas vinte e quatro horas, e peço-te perdão de não ter respondido a mais
tempo [...] Pense bem e veja se estais revolvida a fazer o que me disseste na
sua amável cartinha [...] Saudades e mais saudades deste infeliz que tanto lhe
adora e não é correspondido.
[...]
Fui ao Dr. Roma Santos saber o que você
tinha ele disse-me que você tinha feito a loucura de molhar os pés na água fria
[...] foi pra mim uma grande tristeza em saber que o Dr. Roma Santos sabe de
teus particulares moral; enfim que devo fazer se você não quer ser minha
inteiramente minha como eu sou teu.
No
romance, ao realizar a apresentação de Cassi Jones e seu passado, o autor
praticamente reproduz a história de Assis (Cassi, antes de conhecer Clara, “contava
perto de dez defloramentos e a sedução de muito maior número de senhoras
casadas”) e suas cartas, modificando apenas a grafia de algumas palavras para
que ficasse óbvia a ignorância do vilão:
Ele, como de hábito, não falava de seus namoros a
ninguém, muito menos a seu pai e a sua mãe; entretanto, para ganhar a confiança
da pobre menina, dizia na carta que dissera à mãe que muito a amava ou
textualmente: “confessei a mamãe que lhe amava loucamente” e avisava-lhe: “privino-lhe
que não ligues ao que lhe disserem, por isso pesso-te que preze bem o meu
sofrimento”; e, assim nessa ortografia e nessa sintaxe, acabava: “Pense bem e
veja se estás resolvida a fazer o que diçestes na tua cartinha”, etc.
Confessava-se um infeliz “que tanto lhe adora” e lamentava não ser
correspondido.
Em outra, mostrava-se interessado pela saúde de Nair;
e, depois de dar instruções como devia deixar a janela para que ele a pulasse,
contava: “tão de pressa soube que estavas de cama fui ao doutor R. S. saber o
que você tinha, ele disse-me que você tinha feito a loucura de molhar os peis
na água fria” etc., etc. Nessa altura, entrava em detalhes secretos da vida
feminina e aduzia: “foi uma grande tristeza em saber que o doutor R. S. sabe de
teus particulares moral” (sic).
No fim da missiva, ou quase, dizia: “enfim que eu devo fazer ‗se você não quer ser
inteiramente minha como eu sou teu.”
Neste
romance, portanto, tem-se um ponto de partida real do qual se aproveitou Lima
Barreto para pensar a trama. Ele contou os detalhes de uma história para os
quais não haveria espaço nos jornais da época nem nos livros de história, afinal,
tratava-se de um caso do cotidiano, não de um acontecimento capaz de mudar os
rumos do país. O escritor conta aqui a história que não foi, mas que poderia
ter sido, de personagens perdedores da história, de personagens cujas vidas não
interessam à história oficial. Lima Barreto contribui, ainda, para a ideia da Erlebnis
proposta por Benjamin, em que as experiências pessoais, menores, passam a
se sobressair em detrimento de uma já impossível experiência geral. A
trajetória de Clara e de Cassi representa uma das muitas histórias que comporão
o mosaico de experiências que darão pistas sobre a história de uma sociedade.
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Fonte:
Isadora Almeida Rodrigues: “Literatura, História e Senso Comum: Lima Barreto e suas representações do músico popular”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Área de concentração: Teoria da Literatura. Orientador: Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques. Universidade Federal de Minas Gerais Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários). Belo Horizonte, 2013.
Fonte:
Isadora Almeida Rodrigues: “Literatura, História e Senso Comum: Lima Barreto e suas representações do músico popular”. (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos Literários. Área de concentração: Teoria da Literatura. Orientador: Prof. Dr. Reinaldo Martiniano Marques. Universidade Federal de Minas Gerais Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários). Belo Horizonte, 2013.
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